COIMBRA EM RITMANÁLISE

03/01/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

A primeira coisa que impactou o olhar e os sentidos dessa “caloira” brasileira em Coimbra foi a relação diferente que a cidade tem com o tempo. Aqui a divisão temporal em unidades como anos, meses, semanas e dias é regida pelo calendário acadêmico da Universidade de Coimbra. Por isso, numa espécie de subversão do calendário civil, nessa cidade o ano começa em setembro. Mas, antes que a gente se dê conta, já estamos adaptados à cidade, vivendo em total sincronicidade com as mudanças provocadas pela passagem do tempo.

Coimbra nos envolve em seus ritmos, nos seus fluxos e na sua geografia. A cada nova estação uma experiência de transformação é compartilhada entre as pessoas e a cidade, numa constante e intensa ritmanálise. A vivência do cotidiano coimbricense proporciona uma reflexão muito profunda e existencialista, é como se olhar para fora nos permitisse enxergar também dentro de nós.

No encerramento do verão em setembro, a cidade começa a se despedir das folhas douradas das árvores ao mesmo tempo em que saúda a chegada dos estudantes da Universidade. Esse período é marcado pela inesquecível trilha sonora das rodinhas das malas girando nas pedras portuguesas no sobe e desce das ladeiras. A partir daí até quase dezembro a chuva de folhas transforma as ruas da cidade num gigante tapete amarelo e torna-se o palco onde ecoam os sons de incontáveis idiomas, da vibrante música das tradicionais tunas estudantis e das cantigas das praxes.

Definitivamente, o outono coimbricense é um espetáculo de som e cor, mas pode ser tão triste quanto bonito. Afinal, a estação em que tem início as aulas coincide com um tempo de entrega. No outono as árvores perdem as folhas, esvaiem-se até restar apenas o essencial. Assim, em cada tronco permanecerá apenas o que os mantém de pé. Presenciar essa transformação da natureza é poético e pessoalmente simbólico, afinal, nós que aqui chegamos estamos sob o mesmo imperativo de despedida: deixamos nossos países e cidades, os velhos hábitos e rotinas, estamos distantes de tudo que é íntimo ou conhecido. Um trimestre que começa com renúncias e mudanças é também muito doloroso, difícil e lento.

Mas essa é também uma etapa de fortalecimento. Coimbra vai nos ensinando que toda essa abdicação é preparatória e necessária para mudanças ainda mais profundas que virão em seguida, durante o inverno. Então, até por questão de sobrevivência, é preciso renunciar, deixar ir, desfolhar. O outono é um processo de descoberta da resiliência, através dele descobrimos a capacidade compreender e até admirar esse processo gradual, oneroso e introspectivo de transformação.

O outono se vai e muitos estudantes também. Quando dezembro chega Coimbra passa ter árvores e ruas praticamente vazias. No cenário há menos cor e menos som. Inicialmente, as últimas folhas ainda persistem nas árvores, mas essa resistência apenas adia brevemente as renúncias inevitáveis. Logo aprendemos que de nada adianta o esforço para tentar passar incólume pelas estações, essa obstinação inócua só causa angústia e sofrimento. Esse é o momento de resignar para perseverar.

O inverno chega deixando a cidade cinza, molhada, fria e melancólica. Os sacrifícios outonais são assustadoramente perceptíveis, e as vezes é difícil acreditar que aquela paisagem urbana tão frondosa e iluminada agora aparece tão árida diante de nós. Uma chuva fina e duradoura encharca os dias que ficam mais curtos, a garoa densa e opaca causa uma cegueira matinal, os ventos gelados se intensificam provocando tremores e arrepios num cenário feito sob medida para o estado de apatia e desânimo. Daí surge o medo de que, nessas condições, essa estação seja impossível de se superar. Como será possível enfrentar o inverno após se despir no outono?

O olhar atento ao funcionamento desse ciclo natural compartilhado com a cidade nos permite constatar que Coimbra e suas as árvores enfrentam as intempéries do inverno mesmo sem flores e sem folhas. Isso traz um alívio inexplicável e é um aprendizado riquíssimo. Desfolhar é justamente o que permite salvaguardar forças e energia internamente para sobreviver ao inverno. O que parecia um ônus em princípio, a cada dia se transfigura na descoberta de força, coragem e autonomia. Afinal, assim como em cada árvore dessa cidade, está dentro de cada um nós o segredo para vencer as fases mais difíceis da vida.

Então, superado o inverno, estaremos finalmente prontos para a renovação da primavera e para aproveitar o calor e a luz do verão que vem em seguida. Porém, esse tempo ainda não chegou e não é possível adiantar ou pular etapas. A partir de agora, o sol pouco a pouco começa a se abrir novamente e cada dia apresentará mais transformações e novos aprendizados tanto para Coimbra quanto para quem vive aqui. É preciso paciência para compreender que a vida é feita de ciclos e que a passagem por cada um deles é inevitável e merece ser intensamente sentida e vivida. Essa afinação especial com a cidade seguindo a cadência das estações nos premia com essa capacidade de enxergar e admirar a beleza da impermanência da vida. Obrigada, Coimbra.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Coimbra // Foto de: Jairo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jairo_abud/2435031938

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura