“CLAMOR PÚBLICO”, “COMPORTAMENTO DELINQUENTE” E “OUSADIA”[1]? UM BREVE CONTRAPONTO ÀS PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA QUE AMEAÇAM A CONSTITUIÇÃO, O ECA E O SINASE    

12/07/2022

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Ao analisar as justificativas de uma série de propostas de alteração legislativa que tramitam no âmbito da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para modificação de artigos da Constituição Federal (CF), do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), pesquisadoras(es) do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (OBIJUV/UFRN)[2] constataram mais uma vez: tais argumentos historicamente se repetem, na tentativa de retroceder na garantia de direitos de adolescentes e jovens selecionados pelo Sistema de Justiça brasileiro. Tal percepção é retomada no contexto dos debates ocorridos no primeiro encontro do Ciclo de Estudos de 2022, realizado no último dia 07 de junho, cuja temática escolhida fora “O Novo SINASE[3] e tendências ameaçadoras para socioeducação”.

Os argumentos trazidos nestas propostas de alteração legislativa em trâmite nas duas casas do Congresso Nacional brasileiro não são novidade para quem atua direta ou indiretamente com o SINASE e o ECA, respectivamente regulamentados pela Lei n.º 12.594, de 18 de janeiro de 2012, e Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. De outro modo, com fundamentações racistas, conservadoras e desconectadas da realidade das formas de institucionalização de adolescentes e jovens no âmbito do Sistema Socioeducativo, eles tensionam o avanço da garantia de direitos, na medida em que insistem em resgatar argumentos percebidos no histórico tratamento legal destinado a esse público, cujas justificativas retomam a antiga Doutrina da Situação Irregular do Código de Menores de 1979.

Nesta breve reflexão, não se pretende trabalhar especificamente cada uma destas propostas, posto que a intensidade na qual os partidos políticos e seus representantes as produzem e reproduzem – literal e ciclicamente, impede, no espaço aqui disponível, trazê-las de modo pormenorizado. Entretanto, o que nos interessa é observar a repetição histórica de tais argumentos, desde a identificação de propostas apresentadas ainda na década de 1980[4], para a devida retomada da afirmação da continuidade da defesa dos direitos assegurados nas mencionadas leis protetivas.

O debate desenvolvido no referido Ciclo de Estudos do OBIJUV conecta-se ao presente ano eleitoral, cujas algumas das investidas partidárias intensificam-se em caminhos eleitoreiros e de retrocesso de direitos, mas principalmente, de manutenção de lógicas de morte e racismo institucional. Aqui, já um primeiro fato precisa ser destacado: adolescentes não são o segmento da população que mais produz violência, como se vê explorado e disseminado pela mídia hegemônica. Conforme dados do Atlas da Violência de 2021, publicado pelo Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), este segmento não impacta o aumento dos índices de violência como se intenta vender. Ainda, os maiores percentuais das vítimas da estrutura patriarcal, racista e capitalista, que também condizem com a população submetida a medidas socioeducativas são jovens negros e pobres, moradores das periferias, que não têm acesso à educação e a outros direitos fundamentais (CERQUEIRA, 2021).

Ademais, de acordo com o documento “Estatuto da criança e do adolescente: um guia para jornalistas” produzido pela Rede ANDI Brasil em 2009[5], é preciso evitar a exposição midiática que estigmatize este segmento, cujos enquadramentos descritivos e representações de forma pejorativa impliquem em represálias futuras e outros tipos de danos e rejeições. No mesmo sentido, “O Guia de referência para a cobertura jornalística referentes a adolescentes em conflitos com a lei”[6] ressalta o impacto desta exposição na formação do imaginário popular e seu poder de convencimento, que interfere nas opiniões acerca de muitos dos temas centrais das mencionadas propostas legislativas, a exemplo das tentativas de aumento do tempo de internação e alteração da idade da maioridade penal. Este entendimento também pode ser identificado quando observados os incisos X e LX do artigo 5º da CF/88; os artigos 17, 143 e 247 do ECA; 8.1 e 8.2 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing) e o artigo 8 da Convenção dos Direitos das Crianças e Adolescentes.

É neste sentido que Mansur e Rosa (2021), ao investigar a consistência de alguns dos argumentos de Propostas de Emenda à Constituição (PEC’s) que tratam da redução da maioridade penal, apresentam evidências empíricas que culminam na constatação da fragilidade das fundamentações adotadas. Os argumentos explorados pela mídia, seja sobre a sua influência sobre adolescentes e jovens, seja em apoio a outros argumentos, como compreensões sobre a suposta maturidade consequente do acesso à informação, ou ainda, a exploração do sentimento de insegurança da sociedade junto à ideia de impunidade, podem ser diretamente relacionados à Doutrina da Situação Irregular. Esta, como se percebe, se atualiza nas contínuas defesas por segregação, na constatação de que este público é alcançado pelas políticas públicas pela primeira vez quando selecionado pelo Sistema de Justiça, via determinações judiciais para sua privação de liberdade (BERNABÉ, 2018).

Aqui, mostra-se urgente retomar o que a pesquisadora Marina Bernabé (2018, p. 46) discorre sobre as infâncias desiguais no Brasil: se o que se demanda de adolescentes negros e pobres é prover a família, cuidar de irmãs(os) mais novas(os), cozinhar, lavar, e ser “o homem da casa”, como a produção legislativa poderia não seguir contribuindo com tratamentos desiguais? Mesmo quando se tem a absoluta prioridade como paradigma orientador das legislações protetivas, sua insuficiência para a garantia da efetivação dos direitos já previstos nos convoca a problematizar a continuidade e insistência das justificativas de ódio contidas nos inúmeros PL’s e PEC’s, identificáveis desde o Código Criminal do Império de 1830, e como elas se relacionam com o modelo de desenvolvimento capitalista e o racismo institucional.

