COISA JULGADA – 10ª PARTE: FORMAÇÃO DA COISA JULGADA – 4ª PARTE

18/02/2020

De volta, ao problema da chamada coisa julgada prejudicial, passo à análise de outra das premissas necessárias à sua compreensão: o conceito de objeto declarável.

Do objeto declarável: introdução

Um dos pontos centrais para a compreensão da problemática do art. 503, CPC, é o referente ao objeto declarável. Ou seja, aquilo que é sujeito à declaração judicial. Uma questão que, de logo, se põe é a seguinte: a eficácia prevista o § 1° do art. 503, CPC (indiscutibilidade da análise da questão prejudicial), ocorre apenas naquela parte da fundamentação da decisão que contém a análise (seja confirmatória, seja negatória) de um efeito jurídico ou, de forma mais ampla, atinge também simples questões de fato que funcionam como prejudiciais ao pedido?

Exemplificando: i) numa ação reivindicatória, a propriedade, inequivocamente um tipo de eficácia jurídica (art. 1.225, I, CC), é, em sua alegação, elemento da causa de pedir remota; ii) numa ação de indenização, o dano, “simples” elemento de fato que compõe suportes fáticos dos mais diversos, não tendo, em si, natureza de eficácia jurídica, do mesmo modo é componente da causa de pedir remota. Em ambos os exemplos, temos “dados” que funcionam como questão prejudicial ao pedido: no primeiro, meio que se diz: “faço jus à coisa, pois, sendo proprietário dela, não a tenho”, logo funciona a propriedade como questão prejudicial ao pedido reipersecutório; no segundo, a alegação do dano tem função análoga, porquanto, do mesmo modo que só quem é proprietário pode reivindicar, só quem sofreu algum dano pode pedir indenização.

Acontece que, no primeiro caso, a questão prejudicial tem natureza de efeito jurídico, embora seja reintroduzida no sistema como elemento de suporte fático. No caso, do suporte fático do fato jurídico da reivindicabilidade. Já no segundo, a questão prejudicial (alegação do dano) não tem tal natureza jurídica, dano é “puro” fato.  No primeiro caso, levando em conta – na literalidade – o disposto no inciso I do art. 19, CPC, a propriedade seria objeto declarável, pois, pelo dito acima, se encaixa na noção de relação jurídica descrita no texto legal; já o segundo não se enquadraria em tal perfil, pois, como se disse, dano não passa de “mero” elemento fático. Corroborando com isso, há talvez um dos maiores dogmas da processualística brasileira: não cabe ação declaratória de fato.

O problema, porém, não é tão simples. Para mais bem compreendê-lo é preciso, primeiramente, destrinçar as nuances do art. 19, CPC, e, em seguida, verificar se ele funciona no sistema como texto que, por fixar algumas hipóteses, se fecha para todas as outras. Ou seja, se por prever quando é cabível a ação declaratória, ele veda a propositura para os demais casos.

Do objeto declarável: da ideia de relação jurídica à ideia de eficácia jurídica

Primeiramente uma análise do art. 19, mais especificamente de seu inciso I, se impõe. Em redação mais extensa do que seu correspondente no CPC/73 (inciso I do art. 4º.), o dispositivo estabelece que o interesse pode-se limitar: “à declaração da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica”. É conhecida a tese de que, em verdade, a previsão é mais ampla: no lugar de relação jurídica (espécie) deve-se entender situação jurídica (gênero), porquanto não há razão para que situações jurídicas não relacionais, como aquelas que decorrem do negócio jurídico de oferta não sejam declaráveis. O dispositivo prevê que não somente se pode declarar se uma relação jurídica existe ou não (incluindo o ter existido ou não), mas sim, a partir da expressão modo de ser, tudo aquilo que a ela diz respeito, como os elementos que podem vir a compô-la (direitos, pretensões, ações, seus correspondentes passivos etc.), eventuais limitadores à sua eficácia, como ocorre nas relações jurídicas sujeitas à condição e termo (pode-se pedir declaração de que uma determinada relação obrigacional está sujeita à condição suspensiva, por exemplo), dentre outras possibilidades.

Parece ser adequado dizer que o sentido do texto em comento é o de que qualquer efeito jurídico (ou seja, consequência de um fato jurídico) é declarável, incluindo a sua não produção, como a ação declaratória de ineficácia de um ato jurídico nulo de pleno direito. Nesse caso, a redação deveria conter o termo mais genérico efeito jurídico, e não relação jurídica, termo mais restrito.

Sem entrar em discussões mais analíticas, a referência ao primeiro termo se faz de modo mais amplo do que a ideia de situação jurídica. Mesmo para quem entende ser esta o gênero que engloba as relações jurídicas (como é o caso de Marcos Bernardes de Mello e os que o seguem), ele é insuficiente para abarcar a totalidade de efeitos jurídicos possíveis, pois, em rigor, situação jurídica é termo que, ao menos classificação bernadiana, denota efeito positiva. Ou seja, o fato jurídico atribui algo a alguém, como na oferta, em que se atribui ao destinatário o direito potestativo a aceitar (exemplo de situação jurídica complexa unilateral na invocada classificação), e o fato jurídico da maioridade, que atribui capacidade civil absoluta ao ser humano (exemplo de situação jurídica simples na mesma classificação).

Bem pensadas as coisas, há fatos jurídicos cuja eficácia não gera atribuição de algo a alguém, mas sim uma desconstituição, isso sem falar naqueles de função modificativa. É o caso, por exemplo, do fato jurídico preclusivo, cujo efeito, consoante já se analisou alhures, é a extinção do poder de praticar determinado ato: não há situação jurídica que dele derive; pelo contrário, ele é extintivo de alguma. Presentes os requisitos, pode-se pleitear a declaração de que algo deixou de existir. Dito isso, persiste o problema de saber se, para além daquilo que seja propriamente um efeito jurídico, há possibilidade de declaração. Isto é, se o simples fato, incluindo sua inexistência e o seu modo de ser, pode ser declarado. Como se sabe, o próprio art. 19, CPC, mantendo a tradição do direito brasileiro, fixa, em seu inciso II, hipóteses de cabimento de ação declaratória de fato: trata-se do cabimento de declaração de autenticidade ou falsidade documental. A questão que se coloca é saber se pode haver declaração de fato para além dessas hipóteses.

Até a próxima postagem, que seguirá com a 5ª. parte desta subsérie.

 

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