“Comigo não, violão”

27/03/2016

Por Elaine Gonçalves Weiss de Souza -  27/03/2016

Mesmo suspirando sobre a égide de uma suada Constituição Federal, os casos de corrupção pública são tantos, que vão sendo esquecidos, pois nem bem um foi investigado, outro já é descoberto, num ciclo vicioso, macabro, contínuo e aparentemente infinito. Esperar-se-ia que a cada novo escândalo, os mecanismos de repressão fossem aperfeiçoados para o bom funcionamento do estado democrático e constitucional de direito. Afinal, são com os erros que se pode transformar e melhorar a sociedade.  Mas por que isso não ocorre no pindorama de Streck?

Desde sempre, no mundo todo, onde há dinheiro e poder, haverá fatalmente corrupção. O que muda de uma geração para outra, e de um país para outro, é a resposta dada pelo Estado às reprováveis condutas dos indivíduos que incidem em atos contra a res pública. E por que a resposta dada no Brasil é tão ruim, que incentiva a corrupção e a reincidência de atos contra o Erário?

Diuturnamente, se recebem informações de que os alunos brasileiros ficam em péssimas colocações nas avaliações internacionais sobre materiais básicas, como língua materna, matemática e ciências. Por exemplo, o PISA (em tradução, Programa Internacional de Avaliação de Alunos), utilizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),  como critério de ranquiamento, trouxe o Brasil, entre 76 países avaliados, na 60ª posição, no ano de  2015. Perde coletivamente feio.  E se há estatisticamente esta triste realidade, a reboque, é muito provável que siga também um déficit nas bases disciplinares éticas das pessoas. Os subsídios cognitivos para a compreensão dos princípios fundamentais de formação do pensamento sobre a vida são tão fracos, quanto são os domínios dos conteúdos das disciplinas padrões de temas gerais.

Não se investe em formação ontológica.  O interesse pelo estudo da abstração humana é completamente desestimulado já nas séries iniciais, e se mantém nos bancos universitários: “estudar é chato, e sobre deontologia, filosofia, psicologia, e qualquer “ia” ainda mais”.

Há uma geração de adultos com poder decisório vagando por aí que o máximo de emoção com que teve que lidar foram aquelas sobrevindas dos clipes (excelentes) do Roupa Nova, que passavam domingo à noite no Fantástico: “Dona...desses traiçoeiros (...)”. E vive-se agora numa época onde as pessoas não foram preparadas para enfrentar certas emoções fortes e indagações de valores constantes na vida diária em coletividade.

E aí, sem uma preparação emocional e valorativa básica, qualquer punição ao corrupto não terá efeito pedagógico social. O indivíduo é investigado, processado e condenadíssimo por crimes relacionados à corrupção, mas a turma afeta ao meio de convívio com o dito ímprobo, continua tratando-o como um querido amigo. O cara é “só” um estuprador do dinheiro público, mas continua sendo reconhecido no time de futebol do clube, na mecenagem das festinhas escolares dos filhos, nos aniversários, nas confrarias habituais, no cotidiano de cada dia. Não há nenhuma resposta ética do grupo contra o corrupto. O viciadinho ladrão de quintal, desconhecido lá do bairro pobre, esse “é uma ameaça horrorosa” e não se quer por perto. O cobrador de propina que embolsou um dinheirão como secretário municipal pode ficar na área, já que este é um bom churrasqueiro, consegue entradas vip’s, é “gente boa” (isso é pressuposto para ser corrupto: o carisma que beira a psicopatia), ele faz parte da equipe, “o problema dele é com a justiça, não comigo”.  E isso é vergonhoso. As pessoas precisam tomar consciência da gravidade das ações contra o coletivo, e condenar abertamente ao ostracismo social àquele que não soube respeitar o conjunto, que não honrou sua atividade pública, sob pena de uma coautoria antissocial. Diga-me com quem andas e te direi que tipo de ímprobo tu também és. A tolerância em conviver amigavelmente com o corrupto incentiva muito novas atitudes ilícitas.  Às vezes, é só mesmo aquela vergonha, oriunda do isolamento social, advindo da hostilidade e reprovação alheia, que servirá como uma efetiva punição, e irá conseguir modificar o caráter do prevaricador, e não a segregação física ou patrimonial.

O errante desvia o dinheiro de suas finalidades sociais, prejudicando milhares de pessoas, mas como não há sangue, nem impacto visível direto no corpo coletivo, a reação do nicho é quase inócua. A convivência normalizada com os corruptos leva à banalização do mal em toda a sua essência. E não é menos verdade dizer que a intimidade social destes corruptos de plantão, com os cidadãos ditos de bem (olha a antiga mulher honrada e honesta aí) se dá também como uma garantia, “vai que ele volta com mais força”, ou seja, uma espécie de medo diante do poder velado. E aí ainda tem a memória curta do brasileiro, somada ao ressurgimento das cinzas dos corruptos bem no estilo the walking dead. Eles sempre voltam. É o problema da impossibilidade legislativa vigente de decretação da morte cívica do corrupto. Pela atual legislação, ninguém será condenado em termos civis a ficar mais de dez anos execrado do contato direto com a administração pública.  Por isso esses bandidos do colarinho branco voltam, ou como servidores em cargos comissionados, ou agentes políticos eleitos, ou como contratantes nas licitações. E a improbidade, obviamente dissimulada, volta a correr solta. Quem foi judicialmente reconhecido como corrupto jamais poderia retornar aos bancos especiais de comando do Erário, e de sua relação com este, ou, pelo menos, deveria receber a pena máxima de da CRFB/88, em analogia a esfera penal, de trinta anos bem distante da administração pública. Quem demonstrou inépcia ética com o trato da coisa de todos, não deve voltar. O Brasil tem mais de duzentos milhões de habitantes e alguém melhor pode ocupar o lugar daquele que se deixou levar pelo sistema corrompido e não ajudou a exterminá-lo. O sujeito que aprontou com a coletividade uma vez, deve perder a chance de retornar. Se demonstrou quando teve oportunidade que não é confiável, deveria desenvolver suas atividades laborais somente na esfera privada, bem longe da administração pública.

Em alguns exemplos legislativos deste brando apenamento, ressaltam-se: a) as condenações por improbidade administrativa, do art. 12 da Lei 8429/92, onde o  enriquecimento ilícito pode levar a proibição de contratar com a administração pública pelo prazo de até dez anos; b) o art. 87 da Lei 8666/93 o qual prevê a suspensão de contratar com a administração pública para aquele que inexecutar apropriadamente o contrato de licitação, por até dois anos, em conjunto com  o art. 7º da Lei 10.520/2002, que para a modalidade pregão em conduta semelhante, prevê a suspensão por até cinco anos; c) a Lei 12.529/2011, que trata dos crimes contra a ordem econômica, e dispõe no seu art. 38 de uma punição para certas fraudes em licitação , de uma pena de proibição de contratar com a administração pública pelo prazo “não inferior a cinco anos” (a redação não ajudou em nada, pois aqui fica possível a aplicação até de uma pena infinita na letra “quente” da norma); d) o art. 33, IV da Lei 12.527/2011, que prevê que ficará suspenso de contratar com a administração pública, quem detiver informações em virtude de vínculo com o poder público e não as prestar; e)  o art. 10 e o art. 22 §3º  da Lei 9605/98, os quais preveem a impossibilidade de contratar com o poder público pelo prazo de até dez anos para graves crimes ambientais; f) a inelegibilidade por no máximo oito anos da Lei Complementar n. 64/90. Vale lembrar que se fizer um acordozinho de leniência, trazido na Lei 12.846/2013, art. 16, §2º, I, já fica limpinho para voltar a relacionar-se com o poder público.

O corrupto não precisa ficar atrás das grades, mas sua sanção deveria ser o afastamento total das relações com o poder público, principalmente as que impliquem decisões administrativas de impacto coletivo. E ainda para completar o cemitério maldito onde os corruptos passam um tempinho esquecidos, tem as filigranas jurídicas (viciozinhos) que sempre são bem potencializadas pelo judiciário e acabam por anular muitas punições. O bandidão sai livre leve e solto por cima da carne seca. E volta sem aprender qualquer lição e ainda mais sanguinário e experiente.

