COISA JULGADA – 3ª PARTE: DOS EFEITOS DA COISA JULGADA – 1ª PARTE

31/12/2019

Sigo a série mais uma vez com um texto curto; mais uma vez, porém, de conteúdo fundamental.

De igual forma, começo com uma pergunta: qual é a diferença entre indiscutibilidade e imutabilidade?

Como já dito em outro texto da série, a eficácia de coisa julgada consiste numa indiscutibilidade. É preciso, todavia, entender o que se torna indiscutível.

Das possíveis eficácias sentenciais, é a declaratória-base que a passa ter tal característica: toda decisão pressupõe um dizer (dictum) sobre aquilo que foi posto à discussão (não custa frisar que o processo judicial, como fenômeno jurídico, é fato linguístico, sendo isso, inclusive, a base epistêmica para ser possível dizê-lo dialético). O nome declaratória-base, empregado aqui, é utilizado não só por ela ser o fundamento de todas as demais eficácias sentenciais, como também por ser possível que exista, no mesmo módulo, mais de uma eficácia declaratória. Exemplo clássico disto é o da declaração de ineficácia na ação de nulidade (declaração-consequente), que decorre da declaração da existência do poder de nulificar o ato jurídico questionado (declaração-base).

Assim, por menor que seja, toda decisão – até mesmo aquelas antecipatórias da tutela – tem um dictum. No caso destas, o dizer é relativo à pretensão processual a antecipar, que tem o Estado-juiz como sujeito passivo, obrigado a prestá-la. É de se ressaltar que a porção constatativa (o dictum) das decisões antecipatórias da tutela, para a qual a ideia de “antecipação da cognição” de Pontes de Miranda é ótima base epistêmica, é quase completamente ignorada pela processualística brasileira em geral.

Por óbvio, a indiscutibilidade do dizer impede que ele seja reprocessualizado, no sentido de voltar a ser discutido. Seja voltando como objeto a ser declarável, hipótese em que não poderá ser analisado (dito efeito negativo da coisa julgada), seja voltando como premissa para o julgamento, hipótese em que deverá ser considerado tal como o foi (dito efeito positivo da coisa julgada).

 No entanto, e o mais relevante, é entender que toda discutibilidade não é um fim em si mesma. Ela serve de base para outras consequências processuais possíveis. Mesmo na ação preponderantemente declaratória (dita, erroneamente, “meramente declaratória”), a discussão judicial serve a algo: no caso, a criação de certeza jurídica sobre o dito e, com isso, possíveis efeitos práticos decorrem, como o impedimento à prática de qualquer agir que atente contra a declaração. A discutibilidade pode servir, desse modo, à mutação de outras eficácias sentenciais.

Nas decisões no âmbito das tutelas provisórias, por exemplo, por não haver indiscutibilidade, é possível, nos moldes do caput do art. 296, CPC, alterar a situação estabelecida, seja para revogar, seja para modificar.

Válido frisar que, com a ressalva da eficácia declaratória-base da sentença, todas as outras são mutáveis por variados motivos. A indiscutibilidade da coisa julgada não é óbice a isso. Eis a razão de ser equivocada – não obstante a literalidade da disposição legal, no caso o artigo ora em comento – a ideia de ter a imutabilidade da decisão (mais propriamente, de suas eficácias) como decorrência natural da coisa julgada. Se o condenado paga, a eficácia condenatória da sentença se esvai sem que isso atente contra a coisa julgada. Se ocorre o advento do prazo de prescrição, resta neutralizada, com o devido exercício da exceção de prescrição pelo condenado, a eficácia executiva da sentença, algo que, igualmente, não atenta contra a coisa julgada. São exemplos que não nos permitem dizer o contrário.

A indiscutibilidade do dictum impossibilita tão-somente que as demais eficácias sentenciais sejam alteradas pela constatação de inexistência daquilo que foi declarado. A imutabilidade, aqui, se dá apenas por mera decorrência lógica da indiscutibilidade: por não se poder rediscutir o dito na sentença, não se pode, de modo forçado ao seu beneficiário, mudar as demais eficácias. Isso, por óbvio, não impede que, por acordo, o beneficiário transacione sobre aquilo que a sentença lhe proporcionou ou, até mesmo, dele renuncie. A eficácia de coisa julgada não é óbice, portanto, à negociação sobre a eficácia da sentença. Não se trata, por isso, de uma imutabilidade per se, algo incompatível com a ideia de coisa julgada. O que se tem é indiscutibilidade da declaração-base e ampla mutabilidade das demais eficácias sentenciais. Neste caso, em decorrência de fatos jurídicos dos mais diversos, tal como se exemplificou. Ou seja, ao contrário do que consta da literalidade do mencionado art. 502, CPC, que coloca em antecedência cronológica (sugestionando, além disso, outra de ordem lógica) o termo imutável em relação ao termo indiscutível, é a indiscutibilidade que pode dar ensejo a um tipo, bem específico, de imutabilidade. Portanto, se a eficácia de coisa julgada consiste numa indiscutibilidade, por motivos lógicos isso só pode ter a ver com a eficácia decisional que tem a ver com o dizer: a declaratória-base.

Com isso, percebe-se que, embora, por limitar objetivamente a coisa julgada à declaração, mostre-se, na superficialidade, simplista, a chamada teoria tradicional (devida, antes de tudo, a Konrad Hellwig) é, em verdade, um imperativo lógico do sistema.

Eis a singela contribuição de hoje.

 

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