Coluna Isso Posto/ Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Sigamos examinando os artigos do Código de Processo Penal. Sugerimos a visita às nossas colunas anteriores, já que estamos analisando, desde o seu início, todos os dispositivos do Código de Processo Penal.
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;
XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;
XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;
XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.
§1º (VETADO).
§2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.
O art. 3º-B, XIV, do CPP, trata da competência do juiz das garantias para o exame de admissibilidade da acusação. Em verdade, trata-se do momento em que, havendo o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, o juiz das garantias se retira do processo, passando a atuar o juiz da instrução e de julgamento.
Este inciso impõe reflexões importantes.
Isso porque o Código de Processo Penal, em razão da Lei 11719/08, passou a prever, em tese, dois momentos para o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, o que gerou certa perplexidade do mundo jurídico. Antes da mencionada lei, não havia qualquer dúvida neste sentido porque, ao final da investigação, uma vez oferecida a denúncia ou a queixa-crime, cabia ao juiz receber a denúncia, designar data para o interrogatório e determinar a citação do réu. Apenas para registro histórico, convém registrar que o antigo art. 394, caput, do CPP, dispunha que o juiz, ao receber a queixa ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório, ordenando a citação do réu e a notificação do Ministério Público e, se for o caso, do querelante ou do assistente.
Todavia, a Lei 11719/08 mudou radicalmente os procedimentos previstos no CPP e passou a tratar do recebimento da denúncia ou da queixa-crime em dois dispositivos. O art. 396, caput, do CPP, afirma que, nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Portanto, há um primeiro filtro acusatório, cabendo ao juiz, neste momento, adotando a inteligência do art. 395, I a III, do CPP, verificar (i) se a denúncia é inepta, (ii) se falta algum pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal ou (iii) se falta justa causa para o exercício da ação penal. Não sendo caso de rejeição liminar com base em tais fundamentos, o réu citado deve apresentar a sua resposta e, então, o juiz fará o novo juízo de admissibilidade da acusação. O art. 397, I a IV, do CPP, prevê as hipóteses que geram o juízo negativo de admissibilidade, ensejando a absolvição sumária, quais sejam, (i) a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato, (ii) a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade, (iii) o fato narrado evidentemente não constituir crime e (iv) a extinção da punibilidade. Examinados esses aspectos, o art. 399, caput, do CPP, dispõe que, recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.
Veja-se que o art. 3º-B, XIV, do CPP, se refere expressamente ao art. 399, caput, do CPP. Embora pudesse ter abreviado a atuação do juiz das garantias e determinado que ele apenas fizesse o primeiro filtro, ou seja, determinado que o juiz das garantias apenas verificasse se o caso impunha a rejeição liminar da denúncia ou da queixa-crime, o legislador preferiu estender a sua atuação. Portanto, cabe ao juiz das garantias examinar em um primeiro momento a denúncia ou a queixa e, não sendo caso de rejeição liminar, cabe ao juiz das garantias determinar a citação do réu, aguardar a apresentação da sua resposta e, depois, verificar se o caso impõe ou não a absolvição sumária. Não sendo o caso de absolvição sumária, o juiz das garantias designará a audiência de instrução e julgamento e, então, enviará os autos ao juiz da instrução e do julgamento.
Não nos parece que haja qualquer óbice quanto ao fato de o juiz das garantias apenas afastar a absolvição sumária e remeter os autos ao juiz da instrução e do julgamento. Isso porque há uma questão menor de ordem prática que não pode ser desconsiderada, na medida que é conveniente que o próprio juiz da instrução e do julgamento designe a audiência de instrução e julgamento, observando a sua pauta de audiências, muito embora isso seja perfeitamente contornável no caso de o juiz das garantais e o juiz da instrução e do julgamento estabelecerem entre si alguma dinâmica neste sentido.
É interessante registrar que, embora se possa sustentar que o verdadeiro recebimento da denúncia é feito com base no art. 399, caput, do CPP, parte considerável da doutrina[1] afirma que a denúncia é propriamente recebida com base no art. 396, caput, do CPP, devendo este ser o momento, inclusive, para a interrupção do prazo prescricional, com base no art. 117, I, do Código Penal[2]. Todavia, o art. 3º-B, XIV, do CPP, considera como recebimento da denúncia a decisão do juiz levando em conta o art. 399, caput, do CPP, ao menos para o fim de limitar a atuação do juiz das garantias.
Entendemos que o recebimento da denúncia ocorre no momento do art. 396, caput, do CPP, e que o legislador fixou de forma adequada o último momento de atuação do juiz das garantias. É que o juiz da instrução e do julgamento seria obrigado a examinar todas as informações obtidas durante a investigação para decidir pela absolvição sumária ou não, o que poderia torná-lo parcial para o julgamento final, caso a absolvição sumária fosse afastada.
Em verdade, na nossa opinião, o legislador, ao final do art. 3º-B, XIV, do CPP, devia ter mencionado apenas o art. 399, caput, do CPP, sem afirmar que se trata do momento do recebimento da denúncia ou da queixa, o qual ocorreu com base no art. 396, caput, do CPP.
De toda forma, cabe observar a opção do legislador e perceber que o juiz das garantias é o responsável pelo dois filtros a serem feitos na acusação: o primeiro filtro, com base no art. 396, caput, do CPP, abordando questões processuais, e o segundo filtro, com base no art. 399, caput, do CPP, abordando questões de mérito.
Vale fazer um última observação quanto ao dispositivo em exame. Contra a decisão que rejeita a denúncia com base no art. 396, caput, do CPP, cabe o recurso em sentido estrito previsto no art. 581, I, do CPP. Nesse sentido, considerando que o art. 3º-B, XIV, do CPP, apenas retira o juiz das garantias do processo na fase do art. 399, caput, do CPP, cabe ao juiz das garantias processar o referido recurso e, inclusive, exercer o juízo de retratação previsto no art. 589, caput, do CPP.
De outro lado, o art. 3º-B, XV, do CPP, prevê a competência do juiz das garantias no sentido de garantir o direito ao investigado ou ao seu defensor de acesso a todas as informações constantes na investigação criminal, salvo quanto às diligências em andamento.
É sempre bom lembrar que o art. 7º, XIV, da Lei 8906/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei 13793/19, dispõe que o advogado tem o direito de examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio da súmula vinculante nº 14, dispõe que é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Portanto, desde que as diligências não estejam em andamento, ou seja, desde que o acesso às informações não atrapalhem a investigação, cabe ao juiz das garantias viabilizar o acesso do investigado ou de seu defensor às informações investigatórias.
Por sua vez, o art. 3º-B, XVI, do CPP, trata da competência do juiz das garantias para deferir o pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia. É evidente que o mencionado dispositivo se refere à competência para o exame do pedido de admissão do assistente técnico, e não apenas para o seu deferimento, já que nada obsta, dependendo das circunstâncias, que o juiz das garantias indefira o pedido.
Convém salientar que o assistente técnico não se confunde com o assistente de acusação, previsto nos artigos 268 a 273 do CPP, o qual abordaremos oportunamente. O assistente técnico mencionado pelo legislador é o profissional indicado pelas partes para atuar na fase da produção da prova pericial. Veja-se que o art. 159, § 3º, do CPP, dispõe que serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico. Além disso, o § 4º, do mencionado dispositivo, esclarece que o assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão.
Na fase investigatória, cabe ao juiz das garantias examinar o pedido de admissão do assistente técnico exclusivamente para acompanhar a produção da perícia. A atuação do assistente técnico, neste momento, é meramente passiva e viabiliza o recolhimento de informações e dados para, no momento oportuno, poder apresentar o seu parecer. Não lhe cabe indicar a utilização de algum método científico, requerer a produção de alguma prova e criticar a atuação dos peritos neste momento. Mas a sua atuação é importante justamente para acompanhar a produção das provas, e não apenas criticar a elaboração de um laudo já confeccionado pelos peritos.
É evidente que apenas caberá ao juiz das garantias atuar neste sentido se o pedido de admissão ocorrer antes do recebimento da denúncia. Se o pedido for feito após a fase do art. 399, caput, do CPP, caberá ao juiz da instrução e do julgamento a sua análise. É importante lembrar que o art. 159, § 5º, II, do CPP, dispõe que, durante o curso do processo judicial, é permitido às partes indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência. Isso significa que a crítica a ser feita pelo assistente de acusação ao trabalho dos peritos deve ser apresentada em forma de parecer na fase judicial e no prazo fixado pelo juiz da instrução e do julgamento. No mais, excepcionalmente, considerando a complexidade da perícia, as partes podem indicar mais de um assistente técnico, conforme o art. 159, § 7º, do CPP.
