COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGOS 32 A 35

30/10/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça a leitura do artigo aqui!

Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.

Art. 32.  Nos crimes de ação privada, o juiz, a requerimento da parte que comprovar a sua pobreza, nomeará advogado para promover a ação penal.

§1º Considerar-se-á pobre a pessoa que não puder prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família.

§2º Será prova suficiente de pobreza o atestado da autoridade policial em cuja circunscrição residir o ofendido.

Art. 33.  Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mentalmente enfermo, ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente para o processo penal.

Art. 34.  Se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de queixa poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal.

Art. 35.    (Revogado pela Lei nº 9.520, de 27.11.1997).   

O art. 32, caput, do CPP, trata da ação penal de iniciativa privada quando a vítima não tem condição financeira de constituir um advogado para atuar no processo. O primeiro ponto a ser destacado é a possibilidade de atuação da Defensoria Pública nesse caso. É que, em regra, no processo criminal, os defensores públicos atuam na defesa dos acusados, causando certa estranheza vê-los atuar no polo ativo.

O estranhamento decorrente do pequeno número de casos em que ocorre essa situação não encontra amparo no texto constitucional, uma vez que o art. 134, caput, da Constituição Federal, dispõe que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. Portanto, em nenhum momento o constituinte limitou a atuação dos defensores públicos no processo criminal. O dispositivo referido, de forma expressa, menciona a atuação da Defensoria Pública, de forma integral e gratuita, em favor dos necessitados. 

Não faz qualquer sentido o necessitado ser amparado pela Defensoria Pública quando, supostamente, pratica um ilícito penal, e não ser amparo quando é vítima de um ilícito penal. É por isso que o art. 4º, XV, da Lei Complementar 80/94, dispõe que cabe aos defensores públicos, no âmbito de suas funções institucionais, patrocinar ação penal privada e a subsidiária. É certo que o legislador se referiu à ação penal privada e à subsidiária como se fossem coisas distintas quando, na verdade, ambas são ações penais de iniciativa privada, sendo certo que uma delas é de iniciativa exclusivamente privada, enquanto a outra é de iniciativa privada subsidiária da pública. De toda forma, não bastasse o texto constitucional, há expressa previsão legal para a atuação da Defensoria Pública na ação penal de iniciativa privada.

Embora a lei processual afirme que o necessitado deve comprovar a sua pobreza, entendemos que basta a sua alegação neste sentido, o que não impede a sua responsabilização criminal no caso de restar apurada a prática de alguma declaração falsa. Assim como ocorre na melhor interpretação do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, deve ser dado o devido crédito à afirmação do necessitado. Lembre-se que o mencionado dispositivo constitucional afirma que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recurso, mas, ainda assim, não se pode presumir que seja falsa a declaração de miserabilidade apresentada pelo necessitado. Nesse sentido, não custa lembrar e aplicar por analogia à norma do art. 99, § 3º, do Código de Processo Civil, que, corretamente, dispõe o seguinte: presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.

Não obstante a redação do art. 32, § 1º, do CPP, também convém adotar por analogia o art. 98, caput, do Código de Processo Civil, segundo o qual a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. Portanto, não tendo a vítima condição de pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da sua família, deve a Defensoria Pública atuar em seu favor na ação penal de iniciativa privada, oferecendo a queixa-crime em juízo, ficando, assim, absolutamente dispensada a prova de miserabilidade indicada no art. 32, § 2º, do CPP.

O art. 33, caput, do CPP, trata do curador especial, que é uma figura rara no processo penal brasileiro e que quase nunca tem atuação prática. De toda forma, o legislador tinha mesmo que prever uma proteção especial à vítima em determinados casos.

Nessa medida, o curador especial atuará no caso em que a vítima não tem representante legal ou no caso em que os interesses da vítima colidem com os interesses do seu representante legal, desde que (i) a vítima tenha menos de 18 anos, (ii) seja mentalmente enferma ou (iii) seja retardada mental.

É possível que a vítima não tenha qualquer representante legal, seja porque já faleceram, seja porque são desconhecidos, Mas também é possível que a vítima tenha interesses colidentes com o seu representante legal, seja porque ele mesmo praticou o crime, seja porque ele pretende não atuar em desfavor de quem praticou o crime. Enfim, por qualquer motivo que seja, de forma indevida, é possível que o representante legal da vítima seja omisso, deixando de tutelar os seus interesses.

Convém salientar que a idade da vítima é facilmente comprovada através de algum documento oficial, como a certidão de nascimento, por exemplo. Quanto às situações médicas – enfermidade mental ou retardamento mental –, é preciso que haja alguma documentação capaz de revelar tal condição, cabendo ao juiz competente para o processo avaliar os documentos, se necessário com ajuda de algum perito, e nomear o curador especial, se for o caso.

É importante registrar que o curador especial atuará como representante legal, de modo que não precisa ter, necessariamente, qualquer qualificação jurídica, podendo ser um vizinho da vítima, um conhecido seu, alguém que saiba do seu problema, ainda que não seja um advogado. Por isso, nomeado o curador especial para representar legalmente a vítima, poderá ser constituído algum advogado para oferecer a queixa-crime em juízo ou mesmo poderá ser provocada a atuação da Defensoria Pública.

Na nossa ótica, o art. 34, caput, do CPP, está tacitamente revogado. Atualmente, não faz qualquer sentido conferir um tratamento diferenciado quando a vítima tem de 18 a 21 anos. É certo que, à época da elaboração do nosso Código de Processo Penal, o legislador entendeu que essa faixa etária recomendava uma maior cautela no trato do indiciado.

Quando o Código de Processo Penal foi criado, estava em vigor o Código Civil de 1916, cujo art. 9º, caput, dispunha que aos 21 (vinte e um) anos completos acaba a menoridade, ficando habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil. Portanto, havia uma situação jurídica diferenciada para as pessoas que tinham de 18 a 21 anos, na medida em que eram maiores, sob o ponto de vista penal, mas eram menores, sob o ponto de vista civil.

Todavia, o atual Código Civil, no seu art. 5º, caput, passou a dispor que a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Diante da redução da maioridade civil, de 21 para 18 anos, perdeu qualquer justificativa o tratamento diferenciado até então previsto para a referida faixa etária, razão pela qual, ao menos no nosso entendimento, houve a revogação tácita do art. 34, caput, do CPP. Em outras palavras, se a vítima é maior de 18 anos, a legitimidade ativa na ação penal de iniciativa privada é exclusivamente sua, sobretudo porque, além da referida faixa etária, sequer se pode falar na figura do representante legal.

Além disso, cabe registrar que o art. 35, caput, do CPP, foi revogado pela Lei 9520/97. Para que fique o seu registro, cabe transcrever a norma felizmente revogada, a qual dispunha que a mulher casada não poderá exercer o direito de queixa sem consentimento do marido, salvo quando estiver dele separada ou quando a queixa for contra ele. Além disso, havia um parágrafo único no referido dispositivo que dispunha o seguinte: se o marido recusar o consentimento, o juiz poderá supri-lo. Se tais normas já tiveram historicamente alguma razão de existir, é evidente que nos dias de hoje as mesmas se mostram absurdas. Na verdade, por motivo óbvio, o dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal e, depois, veio a ser expressamente revogado pela Lei 9520/97.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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