Colonialismo Jurídico e a Nova Lei de Migração: entre estratégias de sobrevivência e a proteção ilusória do Direito

15/06/2020

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

A despeito da positiva chegada de um novo aparato normativo sobre migrações, e do             representativo número de ações judiciais propostas visando o interesse de pessoas           migrantes, é preciso relembrar a natureza nociva do direito às pessoas que habitam a   zona do não-ser e questionar sua normalização como fonte principal e inquestionável             de proteção de migrantes não-brancos.

Em novembro de 2017 entrou em vigor a Lei nº 13.445/2017, também conhecida como a nova Lei de Migração. Ela substituiu o defasado Estatuto do Estrangeiro, que, mesmo não tendo sido integralmente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, se manteve em vigor por quase 40 (quarenta) anos. Bastante criticado pela comunidade acadêmica e por diferentes setores da sociedade civil por seu teor autoritário, o Estatuto do Estrangeiro sobreviveu devido à falta de consenso por sua substituição, bem como devido às muitas disputas de interesses que o tema migratório interpela. A legislação migratória era composta por um emaranhado de resoluções normativas, dando respostas pontuais, casuísticas e de natureza variada, demonstrando a fragilidade e inexistência de direitos de certos migrantes, cada vez mais dependentes da discricionaridade de instituições públicas e dos interesses das organizações privadas.

Não surpreende, portanto, o quanto a nova Lei de Migrações, apesar de sua chegada tardia, foi bem-vinda e providencial. Em 2017, o Brasil já recebia uma quantidade expressiva de migrantes[1] da Venezuela, bem como manteve-se contínuo o influxo de haitianos ao país, fazendo com que a introdução de um melhor regime normativo, que formalizasse direitos e garantias, fosse essencial para viabilizar estratégias de mobilização em torno a essa nova gramática. A nova lei, quando somada a internacionalmente elogiada Lei de Refúgio, fortalece o Brasil enquanto referência mundial em termos de amparo legal às pessoas migrantes, respaldando a linguagem burocrática internacional de “boas práticas” estatais (OIM, 2018). 

A despeito da inegável importância da nova lei de migrações, é fundamental que isto não implique distrações. Historicamente manipulado como dispositivo de controle social por parte das elites, e de manutenção de seus interesses, o Direito é incapaz de produzir emancipação aos indivíduos localizados na zona do não-ser (Pires, 2019). Após décadas de governança migratória centralizada nos diferentes interesses de elites brasileiras sobre corpos migrantes não-brancos coisificados e desumanizados neste processo, não é a chancela (tardia) de um instrumento legislativo que determinará a instauração de uma nova normalidade, em que a garantia dos direitos é regra, e sua violação, exceção.

Não é preciso divagar para que isto se confirme: a despeito da construção ampla e democrática do texto do anteprojeto da atual de lei de migrações, tão logo ela entrou em vigor, seu processo de regulamentação contou com pouquíssima participação da sociedade civil organizada e da população diretamente interessada. Longo e complexo, o decreto regulamentador da lei trouxe à tona diversas práticas próprias do período anterior, tal qual a ampla discricionariedade do Estado na gestão migratória, além de ter fragilizado garantias legais. As justificativas dos vetos presidenciais demonstraram, mais uma vez, a força, envolvimento e a natureza dos interesses dos poderes instituídos. Soma-se a isto a vitória de Jair Bolsonaro para presidência do país pouquíssimo tempo após a entrada da lei em vigor, haja vista ter sido um de seus grandes opositores quando ainda era deputado. Sua gestão do executivo federal, combinada com a ampla possibilidade de regulamentação da Lei por parte de sua administração, nos colocou (e ainda coloca) em constante estado de alerta. A portaria nº 666, de 2019, editada e defendida pelo então Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, é outro exemplo da fragilidade das conquistas da nova lei, e do consistente ataque, desde diferentes frentes, às pessoas migrantes.

