COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGOS 2º E 3º

27/03/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

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Seguimos com os nossos textos expondo comentários a respeito dos dispositivos do Código de Processo Penal. Sabemos que a tarefa será difícil, mas estamos determinados a cumpri-la. Em algumas colunas, como esta, serão abordados dois ou mais dispositivos. Então, vejamos.

 

Art. 2º. A lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

O dispositivo trata da aplicação da lei penal no tempo, adotando o princípio da aplicação imediata da lei processual. É natural que as leis sofram mudanças ao longo do tempo. A expectativa é sempre no sentido de que as mudanças prestigiem os comandos constitucionais, tornando o ordenamento jurídico mais harmônico. Nem sempre isso ocorre. Todavia, a verdade é que as alterações na nossa legislação impõem uma certa adaptação dos operadores do Direito, sobretudo quando ocorrem mudanças radicais.

Portanto, estando o processo em curso, é preciso criar critérios através dos quais seja possível compatibilizar os atos processuais já praticados com os atos processuais que ainda serão praticados. A norma em estudo, que tem aplicação específica quando a questão é processual, adota a lógica do tempus regit actum, ou seja, o tempo rege o ato, o que significa dizer que o ato processual deve ser regido pela lei em vigor na época da sua prática.

Em outras palavras, é possível estabelecer o seguinte raciocínio básico: os atos realizados sob a vigência da lei anterior devem ser aproveitados, mas, de outro lado, os demais atos a serem praticados devem observar a lei vigente no momento de sua prática. Embora as leis processuais penais possam entrar em vigor no momento da sua publicação sem grandes problemas de ordem prática, nada impede que haja a fixação de algum período de vacatio legis, sendo certo que tem total aplicação o Decreto-Lei 4657/42, também conhecido como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Não custa lembrar que a Lei 10792/03, que promoveu significativas mudanças no interrogatório judicial, entrou em vigor na data de sua publicação, enquanto a Lei 13964/19, que criou a figura do juízo das garantias, teve vacatio legis de trinta dias.

É oportuno lembrar que a lógica do art. 3º do Decreto-Lei 3931/41, conhecido como Lei de Introdução ao Código de Processo Penal, deve ser observada quando a vigência da nova lei processual altera algum prazo em curso, dispondo o mencionado dispositivo que o prazo já iniciado, inclusive o estabelecido para a interposição de recurso, será regulado pela lei anterior, se esta não prescrever prazo menor do que o fixado no Código de Processo Penal. O mesmo diploma legal, em seu art. 6º, deve ser igualmente observado diante da vigência da nova lei processual, sendo certo que o mesmo ensina que as ações penais, em que já se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior.

Questão importante alusiva à aplicação da lei processual no tempo refere-se à chamada heterotopia, que ocorre quando a natureza da norma não é condizente com a natureza do texto legal na qual a mesma é tratada. Aliás, não custa lembrar que a palavra heterotopia decorre da aglutinação dos termos hetero (outro) e topia (espaço). Para exemplificar na área criminal, é possível mencionar o caso em que uma norma processual é prevista no Código Penal ou, de outro lado, o caso em que uma norma penal é prevista no Código de Processo Penal. O art. 100, caput, do CP, dispõe que a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. Não há dúvida quanto à natureza processual do referido comando. De outro lado, o art. 38, caput, do CPP, dispõe que salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia. Não há dúvida quanto à natureza penal do referido comando.

Portanto, embora possa ocorrer a heterotopia, cabe ao intérprete verificar a natureza da norma para, então, concluir pela aplicação ou não do princípio da aplicação imediata da lei processual. Uma norma processual não se descaracteriza por estar situada em um texto penal, assim como uma norma penal não se descaracteriza por estar situada em um texto processual.

Isso é importante porque a aplicação da lei penal no tempo possui outra lógica, a qual permite a sua retroatividade, ou seja, a sua aplicação antes da sua vigência, assim como permite a sua ultratividade, ou seja, a sua aplicação depois da sua revogação, quando favoráveis ao réu.

