Concepções de Família no Código Civil -  Narcisismo do operador do Direito e seus respingos em crianças e adolescentes

29/02/2016

Por Maíra Marchi Gomes – 29/02/2016

Sou um evadido. Logo que nasci Fecharam-me em mim, Ah, mas eu fugi.

Fernando Pessoa

A Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, permite diversas análises. A começar pelo seu tamanho (2.046 artigos!). De minha parte, e neste momento, optei por convidar o leitor a refletir sobre a concepção de família ali presente e, em particular, seus efeitos sobre a subjetividade de crianças e adolescentes.

Inicialmente, encontra-se algumas normas que o Direito impõe aos casais. Vejamos os seguintes incisos do Art. 1.566, que estabelece deveres de ambos os cônjuges:

I - fidelidade recíproca;

II - vida em comum, no domicílio conjugal;

Bem...parece que o Direito não concebe casais monogâmicos, bem como casais que optam por não viver no mesmo lar, por exemplo, por entenderem que o cotidiano mortifica a relação porque desnuda demais qualquer um de nós.

Continuando com as exclusões (que sempre são acompanhadas de generalizações), a mencionada legislação refere-se apenas ao casal composto por homem e mulher, e, por correlato, pressupõe que um filho sempre terá uma mãe e um pai. Nesta direção, poder-se-ia indagar sobre o que o Direito pensa a propósito dos filhos de casais compostos por dois homens ou duas mulheres. Afinal, Afinal, não é por se portar um pênis que se é homem, e nem por se portar uma vagina que se é mulher. E, ainda, filho não é apenas o biológico [não é?].

Parece que o Direito entende não apenas que casal é somente o heteroafetivo, mas também que filho é unicamente o biológico. Não sejamos ingênuos de acreditar que o fato de o Art. 1.596 prever que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” autoriza-nos a desconhecer o que a linguagem subliminar diz.

Os danosos efeitos sobre crianças e adolescentes da compreensão que o Direito tem do que seja família é mais evidente quando se analisa os artigos que discorrem sobre guarda. Por exemplo, o Art. 1.583, em seu § 5º, que prevê que “A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos”.

Resumo: há uma obrigatoriedade aos pais [vamos usar esta expressão patriarcal para não nos esgotarmos discutindo outro aspecto que não o foco da presente discussão] de que se interessem pelo filho. O amor por filhos tornando-se um dever...nem nos mandamentos encontramos essa! O que o Direito não faz em nome de prejudicar alguém, se até prejudicar crianças e adolescentes ele faz?

Mesmo num artigo que apresenta um tom mais pacificador, menos maniqueísta, percebe-se que aquele menos lembrado nestas decisões sobre guarda é a criança/adolescente. Refiro-me especialmente ao § 2o  do Art. 1.584, onde se encontra: “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor”.

Não sei se o Direito desconhece ou deliberadamente desconsidera o que é, para um filho, ter as decisões de sua vida tomadas por duas pessoas que não se suportam. Desconhecendo ou desconsiderando, o fato é que aqui o magistrado exime-se de exercer sua função: decidir. Ninguém nega que decidir, e principalmente decidir sobre a vida do outro seja algo fácil. Mas quem se dispôs a isso, que o faça!

Tudo em nome da manutenção da família tradicional: heteronormativa, patriarcal, de vínculos biológicos e regida pelo amor. Nem que seja à força! E nem que seja por meio da força cometida contra crianças e adolescentes.

Tudo em nome de um narcisismo dos operadores do Direito, poderíamos também pensar. Afinal, é improvável que não haja, por exemplo, magistrados homossexuais, adotados e que acreditem que a companhia de seus pais fez-lhes mais mal que bem. Mas o narcisismo é assim: há uma insaciável demanda por auto-aprovação ao lado de uma mortificante auto-exclusão. Por mais paradoxal que seja, o igual é tornado repugnante e se busca ser o que não se é, por imaginar que só assim é-se digno de aceitação. Caminho sem saída, tanto para o narcisista como para quem o cerca.

Não esqueçamos que o mesmo se dá com os magistrados heterossexuais, filhos biológicos e que possuam uma boa relação com seus cuidadores. A exclusão daqueles aparentemente diferentes só se dá porque neles reconhece-se similitudes. Recalcadas, pode ser. Afinal, no fundo só temos medo daquilo que conhecemos!

Aos magistrados que não se compreendem em nenhuma das duas “categorias”, fica o convite para que façam algo em relação a este tipo de legislação. Afinal, estão sendo cúmplices.


. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.   Facebook (aqui) .


Imagem Ilustrativa do Post: Children Walking on Trail // Foto de: Virginia State Parks // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/vastateparksstaff/5330849194 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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