Comportamento social, "módulos mentais" e o objeto do direito (Parte 2)

11/06/2015

Por Atahualpa Fernandez - 11/06/2015

“Todo aspecto de la vida tiene una base biológica en exactamente el mismo sentido, que es que a menos que sea biológicamente posible, no existiría.”

Louis Menard

Parte 2

Recapitulemos: admitido que o direito define, em termos normativos (e valorativos), a tessitura social e que toda relação jurídica consiste, em última instância, em uma relação social, parece razoável inferir que se retiramos o “véu normativo” que recobre as relações consideradas jurídicas, nos encontramos diante de vínculos sociais relacionais já antes estabelecidos pelo homem, sobre os quais, unicamente, as normas jurídicas incidem atribuindo direitos e deveres recíprocos aos sujeitos envolvidos. Nada mais.

Agora, são infinitos e ilimitados os tipos de relações jurídicas tuteladas pelo direito ou, ao contrário, existem constrições inatas no pensamento ético-social humano que restringem – de forma similar ao que ocorre com a linguagem – o conjunto dos vínculos sociais relacionais humanamente possíveis (que subjazem às relações jurídicas) a um subconjunto relativamente pequeno de sistemas lógicos possíveis? Qual seria o “núcleo duro” constitutivo desse conjunto de vínculos sociais relacionais através dos quais os humanos constroem estilos aprovados de interação e estrutura social regulados pelo direito (as relações jurídicas)? De não ser possível responder a estas questões, o sentido e a função do direito no universo do existir humano seguirá sendo um enigma, sempre aberto as mais disparatadas suposições acadêmicas. Vejamos por parte.

Em 1993, Alan P. Fiske, apoiado em suas próprias observações antropológicas e na leitura dentro de sua teoria dos descobrimentos de um grande número de autores em múltiplos campos - o que ele chama una aproximação  “indutiva” -, desenvolveu um modelo de relações sociais humanas que constituem uma sorte de  arquétipos fundamentais inatos (que todas as culturas humanas utilizam, normalmente combinando vários deles) para definir relações e roles típicos, com os que logo organizar os diversos âmbitos sociais. Sobre a base deste trabalho acerca da natureza das relações humanas e sua respectiva variação transcultural, Fiske - cuja inovadora proposta sigo não somente por sua boa qualidade formal, senão também por sua deslumbrante virtude empírica – propõe que existem quatro formas elementares de sociabilidade, quatro modelos básicos para compreender as relações sociais, cada qual com uma psicologia distinta.

Simplificando, os modelos elementares propostos por Fiske são:

- Comunal Sharing (comunidade): Relação de equivalência em que as pessoas têm um sentido de identidade comum, isto é,  se fundem para o propósito da relação, de maneira que os limites individuais se tornam irrelevantes. As pessoas se fixam na pertença grupal e na identidade comum, não na individualidade. Importa-lhes o grupo, superior a cada um dos indivíduos, no fato de pertencer a ele e o contraste com aqueles que não pertencem.

- Authority Ranking (autoridade): Relação dentro da qual cada um é considerado como possuidor de uma importância, um status ou rango social determinado por certa característica. São relações assimétricas que se materializam em uma inclusão hierárquica de sujeitos de rangos mais baixos como subordinados na esfera de outros de rango mais alto. Segundo Fiske,  a subordinação que surge da aplicação deste modelo é legítima; os inferiores respeitam a relação de subordinação; mostram deferência, lealdade e obediência, a câmbio do qual recebem proteção, ajuda e apoio de seus líderes.

- Equality Matching (igualdade): Relação em que existe um vínculo relacional igualitário entre pares, que são indivíduos distintos e separados, mas iguais aos efeitos da relação. A presença social (contribuição, benefícios, influência, etc.) de cada agente corresponde “um a um” com a do outro. As equivalências categóricas permitem que as relações se equilibrem e se expressem em tomar turnos, reciprocidade em espécie, vingança “olho por olho”, distribuição em partes iguais, etc. Para conservar a igualdade, os bens e interesses em jogo devem ser  qualitativamente iguais, ou fazer-se equivalentes por um acordo social.

