Colonialismo intelectual e teorias sociais do direito: ao modo de informe

16/07/2020

Desde que você engatinha

Quem foi que tentou te enganar

Teleguiando comando, vontade

A sua direção, como se fosse opção

Como um ratinho mimoso na gaiola giratória,

Você

Faz esse mundo girar

Veste a camisa

Defende e vai pra briga

Esvai sua energia

Mas não para pra pensar

Mas que situação

Deita, deita no chão
Levan, levanta a mão
Grita, grita a sua opinião na clara

A sua opinião só vale
Quando não desafia
Quem te dá permissão
Quem tá com o apito mão

Procure a saída
Encontre a sua vida
Eu disse, encontre
Sua própria direção!

- Bernardo Santos BNegão,
Giratória (sua direção)

 

Para que(m) servem as teorias sociais do direito?

Trata-se de mais um giro epistemológico das teorias sociais do direito, prolongado do debate no âmbito de grupo de pesquisa, acerca do colonialismo intelectual em Orlando Fals Borda no dia quatro de junho de 2020 e a recuperação da reunião ocorrida 31 de maio de 2019.

A importância da problematização do colonialismo intelectual persiste e persistirá enquanto o mal-estar dos transplantes teóricos rondar as salas universitárias – tanto em sua mais nova proliferação virtual, quanto ao conteúdo ainda não comprometido com rupturas, resistências e novas formas de construção de possíveis voltados para a América-Latina.

Poderíamos avançar do primeiro estágio da reunião e diálogo, tendo constatado que as teorias socias do direito podem ser compostas entre o universal e o particular, composição independente que vai registrar um distanciamento do objetivismo funcionalista da vertente americano-norte-eurocêntrica da sociologia do direito.

Assim o colonialismo intelectual de Fals Borda nos apresenta não só uma leitura da situação acadêmica desde o final da década de 1960 e início dos anos 70, mas também promove a dissidência na pesquisa social. Mesmo que situar rupturas se inscreva na instância da teoria social, as teorias sociais do Direito ainda estão submetidas ao adestramento da pesquisa à forma de ordens e funções[1]. E mais, o contínuo histórico colonizador implementado no trâmite das constituições liberais materializa o modelo de desenvolvimento/exploração periférico(a). Trata-se do engessamento do perfil ideológico do constitucionalismo ocidental na medida em que as elites locais se estruturaram na minoria branca e proprietária em detrimento das pessoas indígenas e negras, incorporados à massa campesina agrária pelo modelo colonizador pós-independência. Foram tais constituições que impediram a retomada das dinâmicas próprias e ancestrais.

Veja-se o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, promulgado em 1890 antes mesmo que a República promulgasse sua primeira constituição em 1891. Além deste pequeno detalhe revelar o caráter “constituinte” do Direito em implementação, também poderíamos notar a explícita proibição a época das práticas religiosas, espiritismos e curas que servissem para “fascinar ou subjugar a credulidade pública”. Ademais, indicava em suas contravenções penais a prática da capoeira, da vadiagem e etc. justamente para asseverar ao trabalho os corpos rebeldes ainda não-domesticados. A conveniência do Direito é de marcar os processos de assimilação da estrutura capitalista, ou seja, uma superestrutura que garante a reprodução social do capitalismo – tanto nos seus processos estritamente econômicos como na expansão de uma cultura.

A descolonização do Direito passa pela necessária discussão do horizonte estatal e as condições sustentadas por este, rompendo com sua matriz colonial e eurocêntrica. Essa redefinição aponta para a validação de epistemes e formas criativas de pesquisa para as Teorias Sociais do Direito na América Latina. O marco do Constitucionalismo Latino Americano pode contribuir para inspirar-nos nos saberes que adotam a auto-determinação em relação ao Estado, fazendo emergir o Direito fora das instâncias partidárias e institucionais. Entretanto, é bom termos bem clara a superação da filosofia política que rebarba da instância jurídica monista; aquela que nos permite postarmo-nos como julgadores da realidade e pareceristas de consensos democráticos. De onde a estratégia-jurídica vai bem mais afiançada que a aderência e o compromisso com a transformação social.

