Compreendo, você não vai

29/12/2021

– Ela está frágil... a presença amiga é importante. Eu seria importante.

– Então você vai lá?

– Viajaria em setembro, mas posso antecipar. Há compromissos, teria que remarcá-los... tenho que pensar...

– Não é coisa de muito cálculo. Se você é amigo, se ela carece de um amigo, se você deseja ser esse amigo, é ir...

– Poisé... não sei até que ponto devo me deixar levar, sabe?

– Sei, se você quiser que eu saiba, posso saber... sei como são essas coisas.

– Meus sentimentos estão confusos. Não sei que decisão tomar. Eu não entendo meus sentimentos.

– Espere, você está personificando seus sentimentos. Se há alguém confuso, é você. Se você não entende seus sentimentos, você não entende a si mesmo. Ademais, parece que você já se compreendeu: obrigação para consigo mesmo de ir versus pretextos para se convencer a não ir.

– As coisas já estavam claras entre nós; por mais delicada que seja a situação... não sei se muda o que eu sinto, o que ela sente. O passado... Provavelmente, afloram coisas mais profundas.

– Nada, não estamos falando de romance, nem passado, nem futuro.

– Sim.

– Como sim?

– Isso.

– Nem sim, nem isso. Falo de ir lá, dar as caras, dizer oi, falar o falável, desejar o desejável e sair de cena: “Olha, você me importa, se necessitar, chame, tchau”. Você entendeu, pare com isso.

– Sim, eu sei, claro que eu sei, iria para dar força, mas...

– Mas...

– É bem isso que me confunde... até que ponto uma comoção causada por um problema de alguém que me foi caro... se essa decisão... se eu não estou sendo levado por meus sentimentos, ou mesmo pelos sentimentos dela.

– Ora, você pretende ficar imune aos próprios sentimentos? Afetos não têm exatidão, não pedem argumentos consistentes. E daí que confundem? Não são mesmo explicáveis. A abordagem é outra: se te interessa a melhora dela; se a sua presença a fortalece... se ajuda...

– Por isso... é... acho que vou antecipar a viagem, mês que vem, ou antes... se der... dependerá de como as coisas se passem... Se ela morrer... pode morrer a qualquer momento... cirurgia é sempre um risco.

– Não, não há problema, não haverá problema. Se ela morrer, acabou; se ela sobreviver, tua viagem terá sentido. Seria um gesto solidário a uma sobrevivente, se houver uma sobrevivente.

– Mas, se ela piorar, ficar mesmo frágil... Ela não passará por isso incólume...

– Você pede um prognóstico para decidir? Sim, ela pode piorar; não, ela não passará ilesa. Ora, se ela morrer, não haverá nem ausência nem presença. Tudo estará acabado. A viagem terá sido apenas um transtorno.

– Um transtorno...

– Agora, se ela sobreviver, o que quer que você faça terá sentido; fragilizada, mais sentido terá a ausência, ou a presença. Isso se a sua presença ou ausência realmente, como você diz, importam.

– É, decido nas próximas semanas. Agora... Como se pensa em outra coisa nesses momentos?

– Não entendi!

– Isso me incomoda... qualquer opção me incomoda.

– Olhe, escolhas têm custos.

– Bem, penso que, com o tempo, assimilarei o decidido.

– Assimilamos qualquer coisa... justificamos tudo. Somos todos canalhas.

– É... é a humanidade.

– Sim, é o que dizemos quando necessitamos compartilhar desconforto: que somos todos nós.

– Só existimos devido a isso, é a nossa melhor qualidade...

– Sei, sei... necessidades da sobrevivência... a selva, o salve-se quem puder...

– Poisé...

– Compreendo...você não vai.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Defined by Time. // Foto de: Lauren Hammond // Sem alterações

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