- Market Pricing (proporcionalidade, que S. Pinker ampliou e rebatizou como modelo “racional-legal”: um sistema de normas elaboradas racionalmente e implementadas mediante regras formais): Relação mediada por valores determinados por um sistema de mercado. Os indivíduos decidem interagir socialmente se resulta racional fazê-lo de acordo a esses valores, que definem uma métrica universal (em preço, utilidade ou tempo) com a qual é possível comparar quantitativamente pessoas e recursos, sejam ou não qualitativamente semelhantes. A avaliação se expressa em termos de uma razão de intercâmbio, o preço. Os agentes estruturam sua interação de maneira proporcional a essas razões de intercâmbio.

Ao sustentar que estas quatro estruturas vinculantes elementares e suas variações justificam todas as relações sociais entre todos os seres humanos de todas as culturas, Fiske sugere, como única explicação possível deste fato, que estão arraigadas na complexa estrutura da mente humana, isto é, que vão estreitamente ligadas em nosso programa ontogenético ao desenvolvimento da faculdade (e ainda da necessidade emocional) de travar relações sociais. São estruturas formais; em conjunto formam uma espécie de "gramática generativa" das relações sociais, que é enriquecida de conteúdo concreto pela tradição de cada cultura. Como explica Steven Pinker, cada um dos quatro modelos emerge nas diversas culturas em uma grande diversidade de ações sociais, crenças ou juízos, pelo que não podem ser o produto de condições particulares da experiência subjetiva de cada indivíduo, senão que devem ser produtos endógenos da mente humana gerados por modelos universalmente compartidos de e para as relações sociais.

Os quatro modelos são utilizados pelos participantes em uma sociedade para coordenar suas ações em relações sociais significativas: estruturam os roles focais da sociedade, permitem explicar, compreender e predizer a ação dos demais e, portanto, ajustar-se a ela de uma maneira que os outros podem por sua vez identificar e compreender. Por outra parte, possuem uma função normativa, enquanto estruturam as expectativas mútuas entre os participantes em uma relação, e também o que se espera de terceiros (por exemplo, de quem mantém outras relações com esses participantes e devem eventualmente sancionar as transgressões) e de quartos (por exemplo, quem observa se os terceiros cumprem ou não em sancionar aos transgressores com os quais se relacionam).

Esta ideia proposta por Fiske – com exploração do significado empírico de que a arquitetura cognitiva de nossas mentes seja constitutivamente social – parece dar  resposta  a muitos dos interrogantes sobre a forma como a organização de domínio específico da mente humana afeta as relações sociais  e condiciona nossas intuições morais : o decidir entre o que é bom e o que não o é em relação aos próprios interesses e dos demais supõe o sentido do que é socialmente apropriado no entorno em que estabelecemos nossos vínculos sociais relacionais.

Como não é possível tratar de relação jurídica (isto é, as relações pessoais dos indivíduos humanos que o direito identifica como tal) sem tomar como referência a relação social que a consubstancia e lhe subjaz, um simples exame das características dos quatro tipos de vínculos sociais relacionais propostos por Fiske permite descobrir poderosas e firmes vias de articulação jurídica dessas formas de vida social: modos adequados de combiná-las, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos.

O substancial da contribuição de Fiske não é, claro está, somente o de demonstrar como em culturas distintas se dão atividades humanas que podem facilmente enquadrar-se  em algum destes quatro modelos. O importante é que este antropólogo defende que tal difusão módulo/domínio específico se dá porque está incorporada  de forma necessária  na mente humana, ou seja, de que,  em particular no que diz respeito ao contexto de nossa vida social, estamos cognitivamente dotados com ao menos quatro modos relativamente independentes para processar informação de tipo social relacional, cada um dos quatro provido de um peculiar filtro excludente de informação.

Outro importante aporte do trabalho de Fiske consiste precisamente em admitir que, para manifestar-se, esses quatro modelos relacionais necessitam da aplicação de regras culturais específicas. Os modelos básicos para a construção das relações sociais são adotados, aplicados, modificados e incorporados à matriz de símbolos e significados que constituem particularidades da cultura humana. Ao incorporarem-se a uma cultura particular, os modelos tomam uma forma peculiar e manifestam aspectos idiossincrásicos. Como as culturas humanas exibem uma quantidade assombrosa de variantes e combinações destas relações elementares para organizar as funções sociais básicas, a experiência histórica indica a cada sociedade que modelos ou composições deles dão bons resultados em seu contexto, movendo-a a cambiar o desenho conforme variam  as circunstâncias.