Por seu turno, o art. 3º-B, XVII, do CPP, prevê a competência do juiz das garantias para decidir sobre a homologação do acordo de não persecução ou de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação.
No que se refere ao acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, temos sustentado que é possível celebrá-lo antes e depois do recebimento da denúncia[3]. É claro que, sendo o seu propósito principal evitar a instauração do processo criminal propriamente dito, o ideal é a sua celebração ainda na fase investigatória. Acreditamos que, na prática, esta deve ser a regra, apenas havendo o acordo na fase processual excepcionalmente. Um dos indicativos no sentido de que é possível a celebração do acordo na fase judicial é justamente a parte final do art. 3º-B, XVII, do CPP, a qual fixa a competência do juiz das garantias apenas quando o acordo é formalizado durante a investigação. Se o acordo apenas pudesse ser celebrado na fase investigatória, o legislador não teria feito a ressalva ao final do dispositivo em destaque.
A colaboração premiada mereceu especialmente tratamento da Lei 12850/13, muito embora as Leis 8072/90, 9080/95, 9269/96, 9807/99, 11343/06, 12529/11 e 12683/12 também a tenha previsto, embora usando a expressão delação premiada. O tema foi abordado em dissertação de mestrado[4] que, posteriormente, foi publicada[5].
É importante perceber que, a rigor, existem três momentos para a celebração da colaboração premiada, variando os benefícios a serem concedidos ao colaborador. De acordo com o art. 4º da Lei 12850/13. A colaboração premiada pode ser celebrada na fase de investigação, durante o processo criminal propriamente dito e durante a execução penal. É claro que a competência do juiz das garantias apenas se refere à colaboração premiada celebrada durante a investigação, sendo certo que cabe ao juiz da instrução e do julgamento a sua análise quando celebrada durante o processo propriamente dito. Por fim, cabe ao juiz da execução penal o seu exame, quando a colaboração premiada é celebrada durante a execução.
O art. 3º-B, XVIII, do CPP, serve para esclarecer que a competência do juiz das garantias vai além dos temas mencionados nos incisos anteriores. Portanto, é da competência do juiz das garantias qualquer tema a ser abordado na fase investigatória, cabendo-lhe controlar a legalidade da investigação criminal e salvaguardar os direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização judicial prévia.
O art. 3º-B, § 1º, do CPP, foi vetado pelo Presidente da República, sendo certo que o mesmo dispunha que o preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência. As razões do veto foram as seguintes: A propositura legislativa, ao suprimir a possibilidade da realização da audiência por videconferência, gera insegurança jurídica ao ser incongruente com outros dispositivos do mesmo código, a exemplo do art. 185 e 222 do Código de Processo Penal, os quais permitem a adoção do sistema de videoconferência em atos processuais de procedimentos e ações penais, além de dificultar a celeridade dos atos processuais e do regular funcionamento da justiça, em ofensa à garantia da razoável duração do processo, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (RHC 77580/RN, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 10/02/2017). Ademais, o dispositivo pode acarretar em aumento de despesa, notadamente nos casos de juiz em vara única, com apenas um magistrado, seja pela necessidade de pagamento de diárias e passagens a outros magistrados para a realização de uma única audiência, seja pela necessidade premente de realização de concurso para a contratação de novos magistrados, violando as regras do art. 113 do ADCT, bem como dos arts. 16 e 17 LRF e ainda do art. 114 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2019 (Lei nº 13.707, de 2018).
Por fim, resta consignar que já abordamos o art. 3º-B, § 2º, do CPP, quando estudamos o inciso VIII do mesmo dispositivo legal, o qual trata do prazo de duração do inquérito policial, no caso de investigado preso.
Notas e Referências
[1] DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 117
[2] ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 466-467.
[3] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. O pacote anticrime: observações à Resolução nº 20/2020 do Ministério Público do Rio de Janeiro, que trata do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.issoposto.com.br/post/o-pacote-anticrime-observa%C3%A7%C3%B5es-%C3%A0-resolu%C3%A7%C3%A3o-n%C2%BA-20-2020-do-minist%C3%A9rio-p%C3%BAblico-do-rio-de-janeiro. Acesso em: 28 mar. 2020.
[4] COUTO, Marco. Delação premiada: o dito e o não dito. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro.
[5] COUTO, Marco. Delação premiada: o dito e o não dito. Curitiba: Juruá, 2018.
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