Com o ECA, vimos mudanças no sentido do reconhecimento de adolescentes como sujeitos de direitos e o Sistema Socioeducativo como via de se tratar a responsabilização deste público, entretanto, com o apoio na universalidade das conhecidas fases da vida. E ainda, a criminalização das infâncias e juventudes pobres e negras e de suas famílias se mantem (CRUZ, 2014). A referida diferenciação das fases da vida, da infância e adolescência desde o peculiar processo de desenvolvimento é construída teórica e socialmente e se materializa em outras legislações protetivas. Entretanto, é percebida de maneiras muito desiguais, especialmente diante das distintas condições de vida das classes sociais e compreensões sobre família, raça, gênero etc (BERNABÉ, 2018).

Vimos as intervenções estatais punitivas e coercitivas como primeiro contato de adolescentes e jovens subalternizados com as políticas oficiais, e com Mansur e Rosa (2021, p. 216) a constatação de que “quanto mais cedo e mais severamente o sistema de justiça intervém, maior é a probabilidade de os adolescentes reincidirem durante a idade adulta e maior é a chance de que desenvolvam transtornos mentais ao longo da vida”. Em contraponto, urge investir em outros modos de produção de vida que alterem os anseios por ordem e defesa social e os estereótipos forjados nas figuras do “delinquente” versus “cidadão de bem”, que seja precedido de uma profunda e radical crítica ao Estado que prosseguirá administrando a miséria, e que abandone a crença na punição como via para resolução de conflitos ancorados nas desigualdades e modos de opressão.

A partir de julho de 2022 intensificam-se as articulações e mobilizações em torno das eleições para os Poderes Executivo e Legislativo. De mesmo modo, dobra a nossa atenção sobre as propostas de alteração legislativa que representam retrocessos no campo da socioeducação. Como já assinalado pela Coalizão pela Socioeducação[7], por Mansur e Rosa (2021) e pelas demais referências aqui trazidas, esperamos que representantes do Poder Legislativo comprometam-se com a garantia dos direitos de adolescentes e jovens selecionados pelo Sistema de Justiça e não desvirtuem estes debates nada consensuais; que deem prioridade às políticas sociais para este segmento com vistas a prevenir a realidade de violência sistemática a qual estão submetidos; que a inconstitucionalidade da diversidade de PL’s e PEC’s seja devidamente identificada e em contraponto, se apresentem e avancem propostas que visem a garantia da participação popular e demais direitos previstos no SINASE.

 

Notas e Referências

BERNABÉ, Marina Francisqueto. Ninguém nasce homem: torna-se homem. a produção dos gêneros e a precarização da vida - Problematizando as masculinidades em jovens em cumprimento de medida socioeducativa. 161 f. Tese (Doutorado em Psicologia Institucional). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2018.

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 de outubro de 1988.

____. Lei n.º 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional e dá outras providências. Brasília, 18 de janeiro de 2012.

______. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 13 de julho de 1990.

______. Lei n.º 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Brasília, em 10 de outubro de 1979.

______. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal Império do Brazil. Império do Brazil, 8 de janeiro de 1831.

CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021.

CRUZ, Ana Vládia Holanda. As raízes históricas da política criminal na legislação e nas práticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei. 236 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

MANSUR, Thiago Sandrini. ROSA, Edinete Maria. Análise das justificativas das propostas sobre redução da maioridade penal. ARGUMENTUM (VITÓRIA), v. 13, p. 208-225, 2021.

[1] Tais termos se repetem nos Projetos de Lei (PL’s), Anteprojetos de Lei (APJ’s) e Propostas de Emenda à Constituição (PEC’s) analisados nas atividades narradas neste texto, a exemplo do PL 2.169/2019, PLS 284/2013, Anteprojeto de Lei nº 07/2021 e PL 4679/2019.

[2] Grupo que atua desde 2009 na UFRN com a condução de projetos de pesquisa e extensão, disciplinas e ações de estudo. Atualmente composto por estudantes de graduação e pós graduação, e profissionais colaboradores(as) externos(as). As redes sociais do OBIJUV estão disponíveis em: instagram.com/obijuv_ufrn; https://pt-br.facebook.com/Obijuv/; https://obijuvufrn.medium.com/.

[3] Trata-se de uma forma de parceria público privada coordenada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), em parceria com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS), cujos projetos pilotos estão previstos para serem realizados em novas unidades socioeducativas dos estados de Minas Gerais e Santa Catarina, conforme divulgado em matérias das respectivas entidades. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/brasil-e-o-unico-pais-a-implementar-parceria-publico-privada-no-sistema-socioeducativo. Acesso em 05 jul. 2022.

[4] A exemplo da já arquivada PEC n.º 14/1989, que intentou alterar o artigo 228 da Constituição Federal para reduzir a idade da responsabilidade penal, e recorreu a argumentos semelhantes às propostas recentemente apresentadas, como a ideia de o adolescente acima de 16 anos já poder votar.

[5] Trata-se da Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Guia disponível em: https://andi.org.br/publicacoes/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-um-guia-para-jornalistas/. Acesso em 05 jul. 2022.

[6] Disponível em: https://livredetrabalhoinfantil.org.br/wp-content/uploads/2016/10/Adolescentes-em-conflito-com-a-lei-Guia-de-refer%C3%AAncia-para-a-cobertura-jornal%C3%ADstica-1.pdf. Acesso em 05 jul. 2022.

[7] Discussão apresentada na recente postagem no perfil do instagram da Coalização pela Socioeducação, movimento composto por entidades e especialistas defensores dos direitos e da prioridade absoluta de adolescentes e jovens. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cfl_5j2rlNZ/. Acesso em 07 jul. 2022.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura