Colonialidade à solta nos discursos de ódio e nas ameaças aos estudantes da UFRGS    

25/03/2019

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

 

A colonialidade expressa-se em diferentes âmbitos da vida, dirá Maldonado-Torres[1]. Ainda que em estreita relação com o capitalismo, a colonialidade opera não apenas na economia, mas na educação, na cultura, na sociedade, na nossa própria existência. Existência? É mesmo possível que a lógica-colonial moderna atue na dimensão ontológica? Se afirmativo, como isso acontece? E quais são suas manifestações mais contemporâneas?

Segundo o Informe das Nações Unidas sobre Liberdade de Expressão, de 2012,[2] a ocorrência de discursos de ódio teve aumento significativo nos últimos anos, em nível mundial. A ampliação da comunicação por meio da Internet, fluxos migratórios, crises econômicas nacionais e terrorismo são alguns dos fatores considerados relevantes para explicar esse aumento. Apesar de não haver um conceito jurídico e doutrinário unânime para definir discurso de ódio, o direito internacional dos direitos humanos considera que essas manifestações afetam de forma predominante grupos sociais minoritários[3] e podem incitar à violência, hostilidade e/ou discriminação, a depender das circunstâncias de cada caso.

No Brasil, esse cenário não é diferente. Na semana que passou, mais precisamente em 20 de março de 2019, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) recebeu informações de que textos contendo manifestações violentas contra seus estudantes foram publicadas em fórum na internet. Diante do teor de ameaça das publicações, a UFRGS acionou, em caráter preventivo, medidas de segurança. O teor de uma das mensagens é o seguinte:  “Fiquem ligados nas notícias do Rio Grande do Sul (…) Estou cansado dessas merdalhas mirins, ricas, brancas e fodidas liberando seus buracos para pardos e macacos, enquanto eu, the true alpha man, um verdadeiro gentleman, um santo, continuo aqui, virgem e xeio (sic) de ódio, vocês mulheres irão pagar caro”. Trata-se de mais um caso de discurso de incitação à violência, discriminação e hostilidade contra grupos sociais minoritários.

Discriminar implica adotar condutas que prejudicam, causam danos, impedem o acesso a direitos e que são dirigidas contra grupos sociais específicos ou indivíduos que façam parte desses grupos, como negros/negras, mulheres, indígenas, LGBTI. O fato de a discriminação atingir determinados grupos por conta de suas características mostra que seus fundamentos podem ser encontrados na ideia de colonialidade[4]. Por colonialidade, entenda-se o padrão colonial de poder proveniente do colonialismo - e por este sedimentado - que permanece vigente de forma estrutural nas sociedades contemporâneas.

Colonialidade é a característica das relações assimétricas de poder que se baseiam na classificação social das pessoas por meio da ideia de raça como forma de atribuir status de inferioridade às populações colonizadas. Fatores de diferenciação de grupos sociais em relação à figura do colonizador não eram apenas representação de diferenças, mas condição para mantê-los hierarquizados e em condição de subordinação. Este é o primeiro eixo da colonialidade, que se articula e tem como objetivo o segundo. A classificação social e subsequente inferiorização serve a uma nova estrutura de controle do trabalho e de seus recursos baseada na escravidão, servidão e produção dependente de commodities, tudo em favor da acumulação de capital.”[5]

Mais importante que a força bruta, o discurso é uma das principais ferramentas da colonialidade. O ato de descrever grupos, outorgar-lhes papéis sociais e comportamentos específicos, reduzi-los à condição de degenerados e não plenamente humanos foram mecanismos essenciais para construir seu espaço de subordinação e exclusão nas sociedades moderno-coloniais e que permanece até hoje. Ou seja, o discurso tem o poder de situar as coisas e quem adquire esse poder, domina[6]. Colonialidade, nesse sentido, atua em nível epistemológico e ontológico. Determina quem pode e quem não pode falar; quem pode e quem não pode ser considerado plenamente humano.

A partir dos aportes da matriz teórica descolonial, é possível identificar os traços de colonialidade em manifestações discriminatórias contra os assim chamados grupos minoritários. No caso da ameaça contra estudantes da UFRGS, mencionada acima, salta aos olhos daqueles mais familiarizados com os estudos descoloniais as profundas raízes coloniais das manifestações de ódio encontradas nas redes sociais.

Em primeiro lugar, o texto é uma manifestação de ódio e indignação contra dois grupos sociais minoritários: mulheres (“merdalhas mirins, ricas, brancas e fodidas”) e afrodescendentes (“pardos e macacos”). Todavia, embora o texto se refira a esses grupos, nem o termo “mulher”, nem “negro” ou “afrodescendente” aparecem. Em seus lugares, são usados termos altamente depreciativos e desqualificadores. Mulheres, independentemente de classe social, são rebaixadas a uma coisa abjeta e negros a animais. A presença de racismo e misoginia é mais que flagrante nessa fala e serve como motivos potentes para legitimar a violência contra esses grupos.

Em segundo lugar, a motivação do ódio e da indignação do autor da fala é o fato de uma mulher branca (segundo Quijano, considerada superior ao homem negro pelo traço fenotípico da cor branca) se relacionar com homens pardos e negros, que são associados e representados na fala à condição de animal. O fato, por si só, desqualifica e rebaixa as mulheres a uma coisa abjeta. Por outro lado, a fala do autor é também uma reação indignada a um comportamento não-padrão, que mexe com relações de poder em que o homem branco teve histórica ascendência. O que motiva o ódio é uma mudança de comportamento que aponta para o empoderamento tanto de mulheres, quanto de negros. Raça e gênero foram fatores articulados de forma fundamental na classificação social de mulheres, pardos e negros a fim de situar seus status de inferioridade e subordinação.

Em terceiro lugar, a corroborar tanto a configuração do discurso de ódio, quanto a colonialidade, o emissor é alguém que se apresenta como o protótipo do sujeito dominante: “the true alpha man”, o homem branco heterossexual, razão pela qual se considera investido no poder de reivindicar papéis sociais binários-coloniais e pré-determinados; designar caracterizações depreciativas aos destinatários; e mais que isso, expressar ódio em relação a uma situação que, a seu ver, rompe com o padrão de dominação que lhe favorece e, por isso, justifica qualquer ato de violência.

O caso da UFRGS é, portanto, um caso típico de discurso de ódio com alto potencial de gerar violência, precisamente porque é uma manifestação escancarada de colonialidade do poder.

 

 

Notas e Referências

[1] MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, p. 127-167, 2007.

[2] NACIONES UNIDAS, Asamblea General. Promoción y Protección del Derecho a la Libertad de Opinión y de Expresión. [S.l.], 7 sept. 2012. Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=a/67/357&Lang=S> Acesso em: 21 mar. 2019.

[3] Usaremos minoritário no sentido de grupos com ausência ou debilidade de poder econômico, político e/ou social, em uma dada sociedade. Trata-se, portanto, de um conceito qualitativo e não quantitativo.

[4]    BRAGATO, Fernanda. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos. In: Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, vol. 09, nº 04, p. 1806-1823, 2016.

[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTROGÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, p. 93-126, 2007.

[6] BRAGATO, Fernanda Frizzo; COLARES, Virgína Colares. Indícios de descolonialidade na Análise Crítica do Discurso na ADPF 186/DF. Revista Direito FGV. vol nº 13, nº 03, set-dez, p. 949-980, São Paulo, 2017.

 

 

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