COISA JULGADA – 9ª PARTE: FORMAÇÃO DA COISA JULGADA – 3ª PARTE

11/02/2020

De volta, ao problema da chamada coisa julgada prejudicial, passo à análise de outra das premissas necessárias à sua compreensão: o conceito de incidentalidade.

Por um conceito de incidentalidade

O dispositivo em análise (art. 503, CPC) utiliza o termo ”incidentemente” para se referir ao modo como a questão prejudicial está por ser decidida. Já o enunciado n. 165 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis usa o termo “questão prejudicial incidental”. Neste último caso, o termo incidental é colocado com função predicativa do termo questão. Por tudo isso, é preciso, embora de modo perfunctório, estabelecer o sentido do termo incidental.

Incidental é algo que surge no curso de outro. Por exemplo, questão incidental (ou, com mais propriedade: questão incidente) é aquela que é deduzida com o processo em trâmite, como, por exemplo, quando o réu alega a incompetência do juízo. Ou seja, a questão ou outro substantivo (como uma causa ou até mesmo um procedimento) torna-se incidental quando é inserida com o processo em curso. O termo funciona, portanto, como adjetivo, como qualidade de questões deduzidas. Nesse sentido, existem questões incidentais que estão no processo para serem devidamente resolvidas. Pode-se nominar o julgamento delas de julgamento de questões incidentais. É o que acontece quando o réu argui a incompetência do juízo. O fato de serem incidentais não implica dizer que não devam ser julgadas. Devem, e o julgamento delas, frise-se, gera, com o trânsito em julgado, eficácia de coisa julgada. Era esse o sentido empregado, por exemplo, no § 2° do art. 162, CPC-73, quando mencionava que “decisão interlocutória é aquela que, no curso do processo, resolve questão incidente”.

Há, contudo, questões que estão no processo apenas para ser analisadas a fim de que outras sejam julgadas. Pode-se nominar tal sistemática de análise incidental de questão. Aqui, o termo incidental nada tem a ver com a premissa acima. A incidentalidade não está no momento processual em que a questão é veiculada, mas sim no fato de ela estar no processo para ser “meramente” analisada, e não propriamente julgada. É o que se chama de incidenter em oposição à ideia de principaliter, que é denotativo daquilo que é julgável após a análise do que é meramente incidental. O termo incidental, neste caso, desempenha a função de advérbio do termo questão, porquanto tenha a ver com o modo como esta é analisada, ou seja, incidentalmente. Nesse sentido, incidental, em rigor, não é a questão, e sim uma qualidade da análise.

Pois bem. No citado enunciado, o vocábulo incidental, embora mal empregado, tem a ver com o segundo sentido apontado acima para o termo. Não se trata de questão a ser julgada, mas sim “meramente” analisada. É o que ocorre no exemplo dado da ação reivindicatória, em que a propriedade é fundamento do pedido de imissão na posse da coisa. Assim, não se pode entendê-lo como referente a questões que são introduzidas com o processo em curso, uma vez que, em verdade, a questão já é processual (e, mais especificamente, litigiosa) com a própria propositura da ação, pois compõe a causa de pedir remota do pedido. O § 1° do art. 503, CPC, usa (como o inciso III do art. 469, CPC/73, utilizava) o termo incidentemente, mas não se refere a um adjetivo do termo questões, como consta do enunciado, e sim como designativo do modo como a análise da questão se dá. Ou seja, utiliza-o no segundo sentido apontado neste texto. Ao elaborar o enunciado, contudo, não se observou tal sutileza. Empregou-se o termo incidental como adjetivo de questão, dando azo, como se colocará abaixo, a problemas de ambiguidade.

Por isso, e tendo em vista que tais enunciados constituem uma espécie de metalinguagem epistêmica do texto legal, logo se sujeitando aos rigores analíticos de um sistema descritivo de sentido (nomoempírico descritivo, como dizem Lourival Vilanova e Marcelo Neves), é de censurar o uso do termo incidental como adjetivo do substantivo questão, pois, por sua ambiguidade, pode dar azo a interpretações errôneas, como a que fixe a ideia de serem tais questões objeto de um verdadeiro julgamento. De outro modo, pode dar ensejo à aplicação do regime jurídico do § 1° do citado art. 503 àquelas questões que, conquanto surjam com o processo em curso, são objeto de declaração (julgamento), e não de mera análise. O enunciado, com isso, pode contribuir para o ruído comunicativo de misturar dois regimes jurídicos bem distintos: o do caput e do § 1° do art. 503, CPC.

 Até a próxima postagem, que seguirá com a 4ª. parte desta subsérie.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Código de Processo Civil // Foto de:Senado Federal // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/23249263305/

Licença de uso: https://www.pexels.com/creative-commons-images/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura