Por Taysa Matos – 22/02/2017
Durante um café com amigos, entre outros assuntos, falamos sobre o ciúme e suas consequências nas relações. Então, aproveitando as ponderações feitas, resgatei esse texto que escrevi dois anos atrás (hoje com algumas modificações) onde, a partir de Clarice Lispector, trato o tema.
“Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.." (Por Não Estarem Distraídos - Clarice Lispector)
Parafraseando Caetano Veloso em sua música “O Ciúme”, podemos dizer que esse sentimento lança sua flecha preta e transforma tudo em perda, faz calar quem canta, deixa almas esticadas no curtume, sobre toda estrada, sobre toda sala. Esse sentimento que tem sua sombra pairando monstruosamente para vigiar e no oculto mistério se esconder, para agir sem que cheguem a perceber quando acerta o meio exato da garganta. Esse sentimento que transforma o amor em algo nem alegre, nem triste, nem poeta. Esse sentimento que traz solidão e quer fazer esquecer que em uma voz que canta tudo ainda arde.
Traiçoeiro e dominador, a tenebrosa sombra do ciúme transforma “o/a belo(a) em besta-fera e o doce em fel”. Segundo Rochefoucald “no ciúme, há mais amor-próprio do que amor”. Já para Ivan Bounine “o ciúme é uma falta de respeito pela pessoa amada”. O ciúme, portanto, quando doentio, serve para ferir, destruir e até matar.
Esse sentimento que tanto vagueia pelo (sub)consciente humano, pode se apresentar de duas formas: o romântico e o patológico. Quando é romântico e aparece no contexto de um relacionamento amoroso onde uma das pessoas esta insegura por achar que a relação está sofrendo alguma ameaça, (isso pode ser real ou imaginário), o ciúme surge como um sinal de alerta para avisar que algo não vai bem na relação. Esse tipo de ciúme – vamos chamá-lo de leve - pode ser saudável e até proveitoso para o relacionamento, pois faz com que os envolvidos repensem a relação e até mesmo seu comportamento com o outro. O bom ciúme – se é possível nomina-lo assim – cuida e protege, zela pelo ser ou objeto amado.
Porém, ao contrário do romântico, quando o ciúme é patológico, recheado de violência, causa incontáveis transtornos ao relacionamento, chegando a interferir na vida social, profissional e, principalmente, no equilíbrio físico e psicológico de sua vítima, pois uma pessoa ciumenta não consegue manter uma relação de objetividade com os fatos, esses são sempre interpretados a partir de suspeitas e delírios ciumentos. As pessoas patologicamente ciumentas vivem entre o amor e a desconfiança, o prazer e a dor, a obsessão e o medo (real ou imaginário) de descobrir a infidelidade de seus parceiros ou de constatar que a “perturbação” é a maior causa da sua real infelicidade.
Por termos uma sociedade patriarcal e machista, normalmente (em quase 100% dos casos), a vítima dessa obsessão e violência é a mulher, pois a ideia da preservação da honra masculina, ainda hoje, justifica a necessidade da vigilância e do controle sobre a mulher. Somado a isso, a sociedade moderna vive valores cada vez mais líquidos e tem nos reflexos do capitalismo o ter, o poder e a competitividade entre as pessoas – inclusive nos relacionamentos amorosos – como algo essencial e necessário. Com isso, a honra, o orgulho e a baixa autoestima – normalmente masculina – se sobrepõem ao respeito e ao amor, fazendo com que esse sentimento se materialize nas mais diversas formas de violência. O ciúme, no ambiente doméstico, aparece sobrecarregado de várias emoções, como: a ansiedade, depressão, raiva, vergonha, insegurança, humilhação, perplexidade, culpa, aumento do desejo sexual e desejo de vingança, esse último culmina sempre em agressões físicas e até mesmo a morte. E eles que antes viviam distraídos passam a procurar e não mais encontrar, mesmo estando ali, passam a não ver que o outro não viu, passam a querer ser o que já eram.
O ciúme patológico está alicerçado na fusão de fatores subjetivo-culturais com a posse. O ciumento se alimenta da ilusão de que o(a) parceiro(a) é uma parte dele mesmo e, quando este não corresponde mais à imagem idealizada, ao demonstrar sua autonomia e identidade, começam as suspeitas e com elas os conflitos. Conflitos esses que estão diretamente associados ao orgulho e aos complexos sentimentos de dores e feridas não tratadas e cicatrizadas.
Por tudo isso, no texto acima, Clarice Lispector, assim como para Guimarães Rosa quando diz que “alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. Felicidade se acha é só em horinhas de descuido.” (Grande Sertão: Veredas), diz que para viver um amor livre da opressão e que traga felicidade é necessário viver o “descuido”, pois, é na distração que tudo acontece e não no “prestar atenção”.
