Coordenador: Gilberto Bruschi
O CPC/2015 define a citação como o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual.[1]
Justifica-se o ato de citação não apenas para que seja completada adequadamente a relação processual, mas, igualmente, porque a bilateralidade de audiência é tradicionalmente uma exigência impostergável do processo, certo que o réu somente poderá ser ouvido se tiver ciência da demanda que lhe é movida. Eis o porquê de não apenas se atribuir à citação a qualidade de pressuposto processual, mas também de ligá-la a princípios como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.[2] E não é preciso ir além disso para convencer meu leitor da importância da citação para o processo.
As modalidades de citação, que estão previstas no art. 246 do CPC/2015, podem ser divididas em duas categorias, quais sejam
(i) Citação real, assim considerada aquela em que há presunção de que a comunicação efetivamente chegou ao destinatário. Enquadram-se nesta categoria a citação realizada pelo correio, por oficial de justiça, pelo escrivão ou chefe de cartório e a eletrônica (na forma da Lei 11.419/2006); e
(ii) Citação ficta, isto é, aquela em que se presume que a comunicação não chegou ao citando. É o que ocorre na citação por edital e na citação via oficial de justiça com hora certa (arts. 252 a 254 do CPC/2015). Justamente porque se presume que o destinatário não teve ciência do processo é que a lei lhe garante, em caso de revelia e enquanto não houver constituição de advogado próprio, a nomeação de curador especial (art. 72, II, do CPC/2015), que não terá o ônus da impugnação específica (art. 341, parágrafo único, do CPC).
Não há dúvidas de que, em regra, a citação será real. Apenas excepcionalmente é que se tolerará a citação ficta. Não por outro motivo é que a lei elenca requisitos rígidos para a realização da citação por edital e com hora certa. E, como complemento deste sistema, o art. 242 do CPC/2015 ainda contempla o princípio da pessoalidade.[3]
Neste contexto, porém, aflora uma exceção clássica: a chamada teoria da aparência. Assim, para as citações postais, prevê o art. 248, § 2º, do CPC:
“Sendo o citando pessoa jurídica, será válida a entrega do mandado a pessoa com poderes de gerência geral ou de administração ou, ainda, a funcionário responsável pelo recebimento de correspondências.”
Ainda sob a égide do CPC/73 (cujo art. 223, parágrafo único, reproduzia ideia semelhante à do art. 248, § 2º, do CPC/2015) já se admitia que a mesma teoria da aparência se aplicasse à citação por oficial de justiça (neste sentido, STJ, Corte Especial, EREsp 864.947/SC). Não vejo razões para que tal orientação se altere à luz do CPC/2015.
Note-se, no entanto, que só se cogita da aplicação da teoria da aparência na citação de pessoas jurídicas, postura que se justifica pelas dificuldades de se localizar, sempre, o seu representante legal.
Mas, e às pessoas físicas, aplica-se também a teoria da aparência? A resposta a ser dada exige uma certa dose de cautela.
Em primeiro lugar, tratando-se de citação de pessoa física por oficial de justiça, não parece haver como escapar da pessoalidade. O mandado deve ser entregue pessoalmente ao destinatário, salvo nas excepcionais hipóteses de existir procurador com poderes bastantes ou no caso da citação do representante legal da parte (art. 242 do CPC/2015).
A polêmica surge, porém, quando se está a tratar de citação de pessoas físicas pelo correio. Aplica-se, neste caso, a teoria da aparência? Mais uma vez, a resposta exige cautela.
A primeira reação, rente ao que prevê a Súmula 429 do STJ, é responder negativamente, opção que ordinariamente me parece correta.
Ocorre que, como se sabe, é praticamente impossível se observar a pessoalidade na citação postal quando o citando tem domicílio em condomínio edilício ou loteamento com controle de acesso. Como se sabe, em tais locais, o funcionário do correio entrega as correspondências (incluindo aí as citações) ao funcionário que se apresenta na portaria, a quem incumbe encaminhá-las aos respectivos destinatários.
Tal fato gerou, quando vigente o CPC/73, viva e interessante controvérsia sobre a possibilidade de se considerar realizada a citação postal quando a carta fosse entregue ao porteiro. Mas, se cientificamente a polêmica é empolgante, no cotidiano forense é altamente contraproducente. Atento à situação, então, o legislador do CPC/2015 previu no § 4º do art. 248 a seguinte regra:
“Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência, que, entretanto, poderá recusar o recebimento, se declarar, por escrito, sob as penas da lei, que o destinatário da correspondência está ausente.”