Em seu léxico teórico Fals Borda chama condição de subversão àquela da qual se ameaça a sociedade e seus conjuntos de valores estabilizados. Para nós, do direito, incluir-se sob condição subversiva seria colocar por suspenso a autodefesa dogmática da lei. Vestir a camisa e cair na briga não é nada menos que o automatismo da subordinação consentida somada à reciprocidade adversativa característica da elite, lapidada nos consensos ideológicos e normativos. O mercado livre das teorias brancas e sociais do Direito traz consigo uma série de correspondências filosóficas de anteparo do político, em que a associação livre não é a do humano, e sim, do juízo e das opiniões, o que, em última instância, impede em apostar em outras formas de vida pois antevê a subversão como imoralidade, e por isso é preciso tomar pé da discussão acerca da hipótese de Não-Direito.

O Não-Direito está no campo do possível-impossível, um esforço de ideias baseadas na negatividade de crítica, aliado a vontade de pôr tudo abaixo, mas coordenado no fundamento de uma prática cotidiana de resistências e formas de vida que sempre se reproduziram sob a violência capitalista. A utopia não é um sinônimo de abstração nihilista, ela é o alinhamento das vontades e das potências das organizações da vida abaixo com o reconhecimento da montanha gigantesca a ser conquistada.[2] O Direito é produto de uma época e de uma forma de sociedade, não é o fim da história, pensar em uma vida transformada é também pensar o fim do Direito e da proporcionalidade mediada das relações contratuais. O exercício da crítica radical percebe o caráter não natural das formas jurídicas e suscita novas práticas – essas, quem sabe, fruto de experiências que já estão aqui, expondo a dialética dura do capitalismo que produz dentro de si a sua destruição.

Quando os conceitos são assumidos como extensões utópicas, estamos a falar do movimento pelo qual um certo regime de representação se dissolve e no lugar dele se reunem sugestões de nova ordem – inscrita e criada pelo trabalho a se tornar realidade. Aqui trabalho pode ser entendido como ação do ser humano no mundo; ação instruída por idéias que examinam os meandros do real em busca de concretização que gere novidade e transformação. Assim Alex Moraes registra o desafio de pensar a política não como representação, mas "interiormente", como uma agência eficaz do real que prescreve novas possibilidades na vida comum. Uma opção teórico-política, e método de pesquisa, que torna as pessoas protagonistas da própria história, que Alex Moraes registra como fruto de uma “sensibilidade comunista”.[3] Peter Hallward (2010) só acha possível unir a teoria e prática do comunismo com uma “vontade de comunismo”, pensando o caminho ao mesmo tempo que o forja. A complexidade do vir-a-ser comunista pode ser representada no que fala Etienne Balibar (2013) ao indicar a tríade Compromisso – o desejo de mudar o mundo para mudarnos nós mesmos-, Imaginação – o poder radical de conceber utopias -  e Política – capacidade de promover organizações e desorganizações.

Vejamos o ensinamento situado abaixo e à esquerda, um interessante adendo indicativo dos efeitos das teorias de cima a partir do registro crítico do território de Chiapas. O antigo porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional, SupCmt Marcos nos diz que é esta teoria branca e imaculada que engendra a imagem asséptica do cientista em seu laboratório. Deste modo, a ciência se assegura obsessivamente por uma higiene anti-realidade. No troca-troca dos “paradigmas científicos” chegamos à esterilização que permite a precedência da ciência e tecnologia à responsabilidade pelas transformações sociais. E mais, é o cientista social/intelectual sob as garantias da objetividade científica que se ocupa do trabalho de limpar o sangue derramado pelo Estado. Para citar um dos vários casos a que Marcos se refere, suplementada pela relação jurídica citemos a Matança em Acteal, chacina de 45 indígenas tzotziles, incluindo grávidas, crianças e velhos provocada por paramilitares em 22 de dezembro de 1997 em Chiapas, sem verdade ou justiça, com a anuência da Procuradoria Geral da República (PGR) mexicana[4].

As teorias brancas saem em defesa do Estado Democrático de Direito implementado na situação colonial-capitalista. Por esta via de inteligibilidade teorética não é possível perceber que a construção social imprescindível da ordem jurídica liberal é a ampliação da precariedade sob a ordem civil de batalha gestada por uma burguesia cada vez menor e avarenta[5]. E do mesmo modo que se ampliam modelos de acumulação, dispõem-se de enunciados lógico-formais de regulação social e administração da justiça. Não à toa que Marx em outubro de 1842, em 5 artigos publicados na Rheinische Zeitung adiantava uma argumentação que se centrava em defender a legitimidade dos camponeses diante dos interesses privados dos proprietários das florestas, a dificuldade estava em trespassar a cadeia argumentativa da requalificação jurídica da coleta de madeira sem acessar um retorno ao direito feudal, tirando proveito da filosofia alemã da época, nos nomes de Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Carl von Savigny.

Voltando aos gravetos tomados, o formato extrativista de desenvolvimento na América Latina é sequência da gestão colonial e o imaginário jurídico indica a operação da natureza como recurso natural, no mais radical artigo de direito ambiental. Quantos raciocínios e publicações são necessárias para retroceder na implementação consuetudinária da degradação do humano e da terra? Avanço a discussão aproximando-nos novamente do zapatismo mexicano, por estes outros ventos de dignidade e rebeldia em que o pensar e o fazer – a que poderíamos nutrir nossas teorias sociais do direito – acrescentam novas veredas de inteligibilidade, apontadas por Eugene Gogol[6].

(1) Formas indígenas de tomadas de decisão que amadurecem durante o movimento e percorrem a adesão das comunidades locais, formando novos coletivos, em comitês;

(2) a dimensão feminina da luta revolucionária, a criação da lei de mulheres revolucionárias fundamentada na condição de transformação da vida das campesinas indígenas;

(3) terceira vereda nos diz sobre a centralidade da terra na luta zapatista, na medida em que o apagamento do artigo 27 da Constituição pelo governo de Salinas de Gortari (PRI) e a assinatura do NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, Canadá-México-Estados Unidos) rompia com a garantia das terras comunais;

(4) novas formas coletivas e não exclusivistas de organização, a esta novidade compete um interessante aprendizado das formas de luta: Emiliano Zapata e Pancho Villa, a teologia da libertação, o maoísmo, a guerra de guerrilhas que emerge na América-Latina nos anos 70... assim, ciente de diversos modos, mas diferenciando-se de todos eles, o zapatismo mexicano reúne variadas frentes sociais, de muitos métodos e graus de compromisso, participação e apresentação.

Adicionados estes pequenos adendos, vale somar ao modo de informe os pontos abordados na data de 31 de maio de 2019 após a leitura da Ação Global contra a militarização do território zapatista. Na data foi possível conversarmos sobre os seguintes tópicos:

- Extrativismo no Brasil e na América Latina

- Pensamento de esquerda / rompimento com aspectos eurocêntricos

- Povos indígenas brasileiros e mexicanos

- Pensamento zapatista, juntas de buen gobierno e mandar obedeciendo

- Militarização e paramilitarização no México e no Brasil

- Lutas sociais democráticas e fetichismo do direito

- Segurança pública brasileira voltada para militarização

- Pensar novas formas de organização inspiradas pelo zapatismo

Após quase um ano desta Ação Global contra a militarização dos territórios de resistência realizada no campus da Universidade La Salle, a violência real do campo nos interpela com a notícia[7] do assassinato de Adão do Prado (59) e Airton Luis Rodrigues da Silva (56) no dia 30 de abril de 2020. Participantes ativos da vida comunitária, militantes e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Assentamento Santa Rita de Cássia II, localizado em Nova Santa Rita, Rio Grande do Sul.