Os encontros e suas intensidades estão no cerne das aspirações humanas. Através deles, criamos, construímos e expressamos sentimentos. O encontro com o outro é o complemento do prazer de viver! E, por estarmos vivos, constantemente nos deparamos com o inusitado, que nos faz (re)pensar guerrilhas internas que destronam e fazem ruir pseudo-certezas.
Essas “certezas” presentes no caminho dos (des)encontros, por vezes tortuosos, afastam a leveza da distração, para dar lugar a sentimentos, adversos do amor e carregados de dominação que são desfrutados por todos aqueles que acreditam em relações fluidas, por aqueles que percebem o estar junto como algo fugaz, efêmero e inconstante.
Bem, se é inconstante não tem valor e, se não tem valor não tem importância, tanto faz! É assim? Não. O ciumento é dominador, ele deixa transparecer um traço de caráter que permite controlar, agredir e machucar, que permite minar a relação com toda e qualquer forma de violência – física ou psicológica -, pois pessoas inseguras precisam ter seus objetos de desejos “debaixo dos pés”. Por causa do ciúme o inseguro estabelece regras de “amor” para seus parceiros(as), que podem se apresentar na forma de: desconfiança, preparação de armadilhas, críticas aos colegas, opor-se sem motivo, restringir a liberdade do outro e conseguir dominá-lo, além do medo constante de ser preterido. E nesse “tanto faz” os encontros que seriam complementos se transformam em celas, em aprisionamentos afetivos.
E qual a relação do Direito com esses encontros? Toda. Direito é vida e a vida é feita de encontros. O Direito caminha de mãos dadas com a realidade social e, diante desse aprisionamento afetivo, precisa de normas que assegurem a integridade e dignidade dos vínculos, que regulem as relações humanas, sejam elas temerosas ou não, que possibilitem a liberdade necessária para querer estar na companhia do outro, sem medos e sem amarras.
Nenhuma “certeza” do superlativo da realidade do outro lhe dá o direito de transferir a responsabilidade de suas expectativas, fracassos e sonhos. Ninguém pode exigir que suas carências sejam supridas na medida e completude que deseja. Carência afetiva gera dependência, violência e desencontros. E a dependência emocional gera submissão que tornam normais comportamentos violentos e as amarguras das relações conturbadas, vez que, tudo é justificado pelo medo de perder e, em nome da supervalorização do outro, todo sofrimento é consentido.
Faz tempo que o ciúme patológico passeia pelo Direito e tem sido motivação para crimes, espancamentos, chantagens emocionais e coação, além de servir como alimento para sustentar o “amor excessivo” ou “excesso de amor” muitas vezes o causador da imaturidade emocional, baixa autoestima, frustração e incapacidade de controle. Como disse Roland Barthes em sua obra Fragmentos de um discurso amoroso, ele é capaz de fazer mal e de expulsar do paraíso, se empenha em procurar imagens (de ciúme, de abandono, de humilhação) que podem ferir; e, aberta a ferida, a sustentar, e alimentar com outras imagens, até que outra ferida venha desviar a atenção. E isso não é amor!
Hoje, tudo é muito fugaz, os afetos são descartáveis e as palavras desacertadas uma rotina. Ouvir requer tempo e esse pra ninguém sobra. Respeito não é sacrifício, renuncia ou infelicidade. Respeito é equilíbrio, é o direito que o outro tem de deixar existir ou de findar. Respeito é a própria motivação do encontro.
Quando deixamos que essa motivação passe a nominar sentimentos desencontrados, corremos o risco de perder a leve sensação da boca entreaberta de admiração, da sede da água da alegria e da liberdade necessária para a embriaguez, corremos o risco de confundir a distração dos momentos com o entrelaçamento de sentimentos irracionais que sufocam e angustiam que fazem perder a identidade, que fazem perder-se de si!
Portanto, antes de nos perder, deixemos as palavras desacertadas, as poeiras das ruas e os tratamentos ásperos; deixemos os erros e as durezas dos desencontros para nos desnudar e viver a felicidade da distração, para deixar a carta chegar e impedir que o fio do telefone seja cortado pelo deserto, antes que o ciúme faça morada e que tudo, tudo aconteça, por não estarmos mais distraídos!
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Taysa Matos é Doutoranda em Direito pela UFBA; Mestre pela UFPB; Especialista em Metodologia e Gestão do Ensino Superior; Graduada em Direito; Professora de Direitos Humanos, Direito Constitucional e Mediação, Conciliação e Arbitragem; Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Gestão Acadêmica, Direito Constitucional, Direitos Humanos e Mediação.
Imagem ilustrativa do post: Pia de Tolomei and Nello della Pietra by Pio Fedi // Foto de: Jun // Sem Alterações
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