A investigação criminal no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, tem ganhado importância, em especial por se traduzir como uma garantia do cidadão contra imputações criminais infundadas, sem provas suficientes de autoria e materialidade para eventual ação penal. É nesse contexto que se verifica a independência funcional dos Delegados de Polícia no exercício da atividade policial.
Alguns autores têm dificuldades em compreender essa mudança paradigmática no exercício da atividade policial. Como exemplo, cita-se Bruno Freire de Carvalho Calabrich[1] ao colocar que “a razão para que não se tenha conferido, na lei ou na Constituição, independência funcional a autoridades policiais é bastante simples (e deveria ser bastante óbvia). O Brasil precisou de mais de duas décadas para superar um regime ditatorial, em que instituições armadas atuaram de forma independente, sobrepondo-se ao poder civil”.
Apesar de existir uma lacuna constitucional sobre o tema, a independência funcional, como fundamento da atividade do Delegado de Polícia, decorre implicitamente do sistema constitucional vigente:
A leitura constitucional do tema indica que se a instituição Polícia Judiciária não tem autonomia orgânica, e dificilmente irá a tê-la, a função de Polícia Judiciária exercida pela Autoridade Policial na condução das investigações desfruta de autonomia como um imperativo decorrente de princípios constitucionais de maior envergadura.[2]
Os autores citam como principal fundamento constitucional o princípio da separação de poderes, no sentido da necessária autonomia do inquérito policial em relação ao processo (o que se traduz, portanto, numa autonomia em relação ao Poder Judiciário e ao Ministério Público):
Portanto, a investigação criminal se autonomiza diante do processo, cabendo dizer ainda que em grande parte dos casos existe inquérito policial sem a fase processual posterior, quando há arquivamento dos autos sem oferecimento de denúncia. Por isso, o inquérito policial embora possa ser um procedimento pré-processual, nem sempre tem essa natureza, e mesmo sendo, esta função não terá sido a única, o que confirma a autonomia do inquérito policial em relação ao processo criminal e, por conseguinte, a autonomia da Polícia Judiciária em relação àquela condição de mera auxiliar do Poder Judiciário.[3]
É possível citar outro fundamento constitucional: o art. 144, § 4º, da Constituição Federal. Pela leitura do artigo, verifica-se que somente é possível a Autoridade Policial cumprir a sua incumbência funcional de apurar as infrações penais, se tiver meios de fazê-lo de forma autônoma e independente, o que se traduz, portanto, na necessidade de lhe conferir essa prerrogativa em estudo.
Apesar dessa leitura constitucional, que confere com propriedade a independência funcional ao Delegado de Polícia, tal prerrogativa somente estará plenamente garantida quando à Autoridade Policial também for conferida a inamovibilidade, a vitaliciedade, salários condignos com a relevância e o risco do cargo e o foro por prerrogativa de função. Somente esse conjunto de prerrogativas será capaz de evitar as intervenções políticas no exercício de suas funções, de modo a possibilitar uma atuação imparcial da Autoridade Policial no curso do inquérito policial.
A Lei nº 12.830/13 trazia em seu corpo a independência funcional, nos seguintes termos: “O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”. Contudo, o dispositivo foi vetado ao argumento de que o seu conteúdo “poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal”.
Ora, como analisado, a independência funcional dos Delegados de Polícia decorre implicitamente do sistema constitucional vigente e o dispositivo vetado somente tornaria expresso algo que já consta do ordenamento jurídico. Na verdade, o veto decorreu de pressão do Ministério Público, ao argumento de que, na forma como redigido, o dispositivo autorizaria os Delegados de Polícia a negarem cumprimento às requisições do Parquet.
De qualquer modo, a atual ordem jurídica caminha no sentido de se prever expressamente a independência funcional aos Delegados de Polícia, sem a necessidade de se recorrer a uma hermenêutica baseada nas normas constitucionais vigentes. Cita-se, nesse sentido, a Constituição do Estado de São Paulo:
Art. 140, § 3º: Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.
