Conciliação nos Juizados Especiais: do respeito à autonomia da vontade dos sujeitos à qualidade da prestação jurisdicional

08/02/2015

Por Julia Lafayette Pereira - 08/02/2015

O Judiciário brasileiro, nas últimas décadas, vem sendo convocado a cumprir duas desafiadoras tarefas: efetivar o direito de acesso à justiça a todos os cidadãos; e, simultaneamente, dotar a prestação jurisdicional de maior velocidade. Para atender tais premissas, não foram poucas as medidas adotadas, dentre as quais lançaremos especial atenção à informalização dos procedimentos mediante a criação de vias jurisdicionais alternativas: Juizados Especiais Cíveis, instituídos pela lei 9.099/1995 e Juizados Especiais Federais, instituídos pela lei 10.259/2001.

Os Juizados Especiais, criados como uma via jurisdicional alternativa à comum, consistem em um modelo de justiça informal pautado pela oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, tendo como fio condutor a resolução consensual do conflito por meio da conciliação. Com o objetivo de reduzir o peso burocrático do procedimento, e, com isso, tornar a justiça mais acessível ao cidadão, faculta-se ao jurisdicionado que nem mesmo se faça representar por advogado em grande parte dos casos. Por outro lado, a parte será chamada a participar ativamente da decisão, cabendo-lhe esclarecer o conflito, discutir direitos e harmonizar interesses.

Em um primeiro momento, somos automaticamente levados a pensar que estas vias jurisdicionais alternativas são menos autoritárias, uma vez que, nelas, o sujeito é fortemente estimulado a construir autonomamente a solução para o seu caso. Em termos éticos, a solução negociada parece ser superior à solução imposta por decisão judicial, pois o sujeito não perde “o controle de sua própria história”, como ocorre quando, ao se submeter à via comum, conta sua história a um profissional com capacidade postulatória, que – muitas vezes – a “reduz a uma peça escrita que nem sempre é inteligível”[iii].

Contudo, entendemos que o respeito à autonomia da vontade dos sujeitos, proposto por estas vias, merece análise aprofundada. Nessa esteira, Fiss[iv], ao comentar o sistema de Alternative Dispute Resolution, oferece pertinente arcabouço teórico para refletir a via conciliatória proposta pelos Juizados.  Segundo o autor, não se pode presumir que exista igualdade material entre as partes que conciliam, devendo-se atentar para diversas condicionantes, que – uma vez presentes – colocam as partes em situação desigual.

A primeira condicionante consiste na possibilidade de haver diferença na capacidade das partes para conduzir o processo judicial. Assim, uma delas poderá ser gravemente prejudicada pelo simples fato de ter menos recursos para reunir e analisar informações necessárias à previsão da decisão do litígio. A segunda refere-se aos casos em que uma das partes, por ser menos favorecida economicamente e por necessitar urgentemente do direito que pleiteia, aceita acordo arbitrado em valor significativamente inferior ao que teria direito caso tivesse condições de aguardar o julgamento.  Já a terceira condicionante refere-se aos casos em que um dos sujeitos aceita o acordo coagido pelo juiz, que o ameaça de decidir desfavoravelmente caso decida se submeter ao processo.

Tais exemplos permitem constatar que a conciliação pode-se revelar uma via de mão dupla. Em um sentido, pode ser medida ideal para aproximar o sujeito da jurisdição por meio do diálogo, da informalidade, de modo que ele possa esclarecer o seu caso sem os rigores e o distanciamento imposto pelo formalismo da via comum. Em outro, pode-se revelar um espaço opressor, que – apesar de oferecer uma resposta em prazo razoável – não faz mais do que reproduzir, no Judiciário, as desigualdades presentes no meio social.

Economides[v] também atenta para este problema ao dizer que a simples resolução das disputas não corresponde, necessariamente, à efetivação do acesso à justiça em termos qualitativos. Segundo o autor, é possível oferecer meios para que os cidadãos solucionem seus litígios pacificamente, de modo que inclusive saiam satisfeitos com as soluções. Contudo, em algumas situações, o resultado alcançado permanece aquém daquele que seria obtido se os direitos legais fossem exercidos por meio do sistema jurídico formal. Baseado nisto, o autor irá atentar para um real perigo que existe na tendência para o informalismo judicial, uma vez que esta tendência, ocasionalmente, poderá se transmutar na negação dos “valores, da importância e da significação histórica do formalismo da justiça”.

Nesse sentido, se o espetáculo oferecido pelos rituais formais, por vezes, distancia a compreensão sutil do caso concreto e o conhecimento apurado do perfil dos jurisdicionados; na justiça informal, não parece haver melhor juiz para a parte do que a própria parte. Neste processo, Garapon[vi] elucida que há uma desconfiança do direito em relação a ele mesmo, pois a justiça confere mais crédito à “‘naturalidade’ das relações sociais” do que às próprias categorias jurídicas – vistas como artificiais.

