Concurso e o "inimigo interior" (Parte 1)

22/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 22/05/2015 

             “El sentido de las cosas yace, no en las  cosas, sino en nuestra actitud hacia ellas”

Antoine de Saint-Exupéry

Parte 1

Imaginemos uma situação em que escutamos alguém fazer o seguinte comentário: Já faz algum tempo que estou estudando para fazer concursos e, depois de ter fracassado em todos o que fiz até agora, às vezes me encontro sem forças, temeroso e algo desestimulado para enfrentar-me a outros concursos. Sinto como se meu desanimado cérebro não fosse capaz de reter os dados que leio e estudo. Por mais horas que intento memorizar ou compreender a matéria, aos poucos dias acabo esquecendo tudo, repasso de forma quase compulsiva o que já havia estudado e, o que é pior, com essa persistente falta de motivação, na maioria das vezes não logro um bom ritmo de estudo. À medida que passa o tempo me frustro cada vez mais pela quantidade de matéria que ainda me falta por estudar e pela sensação de que nada acontece durante todo o tempo que estou me dedicando integralmente a isso. Já provei de tudo: frequentar cursos preparatórios, elaborar resumos e esquemas, marcar livros com anotações e com diversas cores, ver aulas gravadas, rezar plegárias de intercessão, fazer promessas, tomar ritalina…, mas parece que não consigo melhoras. O grave é que já começam a rondar por minha cabeça pensamentos de abandonar meus sonhos, de desistir de meu objetivo de aprovar em um concurso público, de procurar um trabalho que me dê um retorno mais imediato, de reconhecer que não tenho talento, que sou um incompetente comparado com os que conseguem aprovar, que não tenho sorte ou que a culpa, depois de tudo, não é minha...; enfim, que definitivamente não posso mais. E tudo isso faz com que meu estado de ânimo decaia ainda mais, minha atenção se disperse, minha desesperança aumente e tenha que dar por mal aproveitada outra jornada de estudo.

Apesar de toda a vulnerabilidade e prejuízo gerados por este tipo de tormenta emocional a que todos estamos sujeitos, é muito provável que a ninguém se lhe ocorra pensar o seguinte: “Me pergunto o que poderia fazer hoje para desistir de tudo, deprimir-me um pouco mais, realçar com mais entusiasmo minhas debilidades e fraquezas, obstaculizar melhor meus esforços, impedir-me estudar e aprender, depreciar com mais intensidade minhas virtudes e amaldiçoar meus logros”. Claro que não! O que seguramente pensa é: “Apesar de tudo, faria qualquer esforço, daria qualquer coisa, para conseguir alcançar meu objetivo e realizar meus sonhos”.

Por quê? Porque é precisamente quando nossa situação vital é desfavorável, quando a realidade se resiste aos nossos desejos ou quando há uma grande incerteza sobre o como e o quando “tudo vai acabar” que mais recorremos à esperança. A tal ponto que é “com esperança” que buscamos reforçar nossa capacidade de enfrentar-nos aos obstáculos e dificuldades que nos impõe a vida e a única que tem a capacidade de permitir-nos sacar o melhor partido de uma má situação, de seguir adiante com entusiasmo e dignidade, apesar de tudo. É a sensação pessoal, inefável e intransferível de crer que existe uma possibilidade de que as coisas melhorem, de que “de algum modo, tudo acabará encaixando em algum momento em nosso caminho, em nosso futuro”, de não sabotar-nos a nós mesmos com contínuas autoavaliações negativas e dúvidas paralizantes, de sentir que ainda podemos atuar como agente ativo nos acontecimentos percebidos do mundo, não importa a sombria que possa parecer a situação no momento atual.[1]

Mas como não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo, às vezes algumas das coisas que esperamos, pensamos, sentimos e fazemos são contraproducentes. Com demasiada frequência, os conselhos que recebemos, os juízos de valor e as crenças que formulamos sobre nós mesmos para motivar-nos, de forma voluntária ou involuntária, nos transmitem uma mensagem equivocada. E dado que atuamos “como” se soubéssemos de que modo funciona nossa mente (isto é, muito melhor do que conhecemos o funcionamento de nossos  celulares) e “por que” nos comportamos da forma em que o fazemos, “nos contamos contos a nós mesmos” dos que podemos ser ou não conscientes, mas que afetam sobremaneira a nossos propósitos e nossas possibilidades de torná-los realidade. Pior ainda: não somente sentimos como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções, fabulações e veleidades que nos inventamos a nós mesmos, senão que estas crenças autoimpostas, tomadas em conjunto, impregnam, influem e definem, de maneira profunda, quem fomos, quem somos e quem seremos.

O que quero dizer com isto é que há um inquebrantável vínculo de interdependência entre a forma como pensamos e como nos comportamos que afeta diretamente nosso estilo de vida. Como não podemos escapar de nossa perspectiva, segundo o que pensemos ou sintamos, criaremos nosso estado de ser. O que pensamos e a energia ou intensidade desses pensamentos revelam, controlam e condicionam o “como” interpretamos as circunstâncias e o significado do que nos ocorre. E é precisamente o significado que atribuímos aos acontecimentos e às condições em que nos encontramos o que nos faz sentir ansiosos, desanimados, culpáveis, fracassados, felizes, orgulhosos ou motivados no finito navegar pelas estranhas águas da vida.

