COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGO 69

26/02/2021

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Esta nossa quinquagésima coluna estudando o Código de Processo Penal será destinada a apresentar um dos temas mais relevantes previstos na lei processual, o qual continuará sendo estudado nas colunas subsequentes, qual seja, a competência.

Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:

I - o lugar da infração:

II - o domicílio ou residência do réu;

III - a natureza da infração;

IV - a distribuição;

V - a conexão ou continência;

VI - a prevenção;

VII - a prerrogativa de função.

O art. 69 do CPP trata dos critérios definidores da competência. É preciso compreender que a competência é a fração do poder jurisdicional destinado a cada órgão do Poder Judiciário. Isso significa que há um fracionamento da jurisdição, a qual pode ser definida como o poder-dever estatal de solucionar os conflitos de interesses.

Em outras palavras, buscando viabilizar a vida em sociedade, o Estado chamou para si o mencionado poder-dever, já que seria absolutamente inviável que todos os conflitos fossem resolvidos diretamente pelos envolvidos sem qualquer participação estatal. É claro que o panorama ideal é aquele no qual as pessoas envolvidas têm maturidade suficiente para conversar sobre o problema existente e resolvê-lo da melhor forma possível. Em alguns países, como o Japão, por exemplo, o simples ingresso no Poder Judiciário já é motivo de desonra na medida em que revela que as pessoas não tiveram civilidade suficiente para resolver a questão sem a intervenção do Estado.

A nossa realidade é muito diferente da japonesa, como sabemos. O Brasil tem uma população altamente litigante que, em regra, entrega ao Poder Judiciário a tarefa de solucionar os conflitos de interesses, mesmo aqueles de pouquíssima gravidade. Em muitas oportunidades, sequer é feito um contato prévio entre os envolvidos na busca de uma solução acordada. A pessoa que se sente injustiçada, em regra, sequer se dirige ao outro envolvido, deixando para encontrá-lo apenas no fórum, após o ajuizamento do seu processo. A cultura brasileira poderia ser outra, o que permitiria que os conflitos fossem solucionados longe dos tribunais, mas não é isso o que acontece no dia a dia.

Portanto, é fundamental saber qual é órgão do Poder Judiciário que tem competência para julgar determinado conflito, nada impedindo que, no curso do processo, perante o juízo competente, os envolvidos tentem um acordo. Isso é muito evidente na área cível. Mas também na área criminal, o que se vê é a implementação de uma política legislativa que acaba permitindo tais acordos em muitas situações, com a adoção de institutos como o acordo de não persecução penal, a composição dos danos civis, a transação penal e a delação premiada, os quais acabam evitando o julgamento de mérito propriamente dito

De uma forma ou de outra, é preciso que os operadores do Direito sempre estejam cientes do juízo que, ao menos em tese, tem a competência para julgar o conflito de interesses. Daí a inquestionável importância do estudo da competência. Sendo a jurisdição o poder-dever do Estado de solucionar os conflitos de interesses, a competência é a parcela da jurisdição destinada a cada órgão do Poder Judiciário.

Trata-se de um poder estatal porque a decisão judicial tem força coercitiva. Após transitada em julgado a sentença, ninguém, em tese, pode evitar a sua execução. É claro que existem exceções quando, por exemplo, no juízo cível, o condenado ao pagamento de um valor indenizatório não possui qualquer patrimônio a ser executado. No juízo criminal, mesmo após a sentença condenatória, se o condenado consegue evitar pelo tempo necessário o início da execução penal, pode ocorrer a prescrição da pretensão executória, o que evitará a submissão do condenado à resposta penal. Ressalvadas essas e algumas outras exceções, quando o Poder Judiciário decide de forma definitiva, resta à pessoa condenada se submeter à execução da sentença.

Trata-se de um dever estatal porque o Estado se comprometeu a resolver os conflitos de interesses e, por isso, o mesmo não pode simplesmente se omitir. É claro que existem alguns requisitos para o regular exercício do direito de ação, sem os quais o mérito da pretensão deduzida não será enfrentado. Na área criminal, em regra, é necessária a presença da legitimidade, do interesse de agir, da possibilidade jurídica do pedido e da justa causa, nada impedindo que o legislador preveja algum requisito especial para determinados casos. Uma vez cumpridos tais requisitos, cabe ao Poder Judiciário enfrentar a questão que se apresenta. Isso fica muito evidente quando se percebe que o art. 345, caput, do Código Penal, prevê o crime de exercício arbitrário das próprias razões, tipificando a conduta de fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Convém salientar que, mesmo sendo legítima a pretensão, em regra, não se pode resolver a questão pelas próprias mãos, sendo imprescindível a provocação do Poder Judiciário.

Feitos os mencionados registros, é preciso lembrar que o art. 69, caput, do CPP, se refere à competência jurisdicional, o que não corresponde à melhor técnica porque jurisdição e competência são conceitos distintos, sendo esta uma fração daquela, de modo que o termo competência jurisdicional mais confunde do que ajuda o entendimento da matéria. Melhor seria se o legislador se referisse apenas à competência, já que os critérios elencados pelo legislador justamente buscam identificar o órgão do Poder Judiciário ao qual cabe o julgamento.

De toda forma, o art. 69 do CPP refere-se a sete critérios, quais sejam, (i) o lugar da infração, (ii) o domicílio ou residência do réu, (iii) a natureza da infração, (iv) a distribuição, (v) a conexão ou continência, (vi) a prevenção e a (vii) a prerrogativa de função.

É importante compreender que a competência não é definida por um ou outro critério, mas sim decorre da combinação de dois ou mais critérios. Portanto, para verdadeiramente compreender a competência, é fundamental compreender todos os critérios previstos pela lei processual para, então, poder verificar quais deles devem ser combinados em cada caso concreto.

Vale o exemplo. Se o réu pratica o crime de homicídio doloso no Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro de Copacabana, é preciso entender que, diante do lugar da infração e de acordo com as normas de organização judiciária, o julgamento ocorrerá na Comarca da Capital. Além disso, considerando a natureza da infração, uma vez que foi praticado um crime doloso contra a vida, o réu será julgado no tribunal do júri da Comarca da Capital. Por fim, considerando que existem quatro tribunais do júri na Comarca da Capital, será necessária a distribuição do processo para um dos quatro tribunais. Nessa medida, neste exemplo bastante simplório, são combinados os critérios alusivos ao lugar da infração, à natureza da infração e à distribuição. Portanto, é fundamental o estudo de todos os critérios previstos na lei processual e as suas combinações nos casos concretos.

 

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