Como garantir a privacidade nas Cidades Inteligentes?    

18/07/2020

Coluna Digitopia / Coordenador Marcelo Chiavassa

Existem elementos chaves que podemos detectar nas diversas conceituações do “smart cities” ou “cidades inteligentes”[1], seriam eles: (i) o uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) para melhoria do uso dos recursos e eficiência dos serviços públicos; (ii) qualidade de vida e sustentabilidade; (iii) insfraestrutura física e de rede; e, (iv) integração de sistemas e infraestrutura, gerando eficiência.

O Ranking Connected Smart Cities, de setembro de 2019, analisando 70 (setenta) indicadores, revelou que, no cenário brasileiro, a Cidade de Campinas- SP seria a mais inteligente, considerando indicadores de economia, tecnologia e inovação, empreendedorismo, governança e mobilidade. A Capital paulista ficou em 2º lugar[2].

É indiscutível que os avanços tecnológicos proporcionam eficiência na gestão da coisa pública, todavia, para propiciar tais melhorias, este avanço se estrutura em tratamento de dados, anônimos ou pessoais. Ou seja, o tratamento de dados é inerente às cidades inteligentes. Surge assim a preocupação: quando o tratamento é de dados pessoais (identificados), há limites? Como são garantidas a privacidade e a segurança da informação dos titulares de dados, nestas situações?

Considerando esta temática, Ben Green[3] em artigo escrito ao New York Times[4] analisou, sob este enfoque, uma das funcionalidades instaladas em Nova York: os quiosques “LinKNYC”. Segundo o autor os quiosques oferecem wi-fi público, ligações domésticas gratuitas e portas USB, por meio de uma PPP com o Consórcio Empresarial CityBridge (realizado entre Sidewlak Labs e a Alphabet, empresa controladora do Google); no texto, o autor ainda sugere que apesar de o Consórcio declarar o tratamento de dados anônimos, o sistema utilizado registraria um identificador exclusivo para cada dispositivo conectado, rastreando movimentos e podendo ser utilizados para veicular anúncios.

Este é um dos casos que revelam a necessidade de o Poder Público, ao impulsionar e estruturar funcionalidades inteligentes, não fazê-lo sem se ater às questões de privacidade e proteção de dados pessoais, bem como de segurança das informações e, no caso brasileiro, considerar o Marco Civil da Internet (L.12.965/14), o Decreto que o regulamenta nº 8.771/2016[5], bem como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (L.13.709/18), com data de entrada em vigor em agosto de 2020.

Vale destacar que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais não se aplicaria diante de atuação do poder público relacionada a fins exclusivos de (i) segurança pública; (ii) defesa nacional; (iii) segurança do estado; e, (iv) atividades de investigação e repressão de infrações penais[6].

Destes textos legais, pode-se extrair a mensagem de que o avanço tecnológico deve se dar de forma sustentável, observando a supremacia do interesse público e os direitos e garantias individuais (art.5º, da CF), a fim de que este represente efetiva melhoria na prestação de serviço público, pois, do contrário, consistirá em prestação de serviço inadequada, colidindo, igualmente, com o Código de Defesa do Consumidor (art.22[7], do Código de Defesa do Consumidor – L.8.078/90).

Sendo assim, o tratamento de dados pelo Poder Público, ressalvadas exceções contempladas pela legislação e justificadas no interesse público em detrimento do particular[8], deve se dar em consonância com o Privacy by Design[9], princípio que apesar de não expresso na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, encontra-se em concordância com esta.

Diante do exposto, verifica-se ser recomendável que o avanço tecnológico se dê, na medida do possível, estruturado em tratamento de dados anônimos, de modo que as funcionalidades que impulsionam as Smart Cities utilizem dados pessoais somente quando estritamente necessário (princípio da necessidade). Assim, quando as melhorias na prestação de serviços públicos dependerem de tratamento de dados pessoais, será necessário ao Poder Público observar os limites impostos pela supremacia do interesse público, direitos e garantias fundamentais, principalmente, a privacidade e proteção de dados.  

 

Notas e Referências

[1] “A smart city is a place where traditional networks and services are made more efficient with the use of digital and telecommunication technologies for the benefit of its inhabitants and business.  A smart city goes beyond the use of information and communication technologies (ICT) for better resource use and less emissions. It means smarter urban transport networks, upgraded water supply and waste disposal facilities and more efficient ways to light and heat buildings. It also means a more interactive and responsive city administration, safer public spaces and meeting the needs of an ageing population” (https://ec.europa.eu/info/eu-regional-and-urban-development/topics/cities-and-urban-development/city-initiatives/smart-cities_en, acessado em 04 de junho de 2020).