Não surpreende que, desde novembro de 2017, ao menos 10 ações judiciais* foram propostas, três das quais em plena pandemia de COVID19, momento em que as minorias raciais e étnicas no Brasil são as mais fatalmente atingidas por essa doença. Em 2017, a Defensoria Pública da União (DPU) propôs Ação Civil Pública (ACP)[2] devido a remoções forçadas, sem qualquer comunicação prévia, de migrantes venezuelanos que residiam temporariamente na Rodoviária de Boa Vista.

Em 2018, o Estado de Roraima (RR) tentou, diversas vezes, restringir o acesso de migrantes a serviços públicos. Em abril, ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com Ação Civil Originária (ACO 3121), pedindo o fechamento temporário da fronteira do Brasil com a Venezuela alegando, dentre outras razões, o aumento da criminalidade no estado, a sobrecarga no sistema de saúde e de educação, e o risco de epidemias (Vedovato, 2018). Em agosto do mesmo ano, o Estado de Roraima editou o decreto nº 26.681-E, que condicionava a prestação de serviços públicos em RR à apresentação de passaporte, ainda que muitos imigrantes, dentre eles os mais vulneráveis, como os indígenas, ingressassem sem o documento. Em resposta, o Ministério Público Federal (MPF) e a DPU ingressaram com ACP[3] para derrubar esta exigência, dentre outros pedidos, e, em decisão liminar, juiz federal determinou o impedimento de ingresso e de admissão de venezuelanos no território brasileiro. Em instância recursal, o próprio desembargador federal, Kassio Marques, do TRF-1 desabafou que “chega a ser frustrante alcançar tantas conquistas sociais, positivá-las por meio de processo legislativo regular e, por via da intervenção judicial, impedir a concretização dos princípios legais correspondentes”, e reverteu a liminar. O caso acabou chegando ao STF, que decidiu por derrubar a exigência de apresentação do passaporte para o acesso a serviços públicos.

Em 2019, o MPF propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 619) contra a supramencionada Portaria nº 666 de 2019, que criminaliza as pessoas migrantes, classificando-as essencialmente como “pessoas perigosas”, além de ilegalmente ampliar o instituto da deportação, dentre outras medidas, e a ação segue sem qualquer manifestação da corte constitucional.

Em 2020, já são pelo menos 5 ações judiciais propostas. Em janeiro de 2020, foi publicada a Lei Municipal nº 2.074/2020 em Boa Vista, que tinha como efeito o tratamento discriminatório de pessoas migrantes, pois restringia seu acesso a serviços de saúde. Em decorrência, foi proposta ACP pela DPU, bem como Ação Direta de Inconstitucionalidade[4] pela prefeitura de Boa Vista contra a Câmara Municipal da cidade. Esta lei, que limita o acesso de migrantes no estado a serviços de saúde, ganha relevo ainda maior no contexto atual de pandemia mundial, haja vista que o Brasil se destaca como um dos países com maior número de casos e de mortos, e devido ao fato de que as populações vulneráveis se encontram ainda mais fragilizadas. Em plena expansão do COVID19 no Brasil, nova ação foi proposta pela DPU, mais uma vez devido à remoção ilegal, sem ordem judicial, sem aviso prévio, ou qualquer planejamento de abrigamento de migrantes venezuelanos residindo na ocupação espontânea “Clamor do Rio”, às margens do Rio Branco, em Boa Vista, RR.

Em maio de 2020, e em decorrência da emergência sanitária criada pelo COVID19, o Brasil fechou suas fronteiras por meio da edição de sucessivas portarias, sendo a última a Portaria Interministerial nº 255, de 22 de maio de 2020, que determinou quais indivíduos teriam a entrada no país excepcionalmente permitida. Dentre eles, estariam migrantes com algum tipo de residência no Brasil, aqueles que portam registro nacional migratório, bem como familiares próximos de brasileiros, com exceção das pessoas venezuelanas. O tratamento claramente discriminatório ensejou outra ACP[5], também promovida pela DPU.

O surgimento de um vírus extremamente letal e a correspondente política de saúde eugenista por parte do executivo federal provocaram, para além de uma crise sanitária, também a intensificação da já existente crise econômica. Em decorrência, e diante da pressão social, o governo brasileiro criou a possibilidade de que pessoas residentes no Brasil, em certas condições socioeconômicas, obtenham um auxílio-emergencial. No entanto, desde o momento em que foi possível retirar o benefício, muitos migrantes não conseguiram acessá-lo, por questões puramente operacionais, relacionadas ao CPF e à documentação, ou devido ao seu status migratório.

O silêncio da Lei nº 13.982/2020, relativa ao auxílio, bem como de seu regulamento, o Decreto nº 10.316/2020, em considerar as especificidades das pessoas migrantes e sua questão documental, contribuiu em ensejar tratamento discriminatório no momento da retirada do auxílio em agências da Caixa Econômica Federal (CEF). Essa situação, no entanto, não é nova, e poderia ter sido prevista. Em 2018, o MPF ingressou com ação judicial para garantir que solicitantes de refúgio conseguissem abrir contas bancárias. O curioso deste caso era que já havia uma infinidade de leis, normas e regulamentos, em distintos órgãos da burocracia administrativa federal, que garantiam o direito de solicitantes de refúgio de abrir contas bancárias e, a despeito disso, tais indivíduos ainda assim encontravam barreiras no momento da abertura, ficando dependentes de “bons” gerentes bancários. A história se repetiu, mas desta vez se destacam não somente solicitantes de refúgio; para além deles, imigrantes indocumentados, irregulares, com documentação vencida, entre outros, em sua maioria não-brancos e em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica, são os principais atingidos.

Dentre as muitas conclusões a que se pode chegar, ressalto aqui uma: o reconhecimento legal/formal do direito, apesar de importante, não é suficiente para que pessoas que habitam a zona do não-ser de fato vivenciem este direito. Sem conseguir resolver este problema pela via extrajudicial, a DPU ingressou com ACP[6] contra a CEF e o Banco Central. Na ação, os defensores argumentaram que “o reconhecimento do direito ao auxílio-emergencial já ocorreu em caráter geral para todos os residentes em território nacional que preencham as regras de elegibilidade e que o ato de pagamento é apenas a forma final de implementação do benefício” (grifos no original). Não obstante seja preciso reconhecer a força discursiva de tal sentença no contexto em que está inserida, cabe a tarefa de complexificá-la.

De acordo com os defensores, a falta do acesso tangível ao direito formalmente reconhecido não significaria a falta do direito ou desigualdade do sujeito em abstrato. No entanto, quando o mesmo tipo de situação ocorre, em um curto espaço de tempo, com grupos sociais similares, é preciso que se explicite a inexistência do direito e da igualdade materiais, e revela a proteção ilusória do colonialismo jurídico a corpos não-brancos (Pires, 2019). Importante mencionar o nome de João Manuel, imigrante angolano assassinado em São Paulo por um brasileiro que o atacou dizendo que “estrangeiros só querem receber dinheiro do governo [por meio do auxílio-emergencial], enquanto brasileiros estão sofrendo”, logo após João Manuel e dois amigos, feridos no ataque, dizerem que tal afirmação seria racismo. Isto nos torna capazes de perceber os processos de desumanização e extermínio continuados de grupos de migrantes habitantes da zona do não-ser e explicita como o mito da democracia racial nutre íntimas conexões com o mito da hospitalidade brasileira.

Se, por um lado, a superjudicialização ocorrida pós-Lei 13.445/2017 pode ser interpretada como resultado dos novos mecanismos legais introduzidos pelo dispositivo normativo, que viabilizaram e fortaleceram estratégias jurídico-políticas de luta e de engajamento de diferentes setores da sociedade brasileira, por outro, é possível também que seja um sintoma do estado permanente de violência e de indignidade que experenciam corpos migrantes desviantes.

A criminalização de imigrantes; a fragilização do acesso a serviços públicos por parte de imigrantes; a instabilidade e precariedade dos direitos à saúde, moradia, e assistência social para imigrantes; e a estigmatização de migrantes como portadores naturais de doenças, representam os muitos objetos das ações explicitadas, e não demonstram problemas pontuais, tampouco são apenas resultado do momento político atual. As mesmas denúncias se repetem no tempo, muitas vezes fatos semelhantes são objeto de diferentes ações judiciais, independentemente do momento político ou da lei vigente, demonstrando-se que falar de exceção não se aplica a corpos migrantes não-brancos.

Preocupa, ainda, os casos que sequer chegam ao Judiciário; com a hipervisibilização das migrações de pessoas venezuelanas e a atual concentração de recursos econômicos e humanos, públicos e privados, ainda que limitados, no norte do país, para prestação de serviços a migrantes, é preciso nos questionar sobre os processos de apagamento, silenciamento e violência constante também vivenciados por outros grupos migrantes não-brancos, corpos incapazes de produzir voz audível aos poderes instituídos (Mombaça, 2020).

Nesse sentido, mais frustrante do que judicialmente impedir a concretização de princípios legais, como comentou o desembargador Kassio Marques, é a ausência permanente destes mesmos princípios na realidade das pessoas migrantes não-brancas, apenas ‘concretizados’ quando chancelados por gente de toga.

Se o momento atual revela o intenso ataque a minorias étnicas e raciais no Brasil, com um “novo fôlego sádico” (Flauzina e Pires, 2020), talvez mais importante do que nunca as lutas travadas no âmbito do Judiciário como estratégia de sobrevivência essencial das populações que habitam a zona do não-ser. Mas não podemos perder de vista que a violência contra tais grupos é um estado de constância, em que os poderes instituídos, mesmo em períodos considerados de estabilidade, continuarão acionando estratégias de estratificação racial da humanidade, que diretamente atingem grupos migrantes não-brancos.

Necessário, portanto, não naturalizarmos o grande número de disputas judiciais como essencialmente positivo, como uma conquista da e para a população migrante por si só, ou imaginarmos que servirá como um mecanismo pedagógico dos poderes instituídos. Tampouco devemos nos distrair pela linguagem das agências internacionais de “boas práticas” estatais.

A necessidade de travar disputas no Judiciário para sobreviver já é representativa da violência permanente a que estão inseridos migrantes que habitam a zona do não-ser. Essencial, portanto, disputar a própria produção do direito, do Estado, e da política (Pires, 2019), como centrais para interpelar a realidade, a partir de novos paradigmas.

* Ações Civis Públicas e ações em tribunais superiores

** Agradeço especialmente a Luiz Carlos Silva Faria Júnior pela leitura atenta do texto e pelos comentários agregados.

 

Notas e Referências

FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 11, N.02, 2020, p. 1211-1237.

Organização Internacional para as Migrações. Retrato da Governança da Migração: República Federativa do Brasil. Disponível em: < https://migrationdataportal.org/sites/default/files/2018-09/Retrato%20da%20Governan%C3%A7a%20da%20Migra%C3%A7%C3%A3o-%20Rep%C3%BAblica%20Federativa%20do%20Brasil_1.pdf>. Acesso em: 07 de junho de 2020.

MOMBAÇA, Jota. Pode um cu mestiço falar? Disponível em: < https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-cu-mestico-falar-e915ed9c61ee>. Acesso em: 05 de junho de 2020.

PIRES, Thula. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. In: Viveros-Vigoya, Mara (Org.). Améfrica Ladina: Vinculando Mundos y Saberes, Tejiendo esperanzas. Guadalajara: LASA, 2019.

VEDOVATO, Luis. Ação Civil Originária entre Venezuela e Brasil: A Construção do Direito de Ingresso. In: BAENINGER, Rosana; JAROCHINSKI, João (Orgs). Migrações Venezuelanas. Campinas: NEPO/Unicamp, 2018.

[1]                     Não tenho como interesse complexificar o conceito de ‘migrante’ utilizado no presente texto. Nesse sentido, englobo aqui todo e qualquer migrante, independentemente de seu status ou razão de migrar.

[2]                     ACP nº 1000677-62.2017.4.01.4200/RR

[3]                     ACP nº 2879-92.2018.4.01.4200/RR

[4]                     ADI nº 9000025-43.2020.6.23.0000/TJRR.

[5]                     ACP nº 5031124-06.2020.4.04.7100/RS

[6]                     ACP nº 5007915-28.2020.4.03.6100/SP

 

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