Outro ponto a ser examinado diz respeito à identificação da natureza da norma. Existem normas que não deixam qualquer dúvida quanto à sua natureza, sendo fácil constatar se a mesma é processual ou penal. Identificada a natureza da norma, basta seguir o raciocínio acima exposto para verificar a sua aplicação.

O problema surge justamente quando a norma tem conteúdo misto, caso em que a mesma é classificada como híbrida, já que possui, ao mesmo tempo, natureza processual e natureza penal. Nesse caso, prevalecendo a natureza penal mais benéfica ao réu sobre a natureza processual, deve ser adotada dinâmica alusiva às normas penais, inclusive permitindo-se a retroatividade e a ultratividade. Cabe exemplificar com a Lei 9271/96, que alterou o art. 366, caput, do CPP. Tal dispositivo refere-se à suspensão do curso do processo e à suspensão do prazo prescricional. É evidente que a parte relativa à suspensão do processo tem natureza processual, enquanto a parte relativa à suspensão do prazo prescricional tem natureza penal. Trata-se de norma híbrida, já que processual e penal ao mesmo tempo. Sendo assim, deve prevalecer a natureza penal do referido dispositivo para impedir que o mesmo tenha aplicação retroativa, o que seria prejudicial ao réu, uma vez que lhe interessa que o prazo de prescrição continue a correr.

 

Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

Dentre as várias classificações que comportam os métodos interpretativos, é possível aquela que leva em conta o resultado da interpretação. Nessa medida, a interpretação pode ser declarativa, restritiva ou extensiva. A interpretação declarativa é a que apresenta menos problema, uma vez que busca justamente o sentido exato das palavras inseridas no texto legal. Todavia, quando se constata que a lei é muito genérica, dizendo mais do que deveria, tem lugar a interpretação restritiva, De outro lado, quando se constata que a lei é muito restrita, dizendo menos do que deveria, tem lugar a interpretação extensiva.

Não é difícil imaginar situações em que o legislador impõe a interpretação restritiva para que se consiga extrair da norma o seu correto sentido. Um conhecido exemplo[1] dessa situação pode ser encontrado no art. 271, caput, do CPP, que dispõe que ao assistente será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598. A leitura desatenta do mencionado dispositivo leva à conclusão no sentido de que o assistente de acusação tem o direito de propor quaisquer meios de provas. Todavia, isso não corresponde à verdade porque a sua atuação pressupõe o recebimento da denúncia, sendo certo que é justamente a peça de acusação o local adequado para a indicação das testemunhas de acusação, conforme dispõe o art. 41, caput, do CPP. Isso significa que o assistente de acusação pode propor meios de prova, mas não todos os meios de prova, já que não lhe é permitido indicar testemunhas a serem ouvidas em juízo. O caso é de interpretação restritiva.

O mesmo dispositivo acima mencionado autoriza, em outro ponto, a interpretação extensiva. Isso porque, quando o legislador menciona o direito do assistente de acusação arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por ele próprio, é evidente que fica autorizada a apresentação de contrarrazões aos recursos interpostos pela defesa. De outro lado, o art. 261, parágrafo único, do CPP, dispõe que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada. É evidente que a defesa técnica desempenhada pelo advogado constituído pelo réu – e não pelo defensor público ou pelo advogado nomeado pelo juiz em favor do réu – deve ser igualmente fundamentada, sob pena de violação ao princípio da ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal.  O caso é de interpretação extensiva.

Convém salientar que o legislador destacou a possibilidade de aplicação da interpretação extensiva diante da sua maior amplitude, sendo certo que os demais métodos de interpretação têm evidente aplicação do processo penal, seja no que se refere ao sujeito que faz a interpretação (autêntica, doutrinária e judicial), seja no que se refere aos meios empregados para a interpretação (gramatical, lógica, sistemática e histórica), seja no que se refere ao resultado (declarativa, restritiva e extensiva).

De outro lado, o art. 3º do Código de Processo Penal, expressamente, autoriza o emprego da chamada aplicação analógica, a qual abrange, na nossa ótica, a interpretação analógica e a analogia.

