Cidadania sul - americana e comércio intrarregional: Perspectivas (in)sustentáveis

05/06/2015

Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino - 05/06/2015

Na semana passada, o Secretário-Geral da União de Nações Sul-Americanas - UNASUL - Ernesto Samper - afirmou que a é necessário constituir uma Cidadania Sul-Americana como modo de estimular e desenvolver o comércio intrarregional[1]. Segundo o citado Secretário, as fronteiras nesse continente estão cada vez mais abertas e não se recomenda a criação de obstáculos para dificultar ou impedir a mobilidade de bens e/ou pessoas entre as diferentes regiões sul-americanas.

Já se destacou, mais de uma vez, como a Cidadania se inicia nas dimensões nacionais, mas não se exaure nos limites territoriais e legais. A Cidadania não se amolda tão somente nos interesses de cidadãos, os quais, internamente, podem ter qualidade de vida, mas, para os estranhos (leia-se: estrangeiros) ou qualquer sujeito que transite pelo Estado-nação, nem sempre os serviços e direitos se tornam acessíveis a fim de assegurar a eficácia dos Direitos Humanos. Essa é uma situação que inviabiliza qualquer política de civilização ou humanidade para o século XXI.

Por esse motivo, e nas palavras de Samper, a Cidadania Sul-Americana não pode ser um projeto "de gabinete", tampouco pode ser descartado por não apresentar nenhum benefício para as entidades nacionais. Não! A expressão de uma Cidadania continental representa a mitigação da Soberania - a qual já sofre influências internas e externas - como aquela medida que sempre se apresentou como "intocável". É necessário compreender esse projeto por aquilo que viabilizará para todos, ou seja, pode-se "estudar em qualquer parte da região, exercer uma profissão em qualquer parte" [...] e possibilitar que os aposentados, por exemplo, "possam desfrutar sua previdência em qualquer lugar[2]".

Essa abertura política, econômica e jurídica fomenta a criação de uma identidade sul-americana e amplia condições para se conhecer diferentes culturas, as suas dificuldades, bem como as suas qualidades. As perspectivas democráticas e participativas não se enclausuram nos interesses dos cidadãos nacionais, mas direciona-se aos homens e mulheres os quais vivenciam as convergências - e divergências - desse "vínculo histórico comum" sul-americano.

Parece claro que uma das consequências de uma Cidadania Sul-Americana é a liberdade comercial entre as pessoas e instituições desse mencionado território. Hoje, as relações intrarregionais fomentadas pela UNASUL destacam essa necessidade, a qual, em grande parte, já foi observada pelo exemplo da União Européia. Nas palavras de Samper: "Os níveis de comércio intrarregionais hoje não passam dos 18% quando na Europa chegam a ser de 63%. Isso indicando que estamos bloqueando as possibilidades de comércio e de investimento dentro da mesma região[3]".

Entretanto, é preciso advertir: a criação de uma Cidadania Sul-Americana, conforme a disposição do artigo 18 do Tratado Constitutivo da UNASUL, amplia, sim, relações comerciais intrarregionais e possibilita alto grau de desenvolvimento, mas não é o seu objeto principal. As atividades comerciais, oriundas de uma abertura cidadã, são instrumentos que viabilizam melhores condições de vida, todavia, não são a sua causa principal. A preocupação de uma Cidadania Sul-Americana, antes de mais nada, é assegurar livre participação política e jurídica em todo o território continental. Essa liberdade é que esclarece quais critérios são necessários para se consolidar a igualdade e fraternidade entre esses povos.

Nessa linha de pensamento, é possível, portanto, vincular a ideia de Cidadania à Sustentabilidade. Na descrição desse cenário, observa-se, pelo menos, dois focos especiais: a) Sustentabilidade econômica; b) Sustentabilidade ambiental. Ambas expressões não podem ser exercitadas, nem compreendidas, de modo separado. Já se observou quais são os resultados de ações que tendem a separar ou dicotomizar a Sustentabilidade econômica e ambiental, especialmente na dimensão dos direitos[4].

A Sustentabilidade econômica, sob a práxis cultural dos povos andinos pela proposição do buen vivir[5], não podem estabelecer um crescimento econômico infinito para se descrever o que pode ser o progresso. Esse indicativo, ao contrário, demonstra o grau de insustentabilidade continental. Se essa for a desejada Sustentabilidade, então a consequência lógica é a ausência de qualquer desenvolvimento sustentável, especialmente o ambiental.

Veja-se: a amplitude do fator econômico no mundo, disseminado pelo capitalismo de dimensão global, permite o movimento do capital, de modo livre, pelo território terrestre. Essa situação, sob igual critério, por exemplo, não ocorre com as pessoas. A partir desses argumentos, deseja-se sustentar algo que se descreve como "desenvolvimento" a fim de preservar as desigualdades, as misérias, a exploração infinita do mundo natural para saciar as vontades humanas? A resposta, de modo (nem sempre) nítido, é: Não!

A aposta numa Cidadania Sul-Americana - direcionada a preocupações econômicas e ambientais sustentáveis - não se fundamenta pelo viver melhor, mas o viver bem. A primeira opção se manifesta pelo vetor de orientação social no mundo: o consumismo[6]. Tudo é descartável. Tudo (ou todos são) é mercadoria. A segunda opção se esclarece pela proximidade e cumplicidade o ser humano com o mundo natural, no qual se reconhece como “ser próprio”. Essa parceria é o que garante a viabilidade e amplitude de vida para todos os seres, humanos e não-humanos[7].

A Natureza não se torna objeto a ser explorado ou patrimônio (“coisa”) a ser preservado, mas um sujeito no qual contribui para a manutenção de todos os ciclos regenerativos. Por esse motivo, a Sustentabilidade econômica e ambiental ganham especial significado para tornar a Cidadania Sul-Americana efetiva e eficaz na medida em que existe essa proximidade oportunizada pela proposta dos povos originários andinos: o buen vivir. Quando a atitude cidadã contribui para a melhoria do comércio, é necessário pensar numa perspectiva de Sustentabilidade cuja matriz ocorra pelo decrescimento[8].

É aqui que a Cidadania se torna significativa como práxis sustentável e se estende para além daqueles horizontes fixos e limitados pela dimensão simbólica das fronteiras. A arquitetura de uma Cidadania Sul-Americana ganha contornos de uma “utopia concreta”[9], a qual promove e desenvolve perspectivas comerciais transnacionais, mas reconhece as limitações do mundo natural e humano. Precisa-se, num sentido de complementaridade ao exercício cidadão, não de um Direito Ambiental, mas um Direito à Sustentabilidade.

A UNASUL está comprometida com atitudes cidadãs as quais conciliem a importância da Natureza e a seleção dos instrumentos que ampliem condições favoráveis de vida para todos, como é o caso das atividades comerciais. O que não se pode enfatizar é a atomização da Economia como fundamento principal de uma Cidadania Sul-Americana.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.efe.com/efe/noticias/brasil/mundo/unasul-defende-cria-cidadania-sul-americana-para-promover-comercio/3/17/2624568. Acesso em 28 de maio de 2015.

[2] Disponível em: http://www.efe.com/efe/noticias/brasil/mundo/unasul-defende-cria-cidadania-sul-americana-para-promover-comercio/3/17/2624568. Acesso em 28 de maio de 2015.

[3] Disponível em: http://www.efe.com/efe/noticias/brasil/mundo/unasul-defende-cria-cidadania-sul-americana-para-promover-comercio/3/17/2624568. Acesso em 28 de maio de 2015.

[4] Verifica-se o alto grau de uma "burocracia indiferente", incapaz de reconhecer outras perspectivas acerca da Natureza, especialmente no seu reconhecimento como "ser próprio". As legislações, principalmente a brasileira, definem o meio ambiente como "recurso", "objeto" ou "patrimônio".

