COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGOS 36 A 38

06/11/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça aqui a leitura do artigo!

Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.

Art. 36.  Se comparecer mais de uma pessoa com direito de queixa, terá preferência o cônjuge, e, em seguida, o parente mais próximo na ordem de enumeração constante do art. 31, podendo, entretanto, qualquer delas prosseguir na ação, caso o querelante desista da instância ou a abandone.

Art. 37.  As fundações, associações ou sociedades legalmente constituídas poderão exercer a ação penal, devendo ser representadas por quem os respectivos contratos ou estatutos designarem ou, no silêncio destes, pelos seus diretores ou sócios-gerentes.

Art. 38.  Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.   

O art. 36, caput, do CPP, trata da ação penal de iniciativa privada e estabelece uma ordem de sucessão processual para o caso de a vítima morrer ou ser declarada ausente. O legislador estabeleceu a preferência do cônjuge, depois do ascendente, em seguida do descendente e, por fim, do irmão. Essas quatros figuras são enumeradas no art. 31, caput, do CPP, exatamente nesta ordem.

O objetivo do legislador foi evitar certa confusão processual decorrente da atuação simultânea de mais de um sucessor. Portanto, não tendo expirado o prazo decadencial referido no art. 38, caput, do CPP, havendo a morte ou a declaração de ausência da vítima, o cônjuge pode oferecer a queixa-crime em juízo. Todavia, caso o cônjuge expressamente desista do processo ou mesmo o abandone, os demais sucessores podem prosseguir no processo, devendo ser observada a ordem sucessória já referida. Convém ressaltar que, diante da desistência ou do abandono, não cabe ao juízo intimar os demais sucessores para que decidam se devem ou não prosseguir com o processo, até porque é possível que o juízo não tenha as suas respectivas qualificações. Os sucessores, por iniciativa própria, devem acompanhar a queixa-crime e intervir, se for o caso. Entendemos que o juízo apenas deve declarar a desistência ou o abandono e fixar um prazo razoável para aguardar a eventual iniciativa de algum outro sucessor.

É evidente que, no prazo decadencial, qualquer um dos sucessores pode oferecer a queixa-crime em juízo, sendo certo que o juiz apenas decidirá pela observância da ordem sucessória referida no caso de mais de um sucessor se manifestar. Vale o exemplo. Se a vítima morrer no prazo decadencial, o seu irmão pode oferecer a queixa-crime em juízo no prazo decadencial. Nesse caso, não será preciso o juiz intimar o cônjuge, o ascendente e o descendente da vítima para que esclareçam se desejam usufruir a sua prioridade na ordem sucessória. Mas, se o irmão da vítima oferecer a queixa-crime em juízo e, depois, ainda no prazo decadencial, o cônjuge da vítima também oferecer a queixa-crime em juízo, caberá ao juiz observar a ordem sucessória, extinguindo o processo deflagrado pelo irmão da vítima e procedendo normalmente com relação ao processo deflagrado pelo cônjuge da vítima, já que este tem a prioridade legal e a exerceu dentro do prazo decadencial.

É claro que dificilmente essas situações ocorrerão no dia a dia forense. Mas há ainda uma situação que deve ser enfrentada. Em tese, duas pessoas com a mesma ordem sucessória podem oferecer a queixa-crime em juízo, não havendo, a rigor, um critério de desempate previsto em lei. Vale o exemplo. A vítima morre e os seus dois irmãos resolvem oferecer a queixa-crime em juízo. Como não há distinção na ordem sucessória entre os irmãos, entendemos que deve ser priorizado o irmão que se antecipou ao outro. Portanto, terá prioridade entre os sucessores de mesma ordem aquele que exerceu o seu direito de ação penal em primeiro lugar.

Não há qualquer complexidade no exame do art. 37, caput, do CPP, o qual trata do direito de ação penal de algumas pessoas jurídicas. Não custa lembrar, por exemplo, a possibilidade de a pessoa jurídica ser vítima do crime de difamação, caso em que, além de providências de natureza cível, a mesma poderá exercer o seu direito de ação penal.

O legislador mencionou as fundações, as associações e as sociedades legalmente constituídas. As fundações são tratadas nos artigos 62 a 69 do Código Civil. As associações são tratadas nos artigos 53 a 61 do mesmo diploma legal. As sociedades são tratadas nos artigos 980 a 1141 do citado texto. Na nossa ótica, não havendo vedação ao exercício do direito de ação penal por parte das demais pessoas jurídicas, nada impede o seu exercício quando forem vitimadas por algum crime. É certo que o legislador sequer precisava destacar as situações nas quais são envolvidas as fundações, as associações e as sociedades. Mas o fato de a lei processual tê-las mencionada não exclui a possibilidade do exercício do direito de ação por quem quer que seja vítima de um crime.

