Cinema: M – O Vampiro de Dusseldorf

31/05/2016

Por Luiz Ferri de Barros – 31/05/2016

M – O Vampiro de Dusseldorf (1931) é um filme lendário. É o primeiro filme falado do também lendário diretor austríaco Fritz Lang e um dos primeiros filmes falados do cinema alemão. A película expressionista celebrizou o ator húngaro Peter Lorre no papel de um serial killer de crianças que é julgado por um tribunal de criminosos, revolucionando as técnicas de fotografia e filmagem.

Obra-prima maior do expressionismo alemão no cinema, o filme retrata e critica a sociedade alemã à época da ascensão do nazismo e pode ser entendido, ao menos, de duas maneiras.

Na leitura de sua narrativa linear e explícita, é uma história policial de suspense e um drama de tribunal. Esse tribunal, peculiar, é formado por uma organização criminosa, que decide encarregar-se de capturar, julgar e matar o assassino, pois o clima de terror e a histeria que se espalhara na cidade pelos sucessivos infanticídios, o frenesi da imprensa e a caça policial ao assassino atrapalhavam os “negócios” da organização criminosa.

O sindicato dos criminosos organiza a sua caçada mobilizando os mendigos da cidade. Um cego é quem localiza o assassino, identificando-o por seu assobio. É uma fina ironia: até um cego vê o que a polícia não vê.

O expressionismo foi um movimento de vanguarda com raízes no Século XIX que no início do Século XX ganhou força, influenciando a literatura, a pintura, a arquitetura e o cinema, sendo marcante nesse movimento o que se denominou “expressionismo alemão”. Os expressionistas privilegiavam a “expressão” da realidade utilizando-se de distorções que acentuavam os traços marcantes de sua visão do mundo.

Essa definição genérica do movimento presta-se exemplarmente para a compreensão da forma como Fritz Lang conduziu a narrativa e orientou a fotografia em branco e preto de Fritz Arno Wagner, aqui se destacando o uso de perspectivas e ângulos de câmera até hoje diferenciados e à época totalmente originais; a projeção de sombras; o contraponto entre cenas que se passam em silêncio total e o fundo musical nos momentos em que o assassino, de pacato cidadão ao entrar em transe transforma-se em infanticida, entre outros.

E a moldura expressionista também nos guia para a segunda leitura de sua obra-prima, de ordem simbólica e inteiramente narrada nas entrelinhas da história. Embora o diretor, como outros expressionistas, se interessasse por dar vida ao sombrio, e embora conste ter havido um psicopata de carne e osso, Peter Kürten, cuja história, modificada, teria inspirado a narrativa linear do filme (Fritz Lang teria assistido pessoalmente ao julgamento desse assassino), M – O Vampiro de Dusseldorf, em seu sentido mais profundo é uma crítica impiedosa aos nazistas.

Vejamos neste ponto as palavras do professor Orivaldo Leme Biagi, doutor em História pela UNICAMP: “... o filme tornou-se um dos libelos políticos mais importantes do Século XX. Nele, Lang mostrou o pesadíssimo clima social e político da Alemanha da década de 20 e início da década de 30, denunciando a histeria e o cinismo como novas formas de imposição do poder. Além da presença de grupos paramilitares nazistas (Hitler ascenderia ao poder em 1933, mas o Partido Nazista já era uma força política poderosa no momento), que criavam tribunais particulares, também organizando atentados e sabotagens.”

Desvendam-se, assim, outros simbolismos: o psicopata que inspirou Fritz Lang não era um assassino de crianças; ao representá-lo como infanticida é lícito que interpretemos politicamente o que diretor pretenderia dizer com isto? Em caso positivo, o significado seria o de que o nazismo estaria matando o futuro da Alemanha. Da mesma forma podemos considerar política a longa discussão sobre inimputabilidade que surge ao meio do julgamento do assassino no tribunal dos criminosos. Para este júri, o infanticida não deveria ser entregue à polícia, pois, se fosse levado a julgamento pelas autoridades competentes, seria considerado doente e não responsável por seus crimes, ficaria algum tempo em tratamento para logo ser considerado curado, voltar às ruas e continuar a matar. A única solução seria condená-lo à morte e matá-lo ali mesmo, lógica prevalecente nos “julgamentos” de tribunais paralelos e marginais, de que hoje ainda temos exemplo aqui mesmo em São Paulo, em chacinas que ora se atribuem a bandidos ora a forças policiais.

O patrulhamento nazista fez com que Lang alterasse duas vezes o título do filme que, originalmente, era Die Mörder Sind Bei UnsOs Assassinos Estão Entre Nós; ameaçado por um representante do partido nazista, o diretor mudou para Eine Stadt Sucht Einen Mörder – Uma Cidade Procura um Assassino, o que ainda não foi suficiente, levando-o a finalmente dar ao filme o título M. letra inicial da palavra Mörder, assassino em alemão. Nunca houve qualquer “vampiro” nem na história, nem no filme, nem no título, salvo na sempre criativa e tantas vezes distorcida imaginação dos tradutores de títulos de filmes estrangeiros no Brasil.

Após o lançamento de M., o filme foi condenado por nazistas de altas patentes, mas Hitler teria atuado em defesa de Lang por ser seu fã, em especial por sua visão futurista expressa no filme Metrópolis, de 1927. De fato, em 1933, o todo poderoso ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbles, chama a seu gabinete o cineasta para, a um só tempo, censurar um de seus filmes, o recém-lançado O Testamento do Dr. Mabuse, e convidá-lo, por ordem de Hitler, a assumir o comando geral da produção cinematográfica do Terceiro Reich, o que o levou a abandonar a Alemanha no mesmo dia, segundo relatou o cineasta em várias entrevistas, acrescentando o fato de que ao partir deixou para trás a mulher, que se tornara nazista.

Grande cineasta, seguiu sua carreira em Hollywood, lugar propício a se cultivarem mitos e lendas: com isto sua obra, engrandecida por sua biografia, transformaram-no nesta figura mitológica e lendária em que se tornou. Há sobre ele inúmeras biografias, livros de entrevistas e estudos cinematográficos. Encontram-se na internet muitos vídeos com entrevistas por ele concedidas. A história de seu encontro com Goebbles é relatada em pormenores, muitas vezes.

Diz-se que alguns biógrafos colocam em dúvida certos aspectos de sua versão desse encontro; mas isto não vem ao caso, se compreendermos que a dimensão heroica, mítica e lendária do cineasta e sua obra em nada se altera com esse fato. Afora seu insuperável talento, sua grandeza advém de um raro paradoxo, eis que a força do cinema deste homem que Hitler e Goebbels tentaram cooptar para a propaganda do Terceiro Reich havia sido construída pela crítica que fez ao nazismo desde a origem.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. São Paulo.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br..


Imagem Ilustrativa do Post: M (1931) // Foto de: elle_zua // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ellezua/18372565044

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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