A população brasileira por diversos fatores, tem uma estima muito baixa, e isso leva a uma conduta inadequada de não votar em candidatos que tem pouca ascendência nas pesquisas eleitorais.  Há uma lastimável preferência em votar em quem tem chance de ganhar, como se fosse uma aposta com a maior probabilidade de vitória, independentemente de uma análise sobre o caráter do candidato. O importante é que o “meu” candidato venceu. E aí aplicam-se os clichês: “rouba mais faz”, “não tem nenhum melhor mesmo”, “já estou acostumada com este”, “ele é tão bonito e querido”.  E claro, isso será chamado hipocritamente de exercício democrático do direito de votar.

O cidadão sem fundamentos éticos, os quais deveriam ser advindos de clássicos estudos filosóficos e éticos sobre a vida, já nos anos inicias da juventude, nunca conseguirá realizar boas escolhas, ficar sem condições de fazer seleções cotidianas que lhe tragam menos prejuízos e mais benefícios para uma existência plena.

Aí a pessoa escolhe casar com alguém bem errado, um emprego ruim, amigos sem arrimo, o momento inadequado para a procriação, afrontando a si próprio com o mau uso de suas liberdades individuais, E também das coletivas, ao conversar na hora errada, ser invasivo, expressar-se no embalo, sem prévia reflexão, não compreendendo a necessidade do exercício contínuo da empatia, criando uma imensidão de relações jurídicas desgastantes que o Estado é que acabará tendo que resolver nos pretórios.

E assim a pessoa também vai escolhendo num bom pleonasmo, pessimamente seus péssimos representantes, E tem a ânsia do imediatismo que precisa afastar-se das ambições de melhores valores para esta geração. O povo vivo de agora só irá construir o que os seres do futuro colherão, em termos de legado ético. Um caboclo que dissesse no final da década de sessenta que a ditadura teria um fim, e que uma mulher seria eleita pelo voto direto, seria tachado de doido. Um abençoado que nos idos de mil e setecentos expressasse sua convicção de que um dia os brasileiros ficariam independentes dos portugueses poderia ser morto por crime de lesa-majestade.  As coisas mudam e melhoram, novos problemas surgem, outros se extinguem, mas a evolução humana de Aristóteles até Clóvis (o de Barros) é constante. É preciso acreditar.

Se o filho da pátria não tem valores próprios de respeito ao coletivo, que tenha medo da punição e de suas consequências, a começar pelo nojo alheio. Mas sem dúvida a melhora no padrão comportamental do brasileiro passa pela escolarização emocional e ética, que não pode ficar somente a cargo de ensinamentos religiosos. É preciso compreender desde a tenra juventude que ninguém cai de paraquedas num estado de direito democrático e constitucional. Que este Estado não é o melhor dos mundos, mas é o melhor que já se teve às custas de muita luta. Que a felicidade é uma conquista diária e não um direito. O cidadão não decidirá se participará de um ato ilícito no momento em que lhe for apresentada uma vantajosa proposta indecente, mas já terá decidido antes, no dia em que aprender a se conhecer, a compreender minimamente a sociedade em que habita. Desta forma, lá na frente, a resposta para convites à proveitosas parcerias ilícitas de devassidão contra o poder público, já virá antes que a pergunta seja formulada, num adágio popular: comigo não, violão.


Elaine Gonçalves Weiss de Souza. Elaine Gonçalves Weiss de Souza é Mulher. Mãe. Advogada. Procuradora Municipal da cidade de Balneário Camboriú. Especialista em Direito Tributário. Especialista em Direito Eleitoral. Especialista em Docência no Ensino Superior. Mestre em Ciências Jurídicas. Doutoranda pela Universidade do Minho-Portugal em Ciências Jurídicas. Professora Universitária. .
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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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