Cabe salientar que o art. 41, I a V, do Código Civil, elenca as pessoas jurídicas de direito público interno, enquanto o art. 44, I a V, do mesmo texto legal, elenca as pessoas jurídicas de direito privado. Portanto, se uma empresa individual de responsabilidade limitada for vítima de um crime de difamação, nada impede o exercício do seu direito de ação. Veja-se que não se trata sequer do emprego de analogia, mas sim do exercício legítimo do direito por parte daquele que foi vitimado pela prática de um crime. Nesse caso, valerá a mesma lógica prevista no art. 37, caput, do CPP, até porque se trata de decorrência natural dos seus atos constitutivos, ou seja, as demais pessoas jurídicas serão representadas por aqueles que têm o seu poder de gestão ou por aqueles aos quais os atos constitutivos conferem poderes expressos neste sentido.

O art. 38, caput, do CPP, prevê norma importantíssima ao estabelecer o prazo decadencial para o exercício do direito de representação, no caso de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação, ou para o exercício do direito de ação, no caso de ação penal de iniciativa privada.

Trata-se de prazo penal cujo desrespeito acarreta, em princípio, a extinção da punibilidade com base no art. 107, IV, do Código Penal. Por isso, em se tratando de prazo penal, a sua contagem deve observar o art. 10, caput, do mesmo diploma legal, o qual dispõe que o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo.

Em regra, o prazo decadencial é de seis meses, mas nada impede que o legislador fixe outro prazo. Isso ocorria, por exemplo, com o art. 240, § 2º, do CP, que foi revogado pela Lei 11106/05, mas que tratava do crime de adultério e que afirmava que a ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato.

O legislador estabelece dois termos iniciais para a contagem do prazo. Em se tratando de ação penal de iniciativa exclusivamente privada, o prazo decadencial inicia no momento em que a vítima ou seus sucessores têm conhecimento da autoria do crime. Isso faz todo o sentido porque o desconhecimento quanto à autoria do crime, por motivo óbvio, inviabiliza o exercício do direito de ação. Em se tratando de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, o prazo decadencial inicia no momento em que se esgota o prazo para o oferecimento da denúncia em juízo, o qual é previsto no art. 46, caput, do CPP, ou seja, cinco dias, quando o indiciado está preso, e quinze dias, quando o indiciado está solto.

Não obstante a redação oferecida pelo legislador, é evidente que, no caso de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, a contagem do prazo decadencial no momento em que termina o prazo para o oferecimento da denúncia pressupõe que a vítima ou seus sucessores saibam a identificação do autor do crime, sem a qual sequer é possível exercer o direito de ação penal e, por consequência, sequer é possível cogitar a ocorrência de decadência. Em outras palavras, mesmo expirado o prazo previsto no art. 46, caput, do CPP, se a vítima ou seus sucessores desconhecerem a identificação do autor do crime, não se poderá falar em decurso do prazo decadencial, o qual apenas ocorrerá quando, de fato, for conhecida a autoria do crime.

Há uma questão importante a ser destacada. No caso de ação penal de iniciativa exclusivamente privada, findo o prazo decadencial, ocorre a extinção da punibilidade, com base no art. 107, IV, do CP, não mais se podendo oferecer a queixa-crime em juízo. Todavia, no caso de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, findo o prazo decadencial, não mais se poderá oferecer a queixa-crime subsidiária em juízo. Mas nada impede que o Ministério Público ofereça, ainda que tardiamente, a denúncia em juízo. Portanto, neste último caso, não ocorrerá propriamente a extinção da punibilidade, mas apenas a extinção do direito de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, persistindo o direito de ação penal de iniciativa pública.

O art. 38, parágrafo único, do CPP, estabelece que a decadência também se aplica nos casos de sucessão do direito de representação, previstos no art. 24, parágrafo único, do CPP, e nos casos de sucessão do direito de queixa, previstos no art. 31, caput, do CPP. Ambos os dispositivos tratam da morte ou da declaração de ausência da vítima, referindo-se à sucessão do cônjuge, do ascendente, do descendente e do irmão. É importante registrar que, nesses casos, o prazo decadencial para o sucessor segue a contagem do prazo relativa à vítima. Vale o exemplo. Se a vítima sofre o crime de calúnia e, no mesmo dia, tem conhecimento da sua autoria, o prazo começa a correr, tendo a vítima seis meses para oferecer a queixa-crime em juízo. Se a vítima morre quatro meses após o crime, os sucessores terão o resto do prazo decadencial para se manifestarem, ou seja, terão os dois meses restantes, não se reiniciando a contagem em razão da morte da vítima.

 

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