Cinema: Sacco e Vanzetti, mártires do anarquismo

29/03/2016

Por Luiz Ferri de Barros - 29/03/2016

A censura da ditadura militar brasileira permitiu a muito poucos assistirem ao filme Sacco & Vanzetti, de Giuliano Montaldo. A película é um expoente do cinema político europeu da década de 1970 e reconstitui sinteticamente, com realismo e arte, o julgamento de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, dois anarquistas italianos condenados por roubo e duplo assassinato em 1921 no estado de Massachussetts, nos EUA.

Produção franco italiana de 1971 – realizada 50 anos após a condenação dos acusados sob duvidosas provas –, o filme estrelado por Gian Maria Volonté, no papel de Vanzetti, e Riccardo Cucciolla, ganhador do prêmio de melhor ator no Festival de Cannes por sua interpretação de Sacco, foi inicialmente liberado no Brasil para maiores de 18 anos, com cortes, em 1972; e, em 1973, teve a exibição definitivamente proibida pela censura.

O filme narra a história desses dois homens que, nos conturbados anos 20 nos EUA, foram injustamente executados na cadeira elétrica em 1927.  Apenas em 1977, cinco décadas após sua morte, o governador do estado de Massachussetts admitiu a inocência dos anarquistas quanto aos crimes que lhes foram imputados, desta forma reconhecendo oficialmente um dos maiores erros de julgamento do século passado.

Em 15 de abril de 1920, houve um assalto à saída de uma fábrica na cidade de South Braintree, em que foram mortos um agente pagador e um segurança. Semanas depois, Nicola Sacco, sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, vendedor ambulante de peixes, foram presos à noite, portando armas sem licença.  Imigrantes italianos pobres e anarquistas, sua culpa foi construída pelas autoridades políticas, policiais e judiciais de forma imediata e conveniente para contrapor uma forte ação repressiva de governo à instabilidade social e aos crescentes conflitos políticos da época.

O julgamento, iniciado em 31 de maio de 1921, contou com um total de 158 testemunhas, 59 de acusação e 99 de defesa (Nicole Krollross). A única prova pericial veio da balística, que identificou um dos projéteis como supostamente disparado de uma pistola Colt, tipo de arma de uso comum que Sacco portava na noite em que foi preso.

No filme, o diretor Giuliano Montaldo retrata a parcialidade do julgamento em todos os seus aspectos; enfatiza como as testemunhas de defesa foram desconsideradas e hostilizadas na corte, por também serem imigrantes; e reconstitui a história desqualificando a frágil prova pericial, pois qualquer pistola Colt poderia ter sido usada no crime, não exclusivamente a de Sacco; ou, inclusive, o disparo poderia ter sido feito com arma de outra marca específica.

Condenados em 1921, segundo o filme, enquanto Sacco e Vanzetti aguardavam a execução na Casa da Morte, outro preso confessou ter participado do crime, que teria sido obra de uma quadrilha organizada e, de fato, indicou a arma utilizada, de idênticas características balísticas, que não fora uma Colt.  Processos e provas relacionados a essa quadrilha desapareceram dos arquivos oficiais.

A justiça negou novo julgamento requerido em 1927, e os dois anarquistas italianos foram levados à cadeira elétrica no dia 23 de agosto daquele ano.

No período decorrido de sua prisão até a execução, centenas de milhares de pessoas no mundo todo protestaram contra a injustiça da condenação, em especial o operariado sindicalizado. Em São Paulo houve greves e agitação nos bairros operários. Forte repressão policial foi utilizada para conter manifestações nos Estados Unidos e no exterior. Também figuras notáveis da intelectualidade e da política pediram clemência aos condenados, assim como líderes religiosos, entre eles o próprio Papa.

Para entender-se o sacrifício desses homens que a História consagrou como inocentes mártires da Anarquia, a partir de um crime de 1920, é preciso situar o contexto histórico político e econômico da época, agitado por graves mudanças políticas e econômicas internacionais e na sociedade americana, considerando entre outros fatos o fim da Primeira Guerra em 1918 e a readaptação do país a uma economia pós-guerra, a Revolução Bolchevique de 1917 com a consequente criação do Partido Comunista americano em 1919 e, acima de tudo, a própria atuação do movimento anarquista, cuja estratégia de luta anticapitalista nos EUA incluía a prática de atentados a bomba contra autoridades. Todos esses fatores geravam turbulência, risco e instabilidade na sociedade americana, o que, agravado pelo desemprego, só fazia crescer os sentimentos xenófobos, em especial contra os italianos.

A “condenação exemplar” de Sacco e Vanzetti, refere-se Montaldo no filme, relaciona-se à mudança de uma política de deportação dos estrangeiros que cometessem delitos. Os imigrantes seriam assimilados no país, não mais deportados, como vinha sendo a política anterior americana, mas seu respeito às leis deveria ser absoluto.

Porém, a injustiça histórica que solapou a vida de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti deu-se pelo fato de que os dois eram tão somente militantes anarquistas; não se provou que cometessem atentados; ou que fossem ladrões e assassinos, como acusados.

O filme reconstitui a captura, os inquéritos, o julgamento dos protagonistas e os movimentos de rua pró e contra os réus. Montaldo utiliza com maestria flash backs para tecer a narrativa a partir de um mosaico de cenas inicialmente desconexas. O diretor também esbanja talento na utilização de planos sobrepostos na filmagem das cenas de ação e alcança beleza fotográfica em cenas internas pela alternância de câmaras, fazendo cortes para ângulos inesperados. Outro ponto alto do filme é a caracterização de época, incluindo figurinos e cenários e a escolha do elenco buscando atores com acentuada semelhança física com os personagens históricos para os papéis dos protagonistas.

A trilha sonora de Ennio Morricone, tendo a Balada de Sacco e Vanzetti, cantada por Joan Baez, em três movimentos durante a película, acentua a homenagem que se presta ao sacrifício dos mártires, sacralizando-os.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 3: Nº 9. São Paulo, fevereiro de 2014.


. Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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