[5] [...] el “paradigma comunitario de la cultura de la vida para vivir bien”, sustentado en una forma de vivir reflejada en una práctica cotidiana de respeto, armonía y equilibrio con todo lo que existe, comprendiendo que en la vida todo está interconectado, es interdependiente y está interrelacionado. Los pueblos indígenas originarios están trayendo algo nuevo (para el mundo moderno) a las mesas de discusión, sobre cómo la humanidad debe vivir de ahora en adelante, ya que el mercado mundial, el crecimiento económico, el corporativismo, el capitalismo y el consumismo, que son producto de um paradigma occidental, son en diverso grado las causas profundas de la grave crisis social, económica y política. Ante estas condiciones, desde las diferentes comunidades de los pueblos originarios de Abya Yala, decimos que, en realidad, se trata de una crisis de vida. HUANACUNI, Fernando. Buen vivir/ Vivir bien: Filosofía, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Peru: CAOI, 2010, p. 6. Grifos originais da obra em estudo.

[6] “De maneira distinta do consumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como indivíduos, o consumismo é atributo da sociedade. Para que uma sociedade adquira esse atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar, e almejar deve ser, tal como a capacidade de trabalho na sociedade de produtores, destacada (“alienada”) dos indivíduos e reciclada/reificada numa força externa que coloca a “sociedade de consumidores” em movimento e a mantém em curso como uma forma específica de convívio humano, enquanto ao mesmo tempo estabelece parâmetros específicos para as estratégias  individuais de vida que são eficazes e manipula as probabilidades de escolha e condutas individuais”. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 41.

[7] “[...] O processo económico está solidamente arrimado a uma base material que está submetida a constrangimentos bem precisos. É por causa desses constragimentos que o processo económico comporta uma evolução irrevogável de sentido único. No mundo económico, só a moeda circula nos dois sentidos de um setor económico para outro (se bem, na verdade, mesmo a moeda metálica gasta-se lentamente, de tal modo que o seu stock deve ser continuamente reaprovisonado através da extração de jazidas de minerais. Refletindo nisto, fica patente que os economistas das duas obediências sucumbiram ao pior fetichismo econômico. O fetichismo da moeda”. GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas. O decrescimento: entropia, ecologia e economia. Tradução de José Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 57/58.

[8] “Quando se queima um pedaço de carvão, a sua energia química não sofre diminuição nem aumento. Mas a sua energia livre inicial dissipou-se sob forma de calor, de fumo e de cinzas, que o homem já não pode utilizar. Degradou-se em energia ligada. A energia livre é energia que manifesta uma diferença de nível, tal como ilustra muito simplesmente a diferença entre temperaturas interior e exterior de uma caldeira. A energia ligada é, pelo contrário, energia caoticamente dissipada. É possível exprimir essa diferença ainda de outra maneira. A energia livre implica uma certa estrutura ordenada comparável à de um armazém em que todas as carnes estão num balcão, os legumes noutro, etc. A energia ligada é energia dissipada em desordem, à semelhança do mesmo armazém depois de atingido por um tornado. É por essa razão que a entropia se define também como uma medida de desordem”. GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas. O decrescimento: entropia, ecologia e economia. p. 54.

[9] “[...] A carência daquilo que sonhamos não dói menos, ao contrário. Isso, portanto, impede que se acostume com a privação. Tudo o que fere, oprime e enfraquece deve desaparecer. [...] O sonhar, sobretudo, sempre sobreviveu ao fugaz cotidiano individual. Nele procura-se algo diferente da vontade de se trajar e espelhar o que o patrão deseja. Nele se esboça no ar uma imagem maior, ponderada a partir do desejo. Mesmo com essa ponderação, muitas vezes se cometeram enganos, mas quando estes ocorrem não é possível manter a ilusão com tanta freqüência. Tampouco se pode contentá-la. Sua vontade objetiva algo mais, e tudo o que conquista tem gosto desse algo mais. De modo que a vontade não apenas tenta viver além de suas próprias condições, mas além das circunstâncias precárias”. BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução de Werner Fuchs. Rio de Janeiro: EdUERJ/Contraponto, 2006, v.2, p. 9/10.


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Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.                                                   


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