“A noção geral acadêmica e multidisciplinar de smart city congrega temas como: governança, vida em sociedade, mobilidade urbana, uso intensivo de dados e tecnologia, preocupação ecológica, usos e produção sustentável, utilização com finalidade pública das redes sociais, evidentemente com implicações nos estudos da economia e suas variações mais atuais: economia criativa, economia circular, economia colaborativa (sharing economy). Todos esses componentes podem ser considerados, a partir da revisão de literatura sobre smart city, condicionantes dos processos de configuração de ambientes urbanos dessas cidades inteligentes, que podem estar concentrados num bairro, cidade, estado, país ou região bem delimitada e com características básicas, tais como, digitalmente e socialmente inteligente e ecologicamente sustentável” (GUIMARÂES, Patrícia Borbar Vilar. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. Smart Cities e Direito: Conceitos e Parâmetros de Investigação da Governança Urbana Contemporânea. Revista de Direito da Cidade, vol. 08, nº 4. ISSN 2317-7721, DOI: 10.12957/rdc.2016.23685, disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26871, acessado em 04 de junho de 2020).

“(...) Em suma, apesar da diversidade de definições de smart cities, os seguintes pontos comuns foram identificados por pesquisadores da área: (i) uso de TIC na cidade; (ii) presença de infraestrutura física e de rede; (iii) melhor prestação de serviços à população; (iv) combinação, integração e interconexão de sistemas e infraestruturas, de modo a permitir o desenvolvimento social, cultural, econômico e ambiental; e (v) uma visão de um futuro melhor (GIL-GARCIA; PARDO; NAM, 2015)” (NIC.BR. Panorama Setorial da Internet. “Smart cities: Tecnologias de Informação e comunicação e o desenvolvimento das cidades mais sustentáveis e resilientes”. Ano 9 – Número 2. https://www.nic.br/media/docs/publicacoes/6/panorama_setorial_ano-ix_n-2_smart-cities.pdf., acessado em 04 de junho de 2020).

“(...) Na   busca   de   soluções   inovadoras   para   enfrentar   os   desafios   do   aumento   da disponibilização da  informação  e  do  crescimento  das  cidades,  surge  o  conceito Cidades Inteligentes (Smart Cities). Refere-se a uma nova abordagem para minimizar problemas  urbanos,  desenvolvendo  uma  cidade  mais  sustentável  e  melhor  para  se viver, onde   o   conceito   destaca-se   como   um   ícone   de   qualidade   de   vida   e sustentabilidade (ALAWADHI et al., 2012; CHOURABI et al., 2012) (BAUER, Izabella. BARACHO, Renata. Dados Abertos e suas aplicações em Cidades Inteligentes. Liinc em Revista Disponível em http://revista.ibict.br/liinc/article/view/4767/4311, acessado em 04 de junho de 2020).

[2]https://brazillab.org.br/noticias/conheca-as-cidades-mais-inteligentes-do-brasil-em-2019-segundo-ranking-connected-smart-cities# , acessado em 04 de junho de 2020.

[3] PHD em matemática aplicada pela Harvard e Áutor do livro “The Smart Enough City: Putting Technology in Its Place to Reclaim Our Urban Future.”

[4] Smile your city is watching you, New York Times, disponível em https://www.nytimes.com/2019/06/27/opinion/cities-privacy-surveillance.html, acessado em 04 de junho de 2020.  

[5]O item anterior descreveu os principais passos para estruturação de uma solução de IoT para o ambiente de cidades. Durante esta estruturação, o gestor público deverá ater-se à três aspectos fundamentais para viabilidade técnico, econômica e social da solução em escala: Privacidade, Segurança da informação, Interoperabilidade, Capacidade de análise de dados, Dificuldades para contratação de soluções de IoT.

A crescente utilização de dispositivos tecnológicos dispersos pelo espaço urbano, capazes de coletar dados sobre os cidadãos, monitorar suas atividades e até mesmo identificá-los, traz à tona diversas questões referentes à proteção da privacidade e dos dados pessoais dos indivíduos25. Para que o planejamento público das cidades inteligentes seja uma realidade bem-sucedida, é imprescindível que a privacidade dos cidadãos seja garantida primeiro na implementação das cidades inteligentes. Para tal, além de boas práticas de gestão a serem adotadas pelo Poder Público, que levem em conta as determinações da atual legislação difusa sobre o tema - em especial, pelo Marco Civil da Internet e o Decreto nº 8.771/2016. (Cartilha das Cidades disponível em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/bndes-lanca-cartilha-sobre-uso-da-internet-das-coisas-na-criacao-de-cidades-inteligentes)

[6] Art.4º, inciso III, da LGPD.

[7] Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

[8] “(...)enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria” (Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, pp. 102-103).

[9] Cavoukian, Ann. Privacy by design. The 7 foundantion principles. Disponível em https://www.ipc.on.ca/wp-content/uploads/resources/7foundationalprinciples.pdf

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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