Em palavras da escritora Anaïs Nin: “Las cosas, no las vemos como son; las vemos como somos”. Cada um de nós tem sua forma de interpretar a realidade; um ângulo distinto produz uma emoção ou sentimento diferente. Por isso, mais que da “lente” com que miramos a realidade, tudo parece depender da “mente” que interpreta o que se mira, do sentido que outorgamos as nossas experiências; enfim, de como representamos mentalmente e valoramos nossas experiências e nossas expectativas. Somos uma idiossincrasia com patas, e são nossos pensamentos os que em grande medida criam continuamente nosso mundo.

E porque o que se vê depende da perspectiva do observador, parece que, em tema de concurso, há dois tipos de mentalidades mais persistentes que moldam nossos sentimentos e contaminam a forma como governamos nossas atitudes e afrontamos os retos a que estamos dispostos a superar. Existem aqueles que, frente a determinados reveses da vida, colocam imediatamente em questão sua capacidade e desenvolvem um sentimento catastrofizado de amargo fracasso e passiva resignação. Outros, inclusive (ou especialmente) quando as coisas não vão bem e se sentem abrumados, se mostram dispostos a correr riscos, a enfrentar-se a retos, a confiar no esforço e a seguir trabalhando para superar os obstáculos. Enquanto estes tratam de fazer alguma coisa a respeito para solucionar seus problemas com determinação, os demais deitam a perder-se na miséria, recriam-se em sua amargura, lamentam ou ruminam os fracassos e limitam-se a tratar de reparar a autoestima buscando comparar-se com pessoas que rendem menos que eles, de culpar aos demais ou encontrar escusas que minimizem seu sofrimento.

Por que determinadas pessoas se comportam dessa maneira e por que veem a vida dessa forma? Por acaso não sabem que a capacidade de eleger e adotar uma atitude pessoal (ou outra) ante as próprias circunstâncias sempre permanece conosco, sem que nos possa arrebatá-la, e que é precisamente esta liberdade a que dá a nossos propósitos um sentido que não é algo genérico e vulgar, senão único, pessoal, específico, concreto e intransferível?  Por que não entendem, como disse R. W. Emerson, que o homem tem dentro de si tudo o que necessita para governar-se, para ser dono de si mesmo? Por que lhes custa tanto aceitar que o controle pessoal é um processo criativo, um processo pelo qual construímos nossas atitudes, nossos sentimentos, nossas circunstâncias, nossos objetivos, nossas esperanças... nós mesmos? Por que pervertem deliberadamente a ideia mais bela que existe: a possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência?


 

Leia a Parte 2 amanhã (23/05)! Imperdível...


Notas e Referências:

* Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.

[1] A despeito do dito pelo personagem de uma novela de Nick Hornby («No me importa sufrirlo que me mata es la esperanza»), não podemos viver sem realidade e nem sem expectativas otimistas. Nosso mundo é uma mescla de crua realidade e reconfortante esperança. Ademais, as crenças e as expectativas acerca do futuro determinam em boa medida o que ocorre no presente e contribuem a como pensa, sente e atua a pessoa. Como disse Daniel Dennett, o cérebro humano é uma “máquina de antecipação”, e “criar futuro” é o mais importante que faz: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral (R. Llinás).Também deveria mencionar a ideia da falsa esperança, quer dizer, a que vai contra toda possibilidade realista, em cujo caso se considera que é uma forma não desejável de enfrentar-se a um fracasso potencial. Pessoalmente, não creio que tenha sentido esperar somente quando as possibilidades de êxito estão a nosso favor. A esperança não quer dizer que tudo vai  sair bem, senão simplesmente que é possível. No prólogo ao livro de sua esposa, Seymour Epstein, o marido de Alice, dissipa com êxito esta visão negativa da esperança: “Algumas pessoas temem as ´falsas esperanças´. Toda esperança é ´falsa´ no sentido de que aquilo que se espera pode que não se materialize. No momento de ter esperança não se pode saber o resultado. Se a esperança serve para melhorar a qualidade de vida e não causa que se evite tomar uma ação de adaptação quando isso é possível, nem que se sinta ressentimento se o resultado esperado não se materializa, então obviamente é algo desejável” (R. Lazarus & B. Lazarus). Assim que a esperança é uma virtude independentemente de seus resultados; é um valor intrínseco, um fim em si mesmo, aliada da coragem e da imaginação, uma atitude positiva repleta de possibilidades e aspirações. Isto é esperança. Por essa razão se descobre mais acerca de uma pessoa quando se conhece suas esperanças que quando se conhece seus logros (A. C. Grayling).


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Old Enemies // Foto de: Randen Pederson // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/chefranden/12165081903/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

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