Como uma apresentação – Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos

09/07/2016

Podemos chamar este texto de "apresentação" ou mesmo de ”introdução". Alguns usariam um termo mais rebuscado, como "introito". Caso fosse elaborado por uma terceira pessoa, receberia o nome de "prefácio". No show business norte-americano, ouviríamos o apresentador falar "Let the show begin...". Nas lutas de UFC, o apresentador gritaria: "are you ready?"

Trata-se, na verdade, de um pouco de cada coisa. Nos futuros artigos, buscaremos entender essa loucura chamada direitos fundamentais, especialmente em suas ressonâncias no processo penal, palco, por excelência, de sua afetação, mesmo que em potência. Nós respondemos a este chamado e pensamos a investigação criminal e o processo penal a partir de um viés constitucional e convencional, capaz de colocar no centro do ordenamento jurídico os direitos fundamentais.

Não nos limitaremos a análises unilaterais, discricionárias, classistas e autoritárias presentes em muitos  "manuais" de processo penal, autodeclarados como a "doutrina especializada", que, de especializada, pouco ou nada tem. Esse cenário, na verdade, decorre da adoção de premissas equivocadas, como algo decorrente de um pensamento amplamente difundido por aqueles que não entendem a mudança paradigmática ocorrida na atividade policial após a Constituição Federal de 1988.

Com certa frequência, são expostas posições doutrinárias que qualificam o Delegado de Polícia como autoritário, ou mesmo pronunciamentos de certos Promotores de Justiça que afirmam o caráter totalitário inerente ao cargo, ou, ainda, a crença de que, por ser uma categoria armada, sua área de atuação deveria ser mínima e altamente controlada.

Como exemplos, podemos citar Bruno Freire de Carvalho Calabrich (2010, p.105), o qual afirma que "A razão para que não se tenha conferido, na lei ou na Constituição, independência funcional a autoridades policiais é bastante simples (e deveria ser bastante óbvia). O Brasil precisou de mais de duas décadas para superar um regime ditatorial, em que instituições armadas atuaram de forma independente, sobrepondo-se ao poder civil"; Paulo Rangel (2009. p. 96), para quem "há relatórios em inquéritos policiais que são verdadeiras denúncias e sentenças. É o ranço do inquisitoriarismo no seio policial"; e o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, ao prever, no Manual Nacional do Controle Externo da Atividade Policial (2012, p. 91), que "A titularidade privativa do Ministério Público para a promoção da ação penal pública, diz respeito também a todos os demais procedimentos e processos de natureza cautelar. O manejo de qualquer ação judicial, notadamente das cautelares, somente cabe a quem esteja na legítima condição de parte para o possível e futuro processo principal. É nessa perspectiva que se mostra necessária toda uma revisão acerca do manejo das ações cautelares atualmente cabíveis no âmbito estreito da persecução penal".

Não pretendemos, nestas breves linhas, refutar cada uma dessas tendenciosas afirmações. O "senso comum" do jurista, tal como desses acima mencionados, coloca-se como verdadeiro obstáculo à concretização de direitos fundamentais. Ir além do que parece supostamente certo e natural é o desafio que se coloca a esses profissionais, a fim de que possam entender a necessidade de romper determinados paradigmas.

A resistência à mudança é natural, mas também é um desafio imposto a todos. Requer estudo e, principalmente, o reconhecimento da necessidade de se abandonar o que até então era certo e natural, em especial por ser o padrão constitutivo de nós mesmos. Essa autorreflexão é o que torna o ser humano possível de viver um novo horizonte de possibilidades, ao mesmo tempo em que também é limitado pelas sombras do novo olhar. Toda nova luz, apesar de mudar o seu ângulo de incidência, projeta novas sombras.

Ir além deste "senso comum" é a proposta que colocamos à mesa. É por isso que somos apaixonados pelo que fazemos. Afinal, o que fazemos? Uma resposta simplista colocaria que somos Delegados de Polícia, mestres e doutorandos, autores de algumas obras relacionadas à Atividade Policial, como v.g., Delegado de Polícia em Ação e Temas Avançados de Polícia Judiciária, publicados pela Editora Juspodivm. No entanto, uma resposta mais completa não se limitaria a esses aspectos superficiais, mas exporia a preocupação natural existente entre constitucionalismo e democracia no âmbito da atividade policial e do próprio processo penal.

Chegamos, então, ao título desta coluna hebdomadária.

O título é uma menção e homenagem ao autor Jürgen Habermas, filósofo alemão, e à sua proposta da teoria da ação comunicativa. A coesão interna entre constitucionalismo e democracia, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre autonomia privada e autonomia pública, proporciona o medium necessário para a concretização do Estado Democrático de Direito:

Portanto, sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um medium para a institucionalização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um privado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele (HABERMAS, 2007, p. 301).

É importante ressaltar que, em termos liberais (Estado Liberal), a Constituição era um instrumento de proteção das liberdades negativas, voltado para a defesa de uma esfera privada, em face do Estado. Já no Estado Social, a Constituição se concretizava na medida em que os direitos positivos eram homogeneamente materializados (CATTONI, 2006, p. 112).

A Democracia, por sua vez, no Estado Liberal, era o locus que possibilitava a disputa do mercado, comprometida com os interesses da classe burguesa. No Estado Social, a Democracia realizava os direitos como se fossem prestações de forma homogênea a todos, sem a participação desses na tomada de decisões (CATTONI, 2006, p. 112-113).

Nos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social, os direitos fundamentais eram vistos como uma limitação externa à soberania popular, devendo esta agir de acordo com os direitos preponderantes em cada paradigma. Por exemplo, na França pós Revolução Francesa, verdadeiro expoente do Estado Liberal, a preponderância dos direitos civis e políticos fez prevalecer a publicação de uma legislação que buscava uma não atuação do Estado, com verdadeira prevalência do Código Civil Napoleônico.

Ao contrário, no Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais não limitam a soberania popular, uma vez que os dois são cooriginários pela coesão interna entre autonomia pública e autonomia privada. Por isso, a coesão entre Constituição e Democracia, que somente foi possível no paradigma do Estado Democrático de Direito, traduz-se na exata mediação entre direitos fundamentais e soberania popular:

Sob o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, a Constituição e o Direito Constitucional não limitam a Democracia; esta pressupõe aqueles, já que é através da mediação jurídica entre canais institucionais e não institucionais, regulados e não regulados, que a soberania popular se manifesta enquanto poder comunicativo (CATTONI, 2006, 116).

Desse modo, o exercício da soberania popular – espaço da autonomia pública – somente se dá por intermédio dos direitos humanos (ou direitos fundamentais) – espaço da autonomia privada – e, ao contrário, o adequado exercício dos direitos humanos ocorre por meio da soberania popular. Por exemplo, ganha espaço a efetiva participação popular nas tomadas de decisão, como as audiências públicas.

E qual a relevância deste olhar diferenciado sobre a atividade policial e o processo penal? Por hora, podemos citar, como exemplo, a obrigatoriedade de intimação do investigado ou indiciado, a qual somente poderia ser dispensada em casos excepcionais, v.g., quando o investigado estivesse foragido ou em local desconhecido pela Polícia Judiciária. É seu direito ter o poder de influenciar diretamente o resultado final da investigação criminal.

Complicado? Talvez! Não pretendemos esgotar a teoria de Habermas, algo impossível em tão poucas páginas. De qualquer modo, apesar de o título fazer uma referência (ou deferência!) ao autor, a coluna não se restringe a este referencial teórico. A relação entre constitucionalismo e democracia, portanto, é vista a partir de uma proposta mais ampla, que será apresentada aos poucos, na medida em que novos artigos forem publicados.

Sejam todos bem-vindos!!! Are you ready?


Notas e Referências:

CALABRICH, Bruno Freire de Carvalho. Pequenos mitos sobre a investigação criminal no Brasil. Garantismo penal integral. Bahia: Podivm, 2010.

CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. 228 p.

CONSELHO NACIONAL DOS PROCURADORES GERAIS DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS DOS ESTADOS E DA UNIÃO. Manual de controle externo da atividade policial. 2012. Disponível em: <https://www.mprr.mp.br/app/webroot/uploads/Manual_do_Controle_Externo.pdf>. Acesso em 27 de jun. 2016.

HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2007. 404 p.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 17. Ed. Rio De Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 96.

SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de polícia em ação: teoria e prática no estado democrático de direito. 4 ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

_____ (Orgs). Temas avançados de polícia judiciária. 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2016.


Imagem Ilustrativa do Post: Knockin' on Heaven's Door // Foto de: Franck Michel // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/franckmichel/5790053840

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura