Como iguais  

30/03/2021

Coluna Justa Medida

A relevância da pauta é perene, e a fala, neste aspecto, é cíclica. Precisamos falar das normas antirracismo. Precisamos observar sua eficácia enquanto política pública, considerando um cenário caótico de pandemia que expõe as chagas do racismo. Quão empenhados estamos em lançar mão da legislação antirracismo e erradicar as estruturas discriminatórias do Brasil?

Precisamos abordar as racialidades. A teoria da cidadania trata a problemática da população negra no contexto pós-colonial e escravagista; Tamires Sampaio sintetiza as aplicabilidades do preconceito e da discriminação nesta dinâmica, demonstrando a inserção da teoria de Hannah Arendt na sociedade brasileira.

As relações raciais no Brasil são pautadas pelas violências simbólicas e imprimem em grupos étnico-raciais características supostamente justificadoras de condutas incompatíveis com o ordenamento jurídico pátrio, enquanto impõem a grupos étnicos dominantes uma neutralidade aparente, que confere um falso estado de justiça, no qual não se concebe a existência de tratamento discriminatório.

Não há explicação; o rosto negro tem o estereótipo do bandido, algo já declarado pelo Poder Judiciário. Diante de padrões racistas tão gritantes, estamos preparados para o corte nas carnes brancas? Sem o debate das racialidades no contexto social, não há como conferir plena efetividade da principiologia constitucional. Pessoas negras continuarão sendo linchadas em supermercados, crianças negras continuarão desaparecendo de suas casas, mulheres negras continuarão sofrendo assédio moral em seus locais de trabalho.

Há fundamento histórico, fartamente documentado. Foram séculos de retiradas sistemáticas de homens, mulheres e crianças de seus lares, com a substituição violenta de todos os seus padrões identitários, a ponto de se impossibilitar recuperação e retomada destes direitos. O mito da democracia racial não permite o exame destas temáticas.

E assim, pessoas brancas cultuam seus nomes italianos, enquanto pessoas negras têm roubado o direito de cultuar seus nomes ashanti. Pessoas brancas traçam genealogias completas, enquanto pessoas negras mal sabem suas origens regionais. Pessoas brancas celebram o direito de exercitar suas tradições e praticar suas religiões, enquanto pessoas negras são forçadas a rejeitar tradições e tem suas religiões vilipendiadas em horário nobre; a mitologia africana e indígena só têm visibilidade quando embranquecidas.

São rastros de um regime que destroçou sociedades inteiras, e afetam a compreensão de papéis sociais, a autoestima, as inserções familiares, trabalhistas, estudantis, tributárias, ambientais, de saúde, alimentares, imobiliárias, e muitos outros campos na contemporaneidade; embora a principiologia constitucional assegure pleno acesso e usufruto, para as pessoas negras, o entrar, permanecer, ascender e usufruir é quebrado por um véu invisível, mas forjado no titânio das estruturas discriminatórias.

Não se pode conceber uma democracia racial se os grupos étnicos historicamente oprimidos não possuem um patamar de equidade perante os chamados grupos dominantes, mormente pela dimensão das violências que lhe foram (e continuam sendo) impingidas, com consequências duradouras. Lélia Gonzalez ensina que “desde a independência aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática político social preocupada com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira.”

A relação entre os corpos negros e o Estado se dá em contexto de conflito. Existe um contingente de pessoas que o Estado trabalha para servir e proteger, ao mesmo tempo em que existe um contingente de pessoas que o Estado trabalha para combater e abater. E tais contingentes são separados por cores e raízes étnicas; os índices de letalidade policial são provas dolorosas desta assertiva.

A Lei Caó marca o início da jornada do Estado brasileiro em reparar sua dívida histórica com a população negra, buscando cidadania para o povo preto. Eis uma norma paradigmática, de valor inestimável. Caó alude à necessidade de repensar o Brasil, reinserindo a discriminação positiva - já em voga desde a década de 60 - no ordenamento jurídico, e tenta reverter a lógica lombrosiana em favor da população negra. É uma estratégia arrojada que busca o rompimento de estruturas discriminatórias por meio da aplicação das sistemáticas de criminalização contra o privilégio branco.

No entanto, o mito da democracia racial impede a efetividade de políticas antirracistas iniciadas pela Lei Caó. O exemplo doloroso de Simone André Diniz prova esta assertiva: a polícia judiciária, o Ministério Público e o Poder Judiciário, apesar das evidências e da confissão dos agentes, e com a norma paradigmática em vigor, tipificando as condutas confessadas como criminosas, afirmaram que o crime não existia.

As Cortes Internacionais julgaram o Estado brasileiro responsável pela violação do direito à igualdade perante a lei, à proteção judicial e às garantias judiciais, pautando especificamente a Lei Caó para proteção da população negra no Brasil. Esta não foi a única ocasião em que o Brasil foi levado às Cortes Internacionais por suas práticas racistas institucionalizadas.

Passados 32 anos deste marco político, ainda precisamos debater a construção de práticas antidiscriminatórias. A norma tornou-se um marco regulatório para a desconstrução do Estado antiNegro, abrindo caminhos para uma série de outras normas, que cimentam políticas públicas com escopo maior de atuação; mas precisamos fazer a nossa parte.

A aproximação das minorias debaixo da força da Lei Caó tem provocado o Estado a mudanças forçosas e reações dolorosas. O cenário de pandemia expõe a tokenização excessiva das pessoas negras e o projeto de descaso com este grupo social, que é a maioria quantitativa no país. A população negra no Brasil é, sempre foi, e caso nada se altere, continuará sendo um grupo social vulnerável. Há que se reconhecer e aplaudir a iniciativa da Lei nº 7.716/89, que inicia esta longa jornada; mas ainda há muito trabalho pela frente. E talvez, o labor nunca se acabe. Como o preconceito. E como as tarefas de Sísifo.

 

Notas e Referências

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