Previsão similar consta de diversas Constituições Estaduais e todas contribuem para uma nova postura na atuação dos Delegados de Polícia. Não obstante, está em trâmite a ADI 5517, proposta em 2016 pelo Procurador-Geral da República, que questiona, entre outros, a independência funcional prevista na Constituição do Estado do Espírito Santo.[4] De acordo com o Procurador-Geral da República, a prerrogativa de independência funcional de delegado de polícia, “além de esdrúxula para a função”, é incompatível com o poder requisitório do Ministério Público (esse tema será mais bem analisado abaixo, dentro do tema do poder requisitório). Diversas outras ações similares foram propostas pelo Procurador-Geral da República contra Constituições de diversos Estados da Federação. Não obstante, a independência funcional tem se consolidado, cada vez mais, como condição para o adequado exercício da atividade policial.
Em razão dessa autonomia funcional da Autoridade Policial, faz-se necessário analisar dois limites: (1) a atuação da Corregedoria da Polícia; e (2) o objeto da ação civil pública por ato de improbidade.
O primeiro limite refere-se à possibilidade de a Corregedoria de Polícia analisar questões relativas ao poder decisório do Delegado de Polícia, que, no entender de algum magistrado, promotor de justiça, advogado ou qualquer pessoa do povo, não foi a decisão mais adequada ao caso concreto. Para tanto, faz-se necessária uma breve análise do papel da Corregedoria na estrutura da polícia.
A Corregedoria consiste em um órgão da Polícia Civil que tem por objetivo orientar e fiscalizar as atividades funcionais e as condutas dos membros da instituição. É importante compreender que, em regra,[5] não se insere nas funções do Corregedor punir os desvios de conduta praticados por policiais civis, competindo-lhe apurar os fatos trazidos ao seu conhecimento e levar à apreciação de algum órgão superior as questões relacionadas à atividade policial que se apresentem mais graves e que possam macular a imagem da Polícia Civil. Por isso, a Corregedoria tem de ser, primeiramente, orientadora e pedagógica. As recomendações que ensejem a punição somente devem ser tomadas quando essencialmente necessárias.
Note-se que as corregedorias dos Tribunais de Justiça e a Corregedoria Nacional de Justiça – órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça – não adentram no poder decisório de um magistrado; e nem poderiam, uma vez que o magistrado possui independência funcional em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Pelo mesmo fundamento, não cabe à Corregedoria de Polícia adentrar no poder decisório da Autoridade Policial. É também no mesmo sentido o teor da Súmula nº 9, aprovada no I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo: Repercussões da Lei 12.830/13 na Investigação Criminal, realizado na Academia de Polícia Coriolano Nogueira Cobra, em 26 de setembro de 2013, com a participação de Delegados da Polícia Civil do Estado de São Paulo e da Polícia Federal:
Súmula nº 9: Descabe instauração de procedimento administrativo de caráter disciplinar que tenha por objetivo único a análise relativa à decisão de natureza exclusivamente jurídica adotada pelo Delegado de Polícia e fundada em sua livre convicção jurídica motivada, subsistindo, todavia, a exigibilidade de explicitação da motivação fática e jurídica informadora daquele convencimento.
Ao contrário, nos casos em que algum magistrado, promotor de justiça, advogado ou pessoa do povo informe à Corregedoria acerca de uma suposta decisão tomada pelo Delegado de Polícia que não se mostrou como a mais adequada, cabe a esse órgão da Polícia Civil atuar ativamente no sentido de garantir o respeito às prerrogativas funcionais do Delegado de Polícia e instruir essas pessoas acerca da autonomia funcional da Autoridade Policial.
Quando um magistrado se equivoca na tomada de uma decisão, as regras processuais utilizam como instrumento de revisão o recurso, medida processual sem qualquer ingerência da respectiva corregedoria. Do mesmo modo, quando uma decisão do Delegado de Polícia não se mostrar a mais adequada ao caso concreto, caberá à legislação em vigor demonstrar o melhor caminho para a revisão da decisão, sem qualquer ingerência da Corregedoria de Polícia.