Em verdade, a interpretação analógica constitui um método interpretativo de grande valor, na medida em que dispensa que o legislador desenvolva a sua ideia à exaustão. Isso significa que ocorre a interpretação analógica quando o legislador indica situações de forma casuística, nomeando-as, para posteriormente indicar uma forma genérica. Em outras palavras, são indicadas situações concretas e, depois, é indicada uma situação genérica que deve ser interpretada de acordo com as situações concretas mencionadas pelo legislador.

A lei processual fornece exemplo de interpretação analógica no art. 187, § 1º, do Código de Processo Penal, o qual trata do chamado interrogatório de identificação, que constitui o momento em que o juiz indaga o réu quanto às suas características pessoais. O referido dispositivo afirma que na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais. Os outros dados familiares e sociais referidos pelo legislador devem guardar pertinência com aqueles expressamente mencionados no texto legal.

A lei penal também fornece um bom exemplo de interpretação analógica quando, no art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, considera qualificado o homicídio praticado à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. O outro recurso mencionado pelo legislador deve guardar pertinência com os demais recursos indicados de maneira casuística no texto legal.

Ademais, entendemos que a expressão aplicação analógica referida no art. 3º, caput, do Código de Processo Penal, além de compreender a interpretação analógica, também compreende a analogia, a qual consiste em verdadeiro método de integração, através do qual, no silêncio da lei sobre determinada hipótese concreta, é aplicado outro preceito que regula caso semelhante.

É possível aplicar por analogia, inclusive, algum dispositivo que tenha natureza distinta, sendo importante destacar que, em muitas oportunidades, a lei processual penal se socorre na lei processual civil. Um bom exemplo disso relaciona-se às hipóteses de suspeição do juiz previstas no art. 254 do CPP. A lei processual penal não se refere à chamada suspeição por motivo de foro íntimo, a qual é expressamente prevista no art. 145, § 1º, do Código de Processo Civil, que dispõe que poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões. No caso de o juiz sentir-se parcial para o julgamento fora das hipóteses do art. 254 do CPP, é possível que ele se declare suspeito por motivo de foro íntimo. O silêncio da lei processual penal permite a aplicação da lei processual civil, por analogia, já que inexiste diferença, nesse ponto, entre os papeis desempenhados pelo juiz criminal e pelo juiz cível, diante da obrigatoriedade da presença da atuação imparcial de ambos.

Apenas para que fique registro nesse sentido, é importante ressaltar que, pelos motivos que já expusemos, embora incluídos no conceito de aplicação analógica adotado no art. 3º, caput, do CPP, a interpretação analógica e a analogia não se confundem, sendo certo que a doutrina[2] ensina que a interpretação analógica amplia a palavra da lei, enquanto a analogia amplia o pensamento do legislador.

Por fim, o art. 3º, caput, do CPP, refere-se aos princípios gerais do direito.

Embora o legislador tenha tido a cautela de registrar expressamente na lei processual a aplicação dos princípios gerais do Direito, a verdade é que o exame teórico e a aplicação das normas em vigor impõem, naturalmente, a observância de tais princípios, os quais auxiliam e viabilizam o entendimento de qualquer dispositivo legal.

Não é sem motivo que a doutrina[3] afirma que os princípio gerais do Direito, de um modo geral, estão presentes em todo o sistema jurídico-normativo como elementos fundamentais da cultura jurídica humana, enquanto que os princípios constitucionais são os princípios eleitos para figurar na Lei Fundamental de um povo, de forma que possam servir de norte para toda a legislação, além de informar a própria aplicação das normas constitucionais.

Convém salientar que, ao longo deste estudo, teremos a oportunidade de abordar grande parte dos princípios gerais do Direito, sem os quais não é possível compreender o Direito Processual Penal ou mesmo qualquer outro ramo do Direito.

 

Notas e Referências

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 167.

[2] TOBEÑAS, Castan. Los Derechos del Hombre. Madrid: Reus, 1975, p. 37.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 58.

 

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