Oportuno lembrar que não se trata, propriamente, de uma novidade no ordenamento jurídico, posto que o art. 22 da Lei 6.538/78 já previa que:
“Os responsáveis pelos edifícios, sejam os administradores, os gerentes, os porteiros, zeladores ou empregados são credenciados a receber objetos de correspondência endereçados a qualquer de suas unidades, respondendo pelo seu extravio ou violação.”
Tratemos, pois, de analisar o § 4º do art. 248 do CPC/2015.
Em primeiro lugar, sua aplicação se restringe aos casos em que o réu deva ser citado em condomínio edilício ou loteamentos com controle de acesso (loteamentos fechados). Dada a excepcionalidade da norma, deve-se afastar sua incidência, por exemplo, quando se está diante de algum empreendimento irregular ou que não se enquadre estritamente nos conceitos supra.
Em segundo lugar, só há proveito da citação presumida se em tal localidade houver funcionário responsável pelo recebimento de correspondência. Pode ser um porteiro, pode ser o zelador, pode ser um funcionário qualquer com tal atribuição (exclusiva ou não).
À primeira vista, parece indiferente se tal funcionário é contratado diretamente ou é terceirizado. O que importa é a função que desempenha. Bem por isso, aliás, mesmo que a correspondência seja recebida por outro funcionário, diferente daquele que ordinariamente recebe as correspondências, ter-se-á por realizada a citação do morador.
Naqueles condomínios ou loteamentos em que não exista funcionário responsável pelo recebimento de correspondências, deve-se atentar rigorosamente à previsão da Súmula 429 do STJ.
Em terceiro lugar, a lei ressalva a possibilidade do funcionário recusar o recebimento da citação, desde que declare por escrito e sob as penas da lei que o destinatário da correspondência está ausente. Nesta hipótese – é claro – não se considerará efetivada a citação.
Não raro, todavia, ocorrerá do funcionário receber a citação porque simplesmente desconhecia o fato de que o morador destinatário estava ausente. Neste caso, inicialmente incidirá a presunção legal de que a informação chegou ao citando, a quem incumbirá o ônus de provar que estava ausente (ou até mesmo que não mais reside naquele endereço).
Interessante observar, neste contexto, que os funcionários do correios (carteiros) deverão atentar-se às especificidades desta norma, exigindo a declaração escrita do porteiro quando da sua recusa. Ainda assim, verificando-se a recusa “imotivada”, inegável que não se poderá considerar efetivada a citação.
Em quarto lugar, sem prejuízo da conclusão de que o art. 22 da Lei 6.538/78 ainda está vigente, não há como recusar que a nova regra processual (art. 248, § 4º, do CPC/2015) reforça a responsabilidade civil do condomínio nos casos em que a citação deixe de ser entregue ao condômino destinatário. Recomendável, deste modo, que o condomínio crie seu controle próprio, exigindo recibo dos condôminos quando tais correspondências lhes forem repassadas.
Quanto à responsabilidade do loteamento, insta observar que este não tem personalidade jurídica ou judiciária (ao contrário do condomínio). O que se pode ventilar – acertadamente, a meu ver – é a responsabilização de eventual associação criada para administrar o loteamento, desde que o funcionário faltoso tenha sido contratado por esta e que a suposta vítima seja associada.[4]
Finalmente, em que pese o art. 18, I, da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis) exigir que na citação postal haja aviso de recebimento em mão própria, não vejo motivos para não aplicar naquela sistemática o § 4º do art. 248 do CPC/2015 de que tratei neste escrito. Esta conclusão, contudo, seguramente não está isenta de crítica, havendo respeitável doutrina em sentido contrário.
Notas e Referências:
[1] Duas observações preliminares não podem escapar. A primeira: o CPC/2015 manteve a mesma postura do revogado CPC/73 (art. 213) e, contrariando a clássica recomendação, trouxe uma definição de citação. A segunda: o conceito de citação do CPC/2015 aperfeiçoa a antiga redação do CPC/73, não apenas porque amplia adequadamente os sujeitos que podem ser citados (incluindo o executado), como também esclarece que a citação tem como escopo central fazer com que aquele sujeito citado integre a relação processual (isto é, o sujeito não é citado para apresentar defesa, pura e simplesmente).
[2] Tratei com mais detalhamento sobre estas questões em obra publicada anteriormente. Consultar: DONOSO, Denis. Julgamento prévio do mérito: análise do art. 285-A do CPC. São Paulo: Saraiva, 2001, especialmente p. 149 e seguintes.
[3] Por isso que não se pode criticar a Súmula 429 do STJ: “A citação postal, quando autorizada por lei, exige o aviso de recebimento.” E nem poderia ser diferente, pois a regra será a pessoalidade.
[4] Inegavelmente, os condomínios e loteamentos com controle de acesso deverão “treinar” seus funcionários para as diversas situações que podem se desdobrar da regra em comento.
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