Cláusula de raio e cláusula degrau em contratos de shopping center: uma leitura sob o enfoque do princípio da autonomia privada e do direito concorrencial – Por João Carlos Adalberto Zolandeck

05/10/2017

O presente artigo busca responder a três indagações feitas no artigo publicado nesta coluna em 14/09/2017, assim contextualizadas: É legal a cláusula de “raio”? Como o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e o STJ têm interpretado o assunto? É legal a cláusula “degrau”?

Ao firmar compromisso pela denominada cláusula de raio, comum em todas as locações em shopping center, o locatário/lojista assume a obrigação de não abrir outra loja do mesmo seguimento e características nos arredores do shopping cuja estrutura passou a integrar.

A justificativa decorre do entendimento sobre o negócio shopping center, isto porque há um grande esforço para a formação do fundo de comércio deste tipo de empreendimento, conforme análise feita por ocasião de outros artigos publicados nesta coluna.

Soma-se a isso o conceito de unicidade no sentido de que todos os empresários lotados no shopping center, sejam lojistas/locatários ou proprietários, desejam o sucesso de todos, ou seja, quanto maior o sucesso de determinado lojista, maior será o sucesso dos demais, diante da canalização de público para dentro da estrutura organizacional que possui um plano de mix diversificado, diferentemente do que ocorre com lojas de galeria ou lojas de rua.

O embate sobre a legalidade ou não da referida cláusula ainda é candente, estando em jogo, de um lado, o princípio da autonomia privada e, de outro, o direito concorrencial, o que se resolve pelo princípio da proporcionalidade e razoabilidade, considerando-se a particularidade de cada caso (o shopping em si e a cidade onde se localiza).

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) já teve oportunidade de analisar, por mais de uma vez, questões dessa natureza, cabendo destacar o julgamento do processo administrativo sob n. 08012.012740/2007-46.

Naquela oportunidade, por ocasião do julgamento (sessão do dia 22/06/2016), embora não considerada ilegal, a cláusula em referência, pelas condições estabelecidas no pacto submetido à análise, foi considerada abusiva e com efeitos anticompetitivos[1].

Analisando as razões de decidir do caso exemplo, foi possível perceber que o CADE não considera ilegal a cláusula de raio, mas, dependendo do contexto e do alcance, ela poderá afetar a concorrência.

Na balança entre a autonomia privada e o direito concorrencial, quando em choque, prevalece o último, considerando-se a defesa do interesse público, da coletividade e o próprio mercado.

Todavia entende-se que a cláusula de raio, quanto utilizada com ponderação e razoabilidade, levando-se em consideração o mercado e as características da cidade onde se localiza o shopping center, ao contrário de negar vigência ao direito concorrencial, é fruto do seu próprio conceito.

Nesse sentido é o entendimento do STJ, como se depreende da seguinte ementa:          (…) Na hipótese, a “cláusula de raio” inserta em contratos de locação de espaço em shopping center ou normas gerais do empreendimento não é abusiva, pois o shopping center constitui uma estrutura comercial híbrida e peculiar e as diversas cláusulas extravagantes insertas nos ajustes locatícios servem para justificar e garantir o fim econômico do empreendimento. (…) O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos de cunho empresarial é restrito, face a concretude do princípio da autonomia privada e, ainda, em decorrência de prevalência da livre iniciativa, do pacta sunt servanda, da função social da empresa e da livre concorrência de mercado[2].

As razões anotadas no mesmo julgado afastam o argumento de que a cláusula de raio prejudicaria os consumidores ao sustentar que “não se vislumbra o alegado prejuízo genérico aos consumidores delineado pelo Tribunal a quo, uma vez que, o simples fato de não encontrar em todos os shopping centers que frequenta determinadas lojas não implica em efetivo prejuízo, pois a instalação dos lojistas em tais ou quais empreendimentos depende, categoricamente, de inúmeros fatores sociais, econômicos”.

Depreende-se que o julgado levou em consideração o fim econômico do próprio negócio, a autonomia privada, a prevalência da livre iniciativa, a função social da empresa e a livre concorrência de mercado para declarar a legalidade da cláusula de raio.

É importante notar o efeito prático do compromisso. Na hipótese de ausência da cláusula de raio, o locatário/lojista instalado em um determinado shopping poderá inaugurar uma nova unidade nos arredores, desviando a clientela da respectiva estrutura. Tal fato prejudica o empreendedor proprietário, por impactar no aluguel complementar incidente sobre o faturamento, bem como os demais lojistas, pela perda de potencial público consumidor, caracterizando o desvio de clientela e, portanto, desvio de faturamento.

Na maioria das cidades considera-se razoável o estabelecimento de um raio que não ultrapasse dois mil metros (2 km), todavia cabe ressalvar que apenas o caso concreto definirá os contornos e a extensão desse compromisso.

Feitas as ponderações sobre a cláusula de raio, cabe analisar a chamada cláusula degrau. Por essa cláusula se estabelecem valores locatícios em escalas e em ordem crescente para os diferentes períodos do contrato. Assim o valor locatício poderá ser diferente para diferentes períodos do contrato, em escalas ou degrau em ordem crescente, sucessivamente até o termo final do pacto.

Cabe esclarecer que não se trata de valores diferentes em razão de reajuste do locatício, mas diferentes patamares por atribuição, acordo e definição no pacto inicial ou em aditivo contratual.

Tanto no contrato com cláusula degrau como naquele desprovido dela, será permitido o reajuste pela aplicação de correção monetária na periodicidade estabelecida por lei, pelo índice estabelecido no contrato ou por índice substituto, com amparo no princípio da autonomia privada e demais princípios já declinados, sustentadores do tipo especial de negócio que gravita em torno do conceito de shopping center.

É importante reiterar os argumentos lançados em artigos anteriores, no sentido de que esse arranjo contratual não se aplica a outras estruturas jurídicas não caracterizadas no modelo shopping center, pelas razões lá consignadas.

Conclui-se que tanto a cláusula de raio como a cláusula degrau, ajustadas com racionalidade e razoabilidade, têm plena harmonia com o princípio da autonomia privada, com a prevalência da livre iniciativa, com a função social da empresa, com a livre concorrência e em última análise com o fim econômico do próprio negócio, nos termos do julgado acima, utilizado para dar sustentação ao raciocínio adotado no texto.


Notas e Referências:

[1] http://www.cade.gov.br/noticias/cade-discute-clausulas-de-raio-em-contratos-de-shopping-centers. Na respectiva notícia há destaque para a seguinte posição do Relator Marco de Oliveira Junior, no processo administrativo que tramitou no CADE: “Essas restrições foram estipuladas pelos shoppings a lojistas de forma arbitrária, sem qualquer fundamentação em lógicas concretas de mercado que demonstrassem algum tipo de racionalidade econômica. Logo, sem qualquer justificativa e com escopo tão amplo, as cláusulas de raio apresentadas nos autos são manifestamente anticompetitivas e devem ser punidas”.

[2] (REsp 1535727/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/05/2016, DJe 20/06/2016).


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