 

Notas e Referências

MÚSICA

SANTOS, Bernardo “BNegão”. Giratória (sua direção). In: Seletores de Frequência; BNegão. Transmutação. Gravadora: Máquina, 2015.

LIVROS E ARTIGOS

BALIBAR, Etienne. Communism as commitment, imagination and politics. In: ZIZEK, Slavoj. The idea of communism. Volume 2. Londres; Nova Iorque: Verso, 2013.  p. 13-36.

FALS BORDA, Orlando. Ciencia propia y colonialismo intelectual. 2. ed. Bogotá: Editorial Oveja Negra, 1971.

GOGOL, Eugene. Ensayos sobre zapatismo. México: Prometeo Liberado: Juan Pablos Editor, 2014.

HALLWARD, Peter. Communism of the intellect, communism of the will. In: DOUZINAS, Costa; ZIZEK, Slavoj. The idea of communism. Londres; Nova Iorque: Verso, 2010. p. 111-130.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2013.

MORAES, Alex. ¡Sigan ese “movimiento real”! Sensibilidades comunistas e investigación social contemporánea. InSURGentes. Revista para las antropologías del surMérida, Venezuela. Nº 2, Año 1. Julio-Diciembre, 2019.

RIVERA LUGO, Carlos.¡Ni una vida más para el Derecho! Reflexiones sobre la crisis actual de la forma jurídica, Centro de Estudios Jurídicos y sociales Mispat / Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Aguascalientes / San Luis Potosí, 2014.

SUBCOMANDANTE INSURGENTE MARCOS. Nem ao centro e nem a periferia: sobre cores, calendários e geografias. Erahsto Felício e Alex Hilsenbeck (org.). Coletivo Protopia S.A. e Danilo Ornelas Ribeiro (trad.). Porto Alegre: Deriva, 2008.

[1] FALS BORDA, Orlando. Ciencia propia y colonialismo intelectual. 2. ed. Bogotá: Editorial Oveja Negra, 1971.

[2] Lefebvre cunha a noção de “utopia experimental” para descrever a propriedade prática das utopias quando calcadas nas relações existentes (vivência).

[3] MORAES, Alex. ¡Sigan ese “movimiento real”! Sensibilidades comunistas e investigación social contemporánea. InSURGentes. Revista para las antropologías del surMérida, Venezuela. Nº 2, Año 1. Julio-Diciembre, 2019.

[4] Publicado em: SUBCOMANDANTE INSURGENTE MARCOS. Nem ao centro e nem a periferia: sobre cores, calendários e geografias. Erahsto Felício e Alex Hilsenbeck (org.). Coletivo Protopia S.A. e Danilo Ornelas Ribeiro (trad.). Porto Alegre: Deriva, 2008. O artigo de Joel Solomon publicado no jornal La Jornada (1998), já denunciava não só o massacre, mas também o problema da violência rural generalizada em Chiapas, acesso em: Human Rights Watch, link: https://www.hrw.org/legacy/spanish/opiniones/1998/acteal.html

[5] RIVERA LUGO, Carlos.¡Ni una vida más para el Derecho! Reflexiones sobre la crisis actual de la forma jurídica, Centro de Estudios Jurídicos y sociales Mispat / Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Aguascalientes / San Luis Potosí, 2014, p. 154.

[6] GOGOL, Eugene. Ensayos sobre zapatismo. México: Prometeo Liberado: Juan Pablos Editor, 2014.

[7] http://reporterpopular.com.br/o-legado-de-adao-e-airton-os-militantes-do-mst-assassinados-em-nova-santa-rita-rs/ e https://mst.org.br/2020/05/01/mst-repudia-assassinato-de-assentados-e-exige-justica/.

 

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