Colonialidade e racismo epistêmico como categorias de análise do campo educacional (Ato I)

06/09/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

A imagem que ilustra a coluna foi concebida por Rob Gonsalves[1], pintor canadense de herança ibérica, em 2001. Em uma das múltiplas formulações de sentido a imagem parece sugerir uma mensagem principal: as caravelas que cruzaram o Atlântico levavam aonde quer que fossem o “desenvolvimento” dos sistemas simbólicos portugueses, espanhóis, britânicos e depois do século XVIII europeus ou simplesmente brancos[2]. A narrativa hegemônica sobre o processo de colonização das Américas e África está intuitivamente fixada à benevolente ruptura com o misticismo, ao ensejo gracioso do desenvolvimento econômico, ao alcance do progresso e à chegada salvacionista da civilização a zonas e povos bestiais, ocultado, por meio do privilégio epistêmico, que a longa constituição da unidade dos territórios que formam a noção de Europa foi erigida sobre o tráfico, sobre a escravização de pessoas e sobre o somente então possível extrativismo[3]. A modernidade mirada sob o ângulo da colonialidade do poder e do eurocentrismo revela na categorização racial e na deslegitimação cognoscente a forma de criação do Homem Universal e, mais tarde, dos Direitos Humanos Universais.

A justificação jusnaturalista que nomeia a razão como traço distintivo e particular do Homem, concedendo-lhe, em oposição à vida bruta[4], direitos naturais irrenunciáveis, conserva em si, a partir de si e para si espécie peculiar de razão[5]. O benefício de pertencimento ao sistema de divisão do trabalho remunerado deriva do corpo ibérico e do corpo britânico nas Américas do século XV[6]. A categorização racial, portanto, dirá quais corpos serão encarados como objeto e quais serão elevados a qualidade de sujeito a partir do paradigma dos povos que mais tarde formarão a Europa. Mas não é só. A racialização enxerga na estética corpórea verdadeira produção de sentido que fixa a diferença entre sujeito e objeto, ou seja, às mais diversas etnias do continente africano se entregam um nome: negro. Ao passo que os mais diversos corpos e sistemas simbólicos autóctone-americanos são subsumidos à uma única categoria racializada: índio[7].

O domínio e a violação do corpo não podem ser separados da violência dirigida sobre a aniquilação dos sistemas de produção de sentido titulados e desenvolvidos pelas etnias africanas trazidas à força para laborar na condição de objeto nas Américas. Da mesma forma, a subalternização e o genocídio dos povos autóctone-americanos não podem ser compreendidos sem a mesma reflexão, ou seja, de que o controle dos corpos racializados exige a morte das formas não ocidentais de produção de sentido sobre a realidade[8].

Os sistemas simbólicos são formas de nomear e conhecer a realidade a partir do poder de criação de sentido estruturado pela linguagem e reestruturado pelos agentes e instituições que a dominam[9], isto é, a realidade imediata é estruturada por determinada linguagem ao mesmo tempo em que os consensos relativos formados pelo emprego da linguagem estruturada (re)estruturam as bases linguísticas. O sentido construído sobre a categoria razão foi fixado pelo euro-ocidente a partir do euro-ocidente, produzindo o espaço histórico-geográfico e a argumentação filosófico-antropológica legitimada a criar e a interpretar a realidade. No processo de nomeação e criação de sentidos sobre a realidade o ocidente anula os sistemas simbólicos considerados inferiores a partir da categoria raça, desconsiderando a humanidade dos corpos que não possuem as bases simbólicas ocidentais.

A liberdade e a igualdade são totens que a modernidade do século XVIII construiu com base na classificação racial e na desclassificação epistêmica – racismo epistêmico – imposta aos corpos e aos espaços histórico-geográficos racializados desde o século XV. A seletividade com que os referidos totens são deferidos torna evidente que o amadurecimento da modernidade não abre mão da colonialidade do poder, do eurocentrismo, do epistemicídio e da assimilação, mantendo a conjugação das categorias raciais e sociais de estratificação social ao mesmo tempo em que romanceia a igualdade que se restringe à lei.

Continua...

 

[1] GONSALVES, Rob. The sun sets sail. Acrílico sobre tela, 2001. [2916x1438].

[2] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura, y conocimiento en América Latina. In: Anuario Mariateguiano (Lima: Amauta) Vol. IX, Nº 9. 1998, p. 230.

[3] ACOSTA, Alberto. Extrativismo e neoextrativismo: duas faces da mesma maldição. In: DILGER, Gerhard; LONG, Miriam; FILHO, Jorge Pereira (Orgs.). São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016, p. 49-50.

[4] BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Novos Estudos Jurídicos (Online), v. 19, p. 201-230, 2014, p. 208.

[5] MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 154.

[6] QUIJANO, Aníbal.  Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In. LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005, p. 108.

[7] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura, y conocimiento en América Latina. In: Anuario Mariateguiano (Lima: Amauta) Vol. IX, Nº 9. 1998, p. 229.

[8] Em meio ao contexto, a futura separação industrial entre o trabalho muscular e o trabalho intelectual há muito se mostra impensável, eis que o controle racial sobre o corpo sempre exigiu a assimilação da mente, empregando, em gradações, graus de intelectualidade condicionados ao sistema simbólico euro-ocidental aos trabalhadores da fábrica e aos trabalhadores da gerência. A real separação, por outro lado, poderia ser encontrada na partilha de sentido sobre outra realidade laboral, questionando as bases do sistema de divisão racial e social do trabalho.

[9] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 1-15.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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