Assim, na expectativa de interferir o menos possível na esfera individual do cidadão, a fim de não desestruturá-lo psicologicamente pela via do procedimento tradicionalmente formal, o procedimento informal corre o risco de ser desnaturado pela psicologia. Os princípios de justiça e as ficções de direito cedem espaço à “normalização dos costumes”, passando a não haver mais critérios objetivos para analisar se uma decisão é boa: ela “só o é se for aceite e aplicada”. Adota-se, assim, lógica semelhante a do mercado, em que os produtos são considerados bons ou ruins conforme o volume de vendas[vii].

Se a decisão agradou às partes, o que importa se está ou não dentro dos parâmetros constitucionais? Diante disso, como fica o sentido da prestação jurisdicional? Não se pode ignorar que – em meio ao relaxamento das formalidades do direito – os Juizados correm o risco de perder o sentido da prestação jurisdicional: o de trazer justiça para o caso concreto mediante respostas constitucionalmente adequadas[viii].

Dessa forma, não se está a afirmar que as vias jurisdicionais alternativas não contribuem para a efetivação do acesso à justiça, ou que, necessariamente, violam o devido processo. Pelo contrário! Acredita-se que podem ser um importante meio para a democratização do acesso qualificado à justiça. Contudo, há que se perguntar em que condições estas vias são capazes de dar vazão aos litígios sem que, para tanto, comprometam a qualidade da prestação jurisdicional.

Como observou Dufour[ix], ainda que o processo de dessimbolização nunca chegue ao limite absoluto, é certo que quando a relação de sentido se esvaece, ela ocorre em detrimento do que é próprio da humanidade – a discursividade – e favorece a relação de forças.

Nesse sentido, como reação ao processo de dessimbolização nas vias informais, a conciliação deve ser reavivada como espaço para discursividade. E tal processo não pode ser conduzido de modo adversarial, nem, muito menos, ser reduzido a mero requisito do rito processual. Ainda, não basta que a autonomia das partes seja respeitada: a decisão deve ser construída em atenção aos preceitos constitucionais. Para tanto, é preciso saber que a conciliação – como espaço para a discursividade - demanda tempo, e seu intervalo de duração deve ser ditado pelo caso concreto.

Dessa forma, se uma conciliação bem conduzida pode representar maior tempo de permanência do caso na primeira instância, por certo, tal intervalo será inferior ao de uma lide que chegue às instâncias recursais. Nesse contexto, o revigoramento da conciliação poderá aliar a democratização do acesso à justiça à celeridade da prestação jurisdicional, de modo a cumprir os dois objetivos que motivaram a instituição dos Juizados tanto em âmbito federal como estadual.

Contudo, se a mudança na compreensão da conciliação já constitui um desafio, outro desafio será compatibilizar o tempo que os juízes deverão despender para realiza-la com a crescente demanda por produtividade e presteza a que estão submetidos, temas que – por estarem entrelaçados - merecem ser conjuntamente analisados.

__________________________________________________________________________________________________________________

Sem título-2

Julia Lafayette é Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Foi  Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Advogada.

__________________________________________________________________________________________________________________

O presente texto reflete problemática tratada de modo mais aprofundado na dissertação de mestrado desta autora intitulada “Implicações do discurso eficientista neoliberal no movimento de ampliação do acesso à justiça: a experiência dos Juizados Especiais Federais”, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISISNOS.

__________________________________________________________________________________________________________________

[iii]  Entrevista de  José Renato Nalini, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-nov-25/entrevista-jose-renato-nalini-corregedor-geral-justica-sao-paulo>, da qual transcrevemos algumas passagens presentes neste parágrafo.

[iv] FISS, Owen. Um Novo Processo Civil: Estudos norte-americanos sobre a jurisdição, constituição e sociedade. Tradução: Carlos Alberto Salles (Coord.); Daniel Porto Godinho da Silva; Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2004, páginas 124-126 e 143-144.

[v] ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do “Movimento de Acesso à Justiça”: epistemología versus metodología?. Tradução: Paulo Martins Garchet. 1997. Disponível em: <http://www.comunidadesegura.org/files/lendoasondasdomovimentodeacessoajusticaepistemologiaversusmetodologiakimeconomides.pdf>.

[vi] GARAPON, Antoine. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Tradução: Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, página 265.

[vii] GARAPON, Antoine. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Tradução: Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, página 266.

[viii] Conforme proposto por Lenio Luiz Streck. Para maior aprofundamento, ler: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas: da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[ix] DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005, página 198.

__________________________________________________________________________________________________________________

Imagem ilustrativa do post: Grumpy Bear vs. Grumpy

Foto de: JD Hancock

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jdhancock/5002736203/

Sem Alterações

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura