Cláusulas gerais e conceitos indeterminados: o problema da indeterminação do direito – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

07/08/2017

Os dogmas da Revolução Francesa, fulcrados na supremacia das leis e na estrita separação dos poderes, que muito influenciaram os países de tradição romano-germânica, desde o constitucionalismo, perderam muito de sua força, para não dizer que foram inteiramente superados. Isso não significa que o juiz, na atualidade, deva desprezar a lei e decidir atribuindo ao texto o sentido que bem entender[1], ainda que esteja diante de um conceito jurídico indeterminado ou de uma cláusula geral.

Não se pode negar que é delicada a posição do juiz na jurisdição constitucional. Se por um lado é verdade que ele não mais está vinculado à letra da lei, por outro, com a releitura do Princípio da Legalidade, a própria lei esta vinculada à Constituição e aos princípios de justiça nela existentes, exigindo um grande esforço do intérprete para resistir à tentação de, desprezando o texto legal, buscar respostas diretamente na Constituição.

Saliente-se, que na jurisdição constitucional, naquilo que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito, o mínimo que se espera do juiz é que ele aplique a letra da lei, diante dos limites semânticos a ser atribuídos ao texto. Tal dever nem de longe pode ser tido como uma atitude positivista – que, aliás, se fosse, problema algum teria diante do atual estado da natureza hermenêutico[2] -, mas um ato de responsabilidade política.[3]

É que o constitucionalismo não fez desaparecer a lei, ao contrário, a sua vinculação à Constituição reforçou sua importância, pois lhe atribuiu legitimidade diante das normas constitucionais. Se a lei não tem mais a supremacia de outrora, tendo em vista que a Constituição passou a ser o centro do sistema jurídico, isso não significa que a lei deixou de ter importância na regulação do trato social. Tanto assim o é, que no Estado Constitucional, o juiz só está autorizado a não aplicá-la se sobre ela exercer um controle de constitucionalidade – ou no caso de aplicação dos critérios de solução de antinomias - e não poderia ser diferente.[4]

Para além desse dever de aplicar a lei sem pular etapas[5], não se nega que o juiz no Estado Constitucional exerce atividade criadora, até mesmo pela distinção entre texto e norma, mas para isso tem que ter cuidado com subjetivismos e decisionismos. Essa atribuição de sentido ao texto, até pela polissemia das palavras, deve ser exercida de forma responsável, é o que se denomina de accountability judicial.[6]

Dentro dessa nova roupagem constitucional, o Parlamento parece ter abandonado a ideia de editar leis com pretensão de regulamentar todos os setores da atividade humana, com normas claras e limitadoras da atividade interpretativa dos juízes no ato de aplicação[7]. Atualmente, inclusive de forma propositada, o Legislativo tem se utilizado de regras de tessitura aberta, conceitos indeterminados e cláusulas gerais, ampliando a atividade interpretativa do jurisdicionado e do Poder Judiciário no caso concreto.

Em razão dessa nova perspectiva do Legislativo, que reconheceu sua impotência em regular todas as situações concretas e, com isso, passou a editar regras de textura aberta, o accountability judicial deve ser redobrado, não sendo permitido ao juiz, na concreção da norma, utilizar-se de uma subjetividade que lhe permita atribuir qualquer sentido ao texto, mesmo porque ele (juiz) está envolto em uma tradição, que não lhe permite dizer qualquer coisa sobre o texto normativo, diante da ausência de grau zero de sentido.

É de se ter em mente, como afirma Alexy, que um sistema jurídico fundado em regras é sempre, por variadas razões, um sistema aberto, principalmente, por conta da textura aberta da linguagem do direito, da possibilidade de conflitos entre normas, bem como pela existência de casos não regulados, o que acarreta várias dificuldades quando da aplicação das regras, caracterizando a sua incerteza.[8]

Um dos fatores que torna uma regra específica indeterminada é o uso de termos ou expressões ambíguas e imprecisas. Diz-se ambíguo um texto, quando possui dois ou mais significados distintos, o que o diferencia da vagueza, que consiste na utilização de conceitos que possuem aplicação indefinida para o caso particular. O problema é quando um mesmo texto normativo é vago e ambíguo, possuindo multiplicidade de significados, alguns dos quais, ou todos, com aplicação indefinida.[9]

Decerto a ambiguidade é pouco recorrente na estrutura das regras e não traz em si mesma grande dificuldade em sua aplicação, diante dos limites que o contexto impõe à interpretação no caso concreto. O mesmo não se diga da imprecisão da regra, que por recorrer a termos vagos ou indeterminados em si, trabalha com a noção de casos limítrofes, da qual são exemplos as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados.

