COISA JULGADA – 14ª PARTE: FORMAÇÃO DA COISA JULGADA – 8ª PARTE

17/03/2020

De volta, ao problema da chamada coisa julgada prejudicial, passo à análise dos pressupostos necessários à sua ocorrência.

A coisa julgada da questão prejudicial tem, como se sabe, seus pressupostos próprios. Eis o porquê de, com acerto, se falar ter ela um regime jurídico distinto. Abaixo, analisarei cada um deles, a partir de comentários aos parágrafos do art. 503, CPC.

§ 1°: questão expressamente decidida (rectius: analisada). O texto em referência pode dar azo a interpretações equivocadas. Ao utilizar o advérbio “expressamente” para designar o modo como a questão é “decidida” (em verdade, analisada), induz-se a entender ser necessária declaração judicial sobre dela, algo que, por óbvio, tornaria a previsão normativa irrelevante, já que, conforme foi dito no item (4), a questão já estaria decidida, como principaliter. Além disso, e corroborando, a questão não é decidida, mas sim simplesmente analisada, e o é para que outra, referente ao pedido, seja verdadeiramente decidida, mais especificamente: declarada. Em rigor, o que o dispositivo estabelece é que, conquanto seja “mera” etapa da fundamentação, haja efetiva análise da questão prejudicial. Não se podendo falar, por hipótese alguma, em coisa julgada se a decisão está, quanto à questão prejudicial, mal fundamentada ou, pior, não fundamentada. Por certo, a fundamentação analítica, nos moldes do § 1° do art. 489, CPC, é pressuposto indispensável para esse tipo de coisa julgada, funcionando como condição de possibilidade dela.

Inciso I: ser a questão necessária ao julgamento do mérito. Conquanto supostamente diga o óbvio, este dispositivo lança a pedra fundamental da problemática. Primeiro, por consignar que nem toda análise de questão realizada será objeto de coisa julgada. Para tanto, é indispensável que a questão seja determinante para o julgamento do pedido, ou seja, componente da causa de pedir remota. A verdadeira questão prejudicial, em suma. Em segundo lugar, ao estabelecer esse laço com a causa principal, ele acaba por, no mínimo, condicionar a coisa julgada sobre a análise da prejudicial à ocorrência de resolução da questão principal. Após isso, todavia, a análise da prejudicial ganha autonomia, tal como já foi visto.  

Inciso II: o problema do contraditório prévio e efetivo. Em sequência, outro pressuposto indispensável é a ocorrência do contraditório. Não basta, porém, a mera oportunidade de a parte falar sobre a questão prejudicial, é preciso que, de fato, tenha havido a pronúncia sobre ela. O texto deixa expresso que, em havendo revelia (entendida, aqui, como não pronúncia quanto à questão, de modo que também deve abranger a revelia parcial, prevista no caput do art. 341, CPC), não ocorre a concreção do suporte fático da coisa julgada em comento.

Há contraditório nas hipóteses em que há controvérsia? Como bem demonstra Alexandre Senra, para fins de coisa julgada é irrelevante que a questão prejudicial tenha sido controvertida, no sentido de contestada. Na hipótese de ter havido confissão da afirmação feita pela parte haverá formação do mesmo modo, e, retoricamente, com muito mais força. Isso, porém, não pode ser aplicado nos casos de confissão ficta punitiva e de admissão, uma vez que, neles, ou a parte queda-se inerte (admissão) ou, em decorrência de descumprimento de dever probatório, tem uma presunção contra si imputada (confissão fica punitiva). Por óbvio, nessas hipóteses não há contraditório, logo insuficiência do suporte fático da coisa julgada.  

Sentido do termo “prévio” mencionado no dispositivo. Por certo, ele está colocado no sentido de ser anterior à prolação da decisão. Disso, das duas uma: ou está relacionado com as hipóteses de chamado contraditório diferido, como se dá no âmbito das decisões em situação de urgência, ou tem a ver com a chamada reserva de exceções, na qual, por limitações cognitivas, determinadas matérias não poderiam ser alegadas em defesa, restando ao réu deduzi-las em outro momento, como causa de pedir de uma ação própria. No primeiro caso, a expressão é irrelevante, visto que, como dito, tais decisões não têm o condão de produzir coisa julgada. Já no que se refere ao segundo, a ressalva tem, ao menos, serventia retórica, muito embora seja também mencionada no § 2°, a ser comentado logo abaixo, onde, até do ponto de vista estilístico, está mais bem alocada.

Inciso III: competência absoluta do juízo. É preciso, além disso, que o juízo tenha competência absoluta para, em meio próprio, poder resolver a questão como principal. Ou seja, não basta a ele que apenas possa dela conhecer, é necessário a competência para, antes de tudo, declará-la existente, ou não, para todos os fins em direito possíveis, especialmente para a formação de coisa julgada. O problema ganha contornos práticos quando se sabe que, estando a questão funcionando como questão prejudicial, qualquer juízo, conquanto seja incompetente para resolvê-la, pode conhecê-la para outras finalidades. Por exemplo, um juiz do trabalho não pode declarar a aquisição da propriedade por usucapião, mas tem competência para, reconhecendo a usucapião alegada em defesa (Súmula 237, STF), acolher o pedido de proteção possessória formulado nos embargos de terceiro. Ou seja, a incompetência tem a ver apenas com o julgamento de determinadas causas, não impede que, com fundamento nelas, se julgue outras. Não permite o julgamento, mas não veda a simples cognição. No entanto, como a análise da questão prejudicial se torna indiscutível, faz-se necessário para sua ocorrência que, além de tudo, o juízo tenha competência absoluta para julgá-la. Estranhamente, o texto do dispositivo só menciona a competência em razão da pessoa e em razão da matéria, aparentemente excluindo outras competências absolutas, como a funcional. Obviamente, não há razão para tal exclusão. O que importa é o juízo ter competência absoluta, a falta de qualquer delas torna insuficiente o suporte fático da coisa julgada. A restrição, inclusive, é contraditória dentro do próprio CPC, pois, em virtude de seu art. 43, ao contrário do art. 87, CPC/73, não mais se faz, para fins de perpetuatio juridictionis, a menção restritiva à competência em razão da matéria e hierárquica, utiliza-se, tão-somente, o termo genérico competência absoluta.   

§ 2°: restrições probatórias e/ou cognitivas. Por fim, não há como se ter produzida a coisa julgada da questão prejudicial se o procedimento da causa tem restrições em termos probatórios, como ocorre no procedimento dos juizados especiais, e/ou haja restrições cognitivas, caso das ações cambiárias, possessórias, de desapropriação, de imissão na posse, dentre outras. O ponto aqui é: se por algum motivo, a parte teve qualquer restrição para discutir a totalidade da questão prejudicial, não se pode falar em coisa julgada quanto à análise dela. Em rigor, os pressupostos ora em comento (de viés negativo: os fatos previstos na hipótese não podem ocorrer) têm a ver com o pressuposto que impõe o contraditório efetivo, mais especificamente com a possibilidade de um contraditório sem restrições.

Restrição probatória e procedimentos documentais. Não se há, entretanto, de aplicar o disposto acima aos procedimentos documentais, como o mandado de segurança e o procedimento executivo fundado em título extrajudicial. Por um motivo simples: neles, ausência da prova necessária não leva a um juízo de improcedência, mas sim à inadmissibilidade. A restrição probatória impede a própria análise da questão prejudicial. Ora, se esta sequer pode ser analisada, quem dirá ser envolvida pela coisa julgada. Portanto, em tais procedimentos, tendo havido analise do mérito (algo que requer a presença de prova documental), ter-se-á, desde que presentes os demais pressupostos, formação de coisa julgada sobre a análise de questão prejudicial. Necessário registrar que Leonardo Carneiro da Cunha, conquanto com fundamentos distintos, defende, pioneiramente, a formação deste tipo de coisa julgada no mandado de segurança.

Até a próxima postagem, que seguirá, mais uma vez, com a análise da coisa julgada prejudicial.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações

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