Coordenador: Gilberto Bruschi
Tentarei delimitar, em brevíssimas linhas, uma crença que venho alimentando em um instituto que pode, segundo penso, vir a resolver, em muitos casos, o litígio pela via consensual, tão cara a esse novo Código de Processo Civil, contudo, com todo respeito aos que pensam em contrário, não podemos condicionar a sua caracterização ao aditamento obrigatório do pedido inicial, pois este pela urgência é feito somente com relação ao aspecto fático que dependendo da não impugnação pela parte contrária pode vir a estabilizar.
Refiro-me à estabilização da tutela antecipada, prevista no artigo 304 do Novo CPC, cuja análise, até por razões lógicas, deve estar atrelada ao exame do artigo 303. Nas palavras de Fredie Didier Jr., Rafael Alexandria de Oliveira e Paula Sarno Braga, os artigos 303 e 304 formam um amálgama. E justamente por isso, diante dessa necessidade de exame conjunto, parcela da doutrina enveredou em interpretações que não coadunam com a própria semântica dos mencionados textos normativos e, principalmente, com a finalidade mesma da estabilização.
Se, porventura, o parágrafo 1º do artigo 303 for analisado de forma isolada, seríamos levados a entender que o autor teria sempre de aditar o pedido, o que eliminaria completamente a razão de ser da estabilização. O importante, em nosso sentir, é permitir que o litígio se encerre com a tutela de urgência caso o autor não deseje formular qualquer outro pedido, não sendo, por conseguinte, necessário às partes que façam mais nada, se assim desejarem, evitando-se o processo tradicional – e é exatamente aí que se tem a grande novidade, o autor e o próprio réu numa espécie de negócio jurídico processual qualificado, se contentarem com a questão fática adiantada e não impugnada.
Mesmo respeitando posições em contrário como destacado, o mais relevante se encontra no próprio artigo 303, que permite ao autor elaborar pedido autônomo e antecedente de tutela provisória de urgência satisfativa. É daí que se pode extrair o devido contorno ao artigo 304. Mas verdade seja dita: faltou técnica por parte do legislador, e tudo leva a crer que ele sequer tenha notado a complexidade do tema, pois as mudanças são profundas e causam arrepios em todos que com elas se deparam e não fazem a interpretação sistemática que estamos defendendo.
É preciso definir como se opera a polêmica estabilização. O caput do artigo 304 nos impõe semanticamente que se faça a sua ligação com o artigo 303. Significa isso que ambos os dispositivos trazem em conjunto a possibilidade de que o autor opte em adentrar, em razão de manifesta urgência, tão somente com pedido restrito ao requerimento da tutela antecipada, nos moldes estabelecidos pelo artigo 303. A tutela antecipada eventualmente concedida tornar-se-á estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso (artigo 304).
É preciso ficar claro que não há obrigatoriedade de aditamento do pedido, o qual poderá ser feito, mas apenas se o autor desejar seguir com o processo em busca de solução assentada em cognição exauriente, ou seja, mesmo tendo comprovado a existência dos requisitos para concessão da satisfação fática e não tendo havido impugnação, deseja a satisfação jurídica.
Parece evidente, portanto, que a estabilização referida não se condiciona ao aditamento da petição inicial, devendo o autor indicar na petição inicial que pretende se valer do benefício previsto no caput do artigo 303, isso para que o demandado sopese a possibilidade de não impugnar e quem sabe tudo ficar resolvido somente com a decisão provisória concedida e em tese já cumprida.
Então aqui o ponto central da nossa tese: o demandado saberá antecipadamente que se não recorrer – único suporte fático que entendemos existente – a estabilização ocorrerá, e assim por opção das partes: primeiro do próprio autor que se limitou a elaborar pedido urgencial; depois do réu, que decidiu não recorrer porquanto, tendo cumprido a decisão (ou ciente de que terá de cumpri-la), sopesa o risco e resolve dar cabo ao litígio ali mesmo.
Em uma perspectiva prática, a estabilização assume viés de um negócio jurídico processual qualificado, por meio do qual as partes, cada uma a seu modo, decidem, sopesando riscos decorrentes do prolongamento da jurisdição, terminar o conflito a partir de solução fruto de cognição sumária. Afinal, sabe o autor, optando por prosseguir com a demanda, que corre risco de revogação futura da medida antecipada concedida e até de improcedência dos pedidos formulados; quanto ao réu, ao decidir recorrer da decisão antecipatória da tutela, arrisca-se a ser derrotado e, por conseguinte, condenado definitivamente em outro pedido ainda não formulado, suportando os ônus sucumbenciais.
A lei processual, por conseguinte, não força as partes a permanecerem apegados ao litígio. E vai além, pois também lhes oferece a possibilidade de negociar a estabilização da tutela e colocar termo ao conflito de interesses. Nada mais adequado, tendo-se em vista que um dos pilares do Novo CPC é exatamente o evidente prestígio ao auto regramento da vontade das partes e com esse negócio antecipa-se todas as fases do processo, resolvendo-se também a questão meritória no aspecto fático e com isso as partes se contentam com a única decisão proferida e aceita.
Em complemento, ocorrida a satisfação fática via deferimento e efetivação da tutela antecipada, a solução jurídica, por meio de cognição exauriente, talvez se apresente dispensável na visão dos litigantes. É que o mais importante, ao menos para o autor, é obter na prática o que conseguiu – e, em muitos casos, está usufruindo ou já usufruiu – por intermédio da decisão liminar, enquanto que para o réu é evitar que sua situação jurídica seja ainda mais prejudicada.
Não se pode olvidar, de outra banda, que o instituto é democrático. Como afirmado, o pedido a ser formulado, em atenção ao caput do artigo 303, está restrito à urgência, razão pela qual o réu claramente saberá que o máximo de sua perda refere-se aquilo já concedido Sem contar que às partes é facultada a possibilidade de questionar até mesmo a estabilização inicialmente aceita, desde que o façam em dois anos – lembre-se que a estabilização da tutela nunca conduzirá à coisa julgada e sim à perenização dos efeitos práticos da decisão.
Noutras palavras, o instituto é tão bom que tanto autor como réu têm dois anos para melhor refletirem e, se caso, atacarem a estabilização por eles inicialmente negociada a partir de decisão baseada em cognição sumária.
Significa isso que não apenas vícios de consentimento e nulidades são capazes de por abaixo o acordo entabulado acerca da estabilização, pois o Novo CPC institui uma espécie de “direito de arrependimento”. E para tanto não há outros requisitos senão o respeito ao prazo de dois anos.
Para sintetizar nosso pensamento: i) feito o pedido e concedida a tutela antecipada, o único suporte fático a sua estabilização é a inexistência de recurso; ii) é preciso que o autor registre na petição inicial sua pretensão de usufruir os benefícios previstos no artigo 304; iii) não é adequado condicionar a estabilização ao aditamento do pedido, o qual somente ocorrerá se o autor desejar seguir adiante a fim de obter decisão fundada em cognição exauriente; iv) a estabilização se consubstancia em um negócio jurídico processual qualificado, por meio do qual ambos os litigantes aceitam a perenização dos efeitos da tutela de urgência deferida antecipadamente, resolvendo-se o conflito de pronto, não obstante a eficácia da decisão condicionar-se ao decurso do prazo de dois anos.
Portanto, o laboratório da vida prática, com a vigência do Novo CPC desde março de 2016 entrou em cena e o instituto precisa ser melhor difundido e aí será testado em sua operacionalidade e importância. E é preciso fazê-lo sem a necessidade de interpretação extensiva para exigir requisitos não previstos em lei, sendo imperioso que se traga ao final um exemplo de que na realidade já temos esse tipo de negócio acontecendo, contudo fazíamos sem nos tocarmos e em outro momento processual, na qual também pode continuar a ser feito.
Referimo-nos a um caso muito comum, pelo menos dentro de nossa realidade como Juiz de Vara Cível não especializada, quando da audiência preliminar e hoje para os Juízes que realizam a audiência organizadora e de saneamento, se converse sobre a possibilidade de acordo e quase sempre o atingíamos de modo muito simples, pois como o autor já teve, por exemplo, naquele momento do processo, a sua cirurgia ou tratamento realizado nos casos de tutela de saúde, muitas vezes com quantias consideráveis, dispensa-se possível indenização por dano moral em razão da possibilidade de perder a causa no mérito.
E o faz sobre a premissa de que pode vir a ter que ressarcir a empresa que já pagou a cirurgia ou tratamento não autorizado administrativamente e que culminou com o ingresso da ação, que poderia ter pedido somente a obrigação de fazer e não cumulada obrigatoriamente com o pleito de dano moral e que no futuro a parte poderá optar, diferente do sistema antigo que não permitia, somente pela tutela de urgência antecipada acaso requerida de forma antecedente e aqui como destacado tivemos a grande novidade.
Já as empresas também sopesam e veem que na realidade analisando melhor a questão, sequer deveria ter sido negado o procedimento médico necessário administrativamente e vendo que a tese exposta na contestação pode não vingar e terá que pagar ainda um valor de indenização por dano moral, resolve fazer o acordo para que tudo fique como está.
Ou seja, como já pagou a cirurgia ou tratamento, abre mão de continuar o processo discutindo sua tese, consolidando-se o consenso, com o autor tendo a segurança jurídica de que não pagará nada a título de possível ressarcimento e nem a empresa nada a título de possível dano moral.
Este tipo de acordo nesses casos sempre acontecia e pode continuar acontecendo dentro do modelo proposto e os próprios advogados quando adentram com a ação já estão conversando com seus clientes nessa linha e muitas vezes seus honorários são acertados de plano e quando não, na hora do acordo, o próprio autor lhe paga, pois como o tratamento médico é muito caro, o proveito econômico obtido com a ação já fora satisfatório.
Nessa linha de raciocínio, porque não imaginar que tudo isso poderá acontecer nesses casos e em outros, até mesmo contra o Poder Público em também em casos de saúde, a partir da estabilização, já que a mudança seria cronológica, em vez de se fazer o acordo em audiência preliminar como outrora, faríamos agora logo após a concessão da tutela de urgência requerida em caráter antecedente.
Portanto, esse acordo inicial para nós é muito factível e ocorrerá com frequência em todos os direitos materiais que sejam passíveis de composição imediata e nos outros promoverão a reflexão no mínimo para também terminamos tudo com as tutelas de urgências antecipadas, não podendo se aceitar a interpretação que para haver a estabilização da tutela antecipada sempre ter que haver aditamento do pedido inicial.
Daí a nossa crença de que o instituto, na forma analisada, será de grande valia para ao mesmo tempo combater os efeitos odiosos da morosidade, trazendo segurança jurídica e promovendo o equilíbrio ideal de busca desse novo CPC.
E tal código foi tão bem recebido pelos processualistas porque prioriza a comparticipação e efetiva cooperação entre todos os atores, incluindo o Juiz, que deixa de ser o protagonista com suas decisões isoladas e passa a levar em consideração com mais evidência o que as próprias partes desejam, e a estabilização, na forma aqui preconizada é consentânea com todos esses valores.
Conheça a obra "Tutelas de Urgência - Sistematização Das Liminares", do autor Herval Sampaio.
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