Nessa perspectiva, com Judith Martins Costa, tem-se que com as cláusulas gerais obtém-se a vantagem da mobilidade proporcionada pela intencional imprecisão dos termos da fattispecie, afastando, com a utilização desta técnica, o risco do imobilismo em razão da utilização, em grau mínimo, do princípio da tipicidade.[10]

Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pela qual, reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originalmente extra-sistêmicos no interior do ordenamento jurídico.[11]

Depreende-se, pois, que as cláusulas gerais não se tratam de disposições normativas prontas e acabadas, ao contrário, demandam precisão, construção, por parte do intérprete. Por se tratar de técnica legislativa, não há o que se falar em cláusula geral implícita, mesmo porque elas carecem, no mínimo, de um conceito pendente de preenchimento valorativo (wertausfüllungbedürftiger Brgriff).[12]

É que as cláusulas gerais, nesta perspectiva, promovem um reenvio a outros espaços do ordenamento jurídico ou até mesmo a valores existentes dentro ou fora do sistema jurídico. Por terem um texto aberto, fazem com que o intérprete seja lançado a outras fontes axiológicas para fundamentar a sua argumentação. Seriam, pois, “um recipiente de captação (Auffangbecken) da variação da realidade”.[13]

Já os conceitos jurídicos indeterminados, que para alguns sequer possuiriam distinção digna de nota das cláusulas gerais, destas se distinguiriam, pois, “uma vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já têm sua solução preestabelecida na lei, cabendo ao julgador, tão somente, aplicar referida solução”.[14]

Percebe-se que quanto ao antecedente da norma jurídica, ambas as técnicas legislativas trabalham com a indeterminação e vagueza semântica, mas se distanciam quanto ao consequente, tendo em vista que nas cláusulas gerais se mostra muito mais complexa a atividade intelectiva do juiz, pois é ele quem determina os efeitos e as consequências práticas; já nos conceitos jurídicos indeterminados, embora a construção da hipótese fática seja tormentosa, os efeitos após a concreção são pré-definidos pela norma, facilitando, ao menos num primeiro momento, a atividade judicial.

Diz-se num primeiro momento porque não se pode confundir a concreção da hipótese normativa de um conceito jurídico indeterminado com um ato discricionário, como se fosse dado ao juiz atribuir qualquer sentido ao texto. É verdade que há muito vem se confundindo a utilização de conceitos jurídicos indeterminados com a concessão indiscriminada de poder discricionário ao juiz, tornando muito dificultosa qualquer sindicância na aplicação da norma vaga.[15]

Não há como se confundir atribuição de sentido ao texto normativo com atividade discricionária do juiz. Parece estranha a afirmação de que conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade seriam fenômenos interligados, porquanto o intérprete muitas vezes teria que se valer desta para preencher aqueles[16].

Com efeito, os limites da atribuição de sentido ao texto normativo estão na pré-compreensão do intérprete diante da intersubjetividade da vida em sociedade, do estar no mundo[17]. Não há lugar para subjetividades assujeitadoras do objeto, tampouco para relação sujeito-objeto no Estado Constitucional. A relação que tem assento no Estado Democrático de Direito, diante das garantias e direitos fundamentais, é a sujeito-sujeito, sem posturas solipsistas e arbitrárias daquele a quem foi dada a competência última de interpretar.[18]


Notas e Referências:

[1] Cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[2] Expressão cunhada por Lenio Streck e que vem sendo por ele empregada em variadas obras. Por todas conferir: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[3] Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[4] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? In: Revista NEJ – Eletrônica, Vol. 15 – n. 1, p. 158-173 / jan-abr 2010. Disponível em: www.univali.br/periodicos. acesso em: 24.10.2013.

[5] “[...] o juiz não pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional simplesmente deixando-a de lado e pulando para o plano constitucional, por não concordar com a consequência a ser desencadeada pela ocorrência do fato previsto na sua hipótese”. SCHAUER, Frederick. Las reglas en juego: um examen filosófico de la toma de decisiones basadas en reglas en el derecho y en la vida. Trad, Claudina Orunesu e Jorge L. Rodriguez. Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 144-145.

[6] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[7] Não se está afirmando que existe uma cisão entre interpretar e aplicar, como pode parecer. O ato de interpretação é também de aplicação, não havendo o que se falar, em separado, de argumento de fundamentação e argumento de aplicação. Cf. GRAU, Eros Roberto. Por que Tenho Medo dos Juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6. ed. refundida. São Paulo: Malheiros, 2014.

[8] ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios y razón práctica. In: Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho. n. 5. 1988, p. 39.

[9] PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universalidade das decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014, p. 47.

[10] COSTA, Judith Martins. A boa fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p. 298.

[11] Idem,. ibidem. p. 303.

[12] MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. In: Revista de direito do consumidor, n. 50, ano 13, abril-junho 2004, Revista dos Tribunais, p. 10.

[13] Idem, ibidem., p. 21.

[14] NARDELI, Paulo Renato Gonzalez. Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/5580/1/Clausulas-Gerais-E-Conceitos-Juridicos-Indeterminados-analise-Comparativa-Breve/pagina1.html#ixzz12RqmS1qC>. Acesso em: 15.11.2015.

[15] Sobre o tema, com farta bibliografia, consultar: KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e conceitos legais indeterminados: limites do controle judicial no âmbito dos interesses difusos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 29 e ss.

[16] Idem, ibidem, p. 48.

[17] Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 14. ed. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: São Francisco, 2014.

[18] Cf. STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.


 

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