Nada obstante, esses quatro modelos, apesar de sua variabilidade em suas manifestações culturais são, segundo Fiske, analiticamente discerníveis. Seu status de entidades culturais é uma característica e uma importante qualidade distintiva dos modelos. Assim, os quatro modelos de sociabilidade proporcionam os fundamentos para a constituição cultural de relações sociais e de status. Isto é, proporcionam o conjunto de marcos básico para a construção cultural do mundo social. Cada cultura os estende, elabora, combina e aplica de forma diferente para alumbrar o que chamamos famílias, alianças, sistemas matrimoniais, sistemas jurídicos, políticos e econômicos, e demais relações, redes e grupos sociais.

Este é um descobrimento que, por sua natureza e riqueza prático-experimental, deveria fazer refletir profundamente a qualquer um que pretenda fazer filosofia ou ciência jurídica. Isto pela simples razão de que se o direito não é algo meramente substancial, exclusivamente normativo ou simplesmente nominal, senão que acontece nas relações intersubjetivas em que os homens se reconhecem recíproca e legitimamente como pessoas, o fato de que nossa existência seja ontologicamente coexistencial se traduz em que o sentido do direito e o próprio processo de sua realização estão na convivência humana, cuja natureza repousa nas quatro formas de vida social arraigadas em nossa arquitetura cognitiva e que são exibidos por qualquer cultura humana.

O modelo proposto por Fiske permite-nos explorar o problema da função do direito e o da relação entre o natural e o cultural desde uma perspectiva distinta, capaz de articular a diversidade das formas culturais com a unidade do gênero humano: uma natureza humana comum em que a mente humana não é um recipiente vazio à espera de ser completado por um número infinito e ilimitado de relações sociais tuteladas pelo direito, senão que está constituída por um conjunto muito rico e diverso de mecanismos específicos produto da evolução natural e que inclui capacidades cognitivas relacionais especificamente sociais.

Este peculiar modelo unificado das relações sociais, fundado na natureza humana, é central para a finalidade (e funcionalidade) do direito porque permite a sua utilização e manipulação para enfrentar-se, de forma real e factível, às hipertrofias e  hipotrofias dos distintos (quatro) vínculos sociais relacionais; quer dizer, aos excessos e defeitos das relações de comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos sociais de igualdade nos que se inserta a  própria relação  de cidadania. Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também à fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições antiacumulatórias e antirreacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da vida social comunitária; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a “eterna vigilância cidadã”, manifestação prioritária dos vínculos de comunidade e de igualdade, que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte do Estado afete a qualquer dos quatro vínculos sociais relacionais e degrade a res publica a imperium.[1]

 Em definitivo,  uma vez já dado por assentado que toda a relação jurídica tem por base uma relação social – portanto, em um dos quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo homem –, isto é, que as relações consideradas jurídicas são aquelas relações sociais dos indivíduos humanos sobre as quais incide uma norma jurídica atribuindo direitos e deveres recíprocos, o objeto e a função de todo direito só pode ser o homem, residindo sua funcionalidade na articulação combinada do conjunto dos vínculos sociais relacionais em que o indivíduo se situa e para os quais parece estar desenhado para estabelecer ao longo de sua (evolucionada) existência.

Ademais, se os conflitos sociais, em sua maior parte, estão motivados, são organizados e julgados por referência aos quatro modelos básicos, o que seja justo em uma relação concreta depende crucialmente de em que modelo relacional, ou combinação deles, se encontre modelada a relação no contexto social de referência. Cada um deles é usado como padrão para definir formas de coordenação entre as pessoas e de reconhecimento entre elas como sujeitos sociais e titulares de direitos e deveres válidos que surgem no marco do modelo elementar de que se trate. Cada modelo gera dentro de si e de sua dinâmica critérios específicos de justiça, que exigem ajustar o reconhecimento do que é devido aos agentes envolvidos segundo a natureza da relação que estabelecem.

O que implica que os modelos elementares também resultam relevantes para o direito e o sentido da justiça concreta, na medida em que o conteúdo, a finalidade e a função destes residem precisamente na forma como se soluciona os conflitos parciais ou totais de interesses inerentes aos quatro tipos de vínculos sociais relacionais, cada qual dependente de um conjunto de potencialidades psicológicas exclusivas, evolucionadas e distintas segundo o padrão dos interesses convergentes e divergentes próprios de cada relação.

E isto tem uma consequência importante: na medida em que se admite que o direito tem um caráter relacional, o seu processo de realização, desde uma perspectiva instrumental, pragmática e dinâmica, passa a ser concebido como um intento, como uma técnica para a solução de determinados problemas práticos relativos à conduta humana em sua interferência intersubjetiva, no contexto dos vínculos sociais possíveis (A. Kaufmann). Consequentemente, a melhor maneira de lograr que se plasmem as formas elementares de sociabilidade – comunidade, autoridade, proporcionalidade e igualdade – seria a de ir desenvolvendo instrumentos, mecanismo, estratégias ou discursos jurídicos adequados a sua justa e equilibrada articulação.

Trata-se, em síntese, de uma via que conduz a considerar o direito como  práxis social e que pressupõe, utiliza, e, em certo modo, dá sentido às demais perspectivas teóricas relacionadas com as dimensões estrutural/normativa, sociológica e axiológica do fenômeno jurídico (A. Kaufmann). Sendo assim, qualquer proposta teórica ou metodológica acerca do direito deveria considerar a circunstância de que toda a vida jurídica é, em essência, uma argumentação sobre as diversas vias por meio das quais se articulam essas quatro formas de vida social arraigadas na complexa estrutura da mente humana e irredutíveis entre si. Depois de tudo, isto é o que pressupõe conceitualmente que a psicologia humana, a arquitetura cognitiva de nossas mentes, seja constitutivamente social - quer dizer, que nossos respectivos estados intencionais estão vinculados e se agregam constitutivamente às relações sociais.

Por dizê-lo de alguma maneira, é de todo desejável (recomendável, inclusive) que se parta de indivíduos dotados de inatas constrições cognitivas e emocionais para entabular determinados vínculos sociais relacionais (dos quais emergem a moralidade e a juridicidade), posto que, como a moral, a ideia do direito emana da e está limitado pela natureza humana. Esta impõe o que poderíamos chamar as “regras do jogo”, mas não o resultado final do discurso jurídico - pois este também se nutre da história e cultura humana.

Por último, mas não por isso menos importante, o mais significativo deste tipo de aproximação ao objeto do direito é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, os limites, as condições de possibilidade e o rol das relações jurídicas humanamente possíveis e, a partir daí, desenhar um modelo normativo e institucional que evite toda interferência arbitrária recíproca, garanta certa igualdade material e, em último termo, permita, estimule e assegure a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.


Notas e Referências:

[1] Mas não somente isso. Por exemplo, quando as pessoas têm ideias diferentes sobre qual desses quatro modos de interagir se aplica a um relacionamento em curso, o resultado pode variar de total incompreensão a uma grande contrariedade ou até hostilidade declarada. Pense, por um momento, em um convidado de um jantar oferecendo-se para pagar ao anfitrião pela refeição, em uma pessoa gritando uma ordem para um amigo ou em um empregado servindo-se de um camarão do prato de um empregador extremamente egoísta e autoritário. Equívocos nos quais uma pessoa concebe uma transação em termos de igualdade e a outra pensa em termos de apreçamento de mercado ou de autoridade são ainda mais comuns e podem ser ainda mais perigosos. Originam-se de psicologias bem diferentes, uma delas intuitiva e universal, a outra esparsa e aprendida, e os conflitos entre elas têm sido comuns no curso da história humana. A tragédia humana e o conteúdo do direito residem exatamente nos conflitos parciais ou totais de interesses inerentes aos quatro tipos de vínculos sociais relacionais, cada qual com uma psicologia distinta.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: People on Alexanderplatz Ⅰ // Foto de: Sascha Kohlmann // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/skohlmann/10797667135/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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