Nada obsta, e assim deve ser feito, que as Corregedorias de Polícia analisem eventuais desvios de conduta do Delegado de Polícia, que são as questões exteriores ao seu poder decisório (mas que podem influenciar nesse poder), por exemplo, corrupção, prevaricação e favorecimento de pessoas decorrentes de amizade, fatos que devem ser materialmente comprovados para eventual punição.
O segundo limite refere-se ao objeto da ação civil pública por ato de improbidade. Em alguns Estados da federação, muitas vezes decorrente de uma visão míope do Ministério Público, Promotores de Justiça interpõem ação de improbidade em face do Delegado de Polícia por não ter lavrado um auto de prisão em flagrante delito, quando, no entender do Parquet, assim deveria proceder a Autoridade Policial.
O fundamento segue o mesmo entendimento exposto desde o início desse tópico, ou seja, uma vez motivado juridicamente o ato do Delegado de Polícia, não há que se falar em ato de improbidade por um despacho contrário ao entendimento do Ministério Público, mesmo que o entendimento do Delegado de Polícia seja minoritário. Sobre o tema, cita-se um trecho da decisão judicial do Excelentíssimo Felipe Marques Dias Fagundes, magistrado no Rio Grande do Sul:
Tenho a clara convicção de que não se pode atribuir ao agente público a prática de ato de improbidade administrativa quando seu agir encontra respaldo ao menos em parte da jurisprudência dos tribunais. Convenhamos que é um contrassenso que a jurisprudência do TJRS, minoritária ou não, externada em voto vencedor do Des. Nereu José Giacomolli, festejado processualista, reconheça a ilegalidade das provas coletadas por conta de mandado de busca e apreensão cumprido pela polícia militar, ilegalidade que, por óbvio, não autoriza a prisão em flagrante, e ao mesmo tempo se pretenda imputar conduta ímproba ao demandado porque não lavrou auto de prisão em flagrante lastreado nessas mesmas provas ilegais.[6]
Note que o posicionamento aqui defendido tem por finalidade evitar a incidência do Delegado de Polícia, seja pela Corregedoria da Polícia Civil, seja pelo Poder Judiciário, no chamado crime de hermenêutica. Esse crime consiste em uma referência ao Recurso de Revisão Criminal nº 215, julgado pelo STF, em 1897, no qual o patrono do requerente, o advogado Rui Barbosa, sustentou que o Tribunal Estadual havia instituído o crime de hermenêutica ao punir um magistrado por interpretar o ordenamento jurídico. Desse modo, não pode o Delegado de Polícia ser punido por interpretar as normas a partir da Constituição Federal, cabendo ao sistema processual penal mostrar o caminho para a revisão do seu entendimento.
Por fim, é importante ressaltar que a independência funcional aqui defendida não diz respeito às questões hierárquico-administrativas, mas, sim, às questões decisórias da Autoridade Policial, relativas à sua função policial.
[1] CALABRICH, Bruno Freire de Carvalho. Pequenos mitos sobre a investigação criminal no Brasil. Garantismo penal integral. Bahia: Podivm, 2010, p.105.
[2] GOMES, Luiz Flávio e SCILAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. 2008. Disponível em . Acesso em 21/10/2011.
[3] GOMES e SCILAR, 2008.
[4] Art 128, § 6º, da Constituição do Estado do Espírito Santo. O Delegado de Polícia é legítima autoridade policial, a quem é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária”.
[5] As funções do Corregedor variam em cada ente federativo, podendo determinado Estado ter uma legislação distinta do que foi colocado no texto, no qual o Corregedor teria função correcional, tratando-se, nesse caso, de uma exceção.
[6] A íntegra da decisão pode ser encontrada no site , acesso em 01/03/2014.
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