Cidadania (Parte 1)

08/04/2016

Por Atahualpa Fernandez – 08/04/2016

Leia também a Parte 2 e a Parte 3.

“A fin de cuentas, para lograr lo que vale la pena hay que intentar lo imposible. ¿No hemos de apuntar más alto, soñar el sueño irrealizable, imaginar cosas que nunca fueron y decir: "Por qué no"?”

Steven Pinker

O que significa “existir politicamente”, perguntam-se os teóricos do republicanismo[1] na busca de saciar a curiosidade filosófica em torno da noção de cidadania. E o “existir” de que se ocupam quer dizer ter cédula de plena cidadania, de uma relação de vida em que ter cédula de plena cidadania é ter voz e voto nas deliberações comuns, dispor de condições materiais de existência para exercitar a capacidade (real) de resistir à interferência arbitrária de outros (não somente do próprio Estado, senão também de todos os demais agentes sociais) e, em igual medida, para resistir (como o homem enkratico de Aristóteles) a interferência arbitrária do “inimigo” que todos nós levamos dentro. Por isso na tradição republicana não há cidadania sem virtude, sem vontade soberana, sem autogoverno pessoal; o mero bourgeois está muito longe do citoyen no que a sua suprema autarquia se refere[2].

De um modo geral, parece muito intuitivo que a condição ou a relação social de cidadania, em termos de uma concepção democrático-republicana, é uma condição ou relação de igualdade básica e equilíbrio entre pares: não havendo equivalência e não sendo indiferenciados em sentido moral, o que cabe a cada indivíduo é atribuído por “direito próprio”, em função de sua individualidade separada e autônoma. Sua estrutura lógico-formal é a de um grupo “abelhiano”: pressupõe uma estrutura das classes de equivalência e uma estrutura da ordem linear parcial, complicando-as ulteriormente mediante a introdução de um operador de soma, de um elemento neutro e da definição das propriedades de comutatividade e associatividade. Segundo esta estrutura, pode-se “somar” e “restar”, mas não multiplicar ou dividir.

As relações de cidadania, como as de amizade, são relações enquadradas neste tipo de estrutura de igualdade. Por isso não é de estranhar que na tradição republicana resulte fundamental o vínculo social relacional de igualdade, porque nele se joga basicamente o processo de aperfeiçoamento mútuo e de autoaperfeiçoamento, constituindo, portanto, a parte nuclear do processo de correta formação do caráter pessoal e de uma “boa” ou adequada via de individuação[3].

Pensemos por um momento nas implicações de algo tão simples como a divisa: “um homem, um voto”. Esta divisa aponta a um modo de resolver uma determinação coletiva, dando a cada um, independentemente de qualquer mérito que seja possível reconhecer-lhe (riqueza, instrução, suposta excelência moral, etc.), exatamente o mesmo peso à hora de inclinar a balança da decisão comum; ou seja, guarda uma relação de equilíbrio no que se refere as diferenças dos agentes sociais que dela participam e dispõe de meios para restaurar o equilíbrio nos casos em que a situação assim o requeira.

Há, evidentemente, outras maneiras de resolver esse problema de decisão coletiva. Por exemplo: i) por consenso unânime (um modo congenial com o éthos  dos vínculos comunitários); ii) autoritariamente, por decisão dos superiores hierárquicos; iii) dando a cada um, não o mesmo peso, senão um peso proporcional a algum de seus méritos, a sua riqueza, ponhamos o caso. Mas imaginemos - como mero exercício mental - como poderia ser uma vida política assim. Poderíamos organizar um verdadeiro mercado político (um de verdade, e não essa brincadeira metafórica com que a “teoria econômica da democracia” trata de representar os processos políticos atuais): uma subasta de votos. Se venderia então o direito de sufrágio ao melhor preço. Seria um lindo mundo este, em que os magnatas oligopolistas e outros empresários modelos pelo estilo pujassem em subasta pública por comprar votos cidadãos.

Votos cidadãos? Seríamos “cidadãos” se a lei nos permitisse alienar, por exemplo, nosso direito de sufrágio? Seguramente que não; não seríamos cidadãos, em nenhum sentido sério da palavra. Como tão pouco o seríamos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade[4], se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, “livremente” subscrito – coacti volunt -, por meio do qual uma parte se vendesse à outra em qualidade de escrava, participando do preço[5]. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como estes dois, o direito de sufrágio e o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis precisamente porque não são direitos meramente instrumentais, senão direitos constitutivos do próprio homem como titular de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência do “in-divíduo” digno, separado, livre e autônomo, quero dizer, que afiançam e confirmam sua existência como cidadão.

Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária do sufrágio e da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que para o republicanismo não molestam as interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos antes mencionados[6].

Sem inalienabilidade legal do sufrágio e da própria pessoa – para seguirmos com os exemplos dados -, não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas (cidadania). Estas duas restrições legais (produto da não interferência arbitrária como própria da liberdade republicana), característica de nossas democracias, constituem um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.

Richard Price, por exemplo, é particularmente expedito no tema do direito e, muito especialmente, no que se refere à liberdade: um governo justo não infringe a liberdade, mas a estabelece; não anula os direitos da humanidade, senão que os protege e os confirma; não é a mera possessão de liberdade o que permite chamar  livres a um cidadão ou a uma comunidade, senão a segurança de possuí-la que dimana de um governo livre, segundo se dá este quando não existe nenhum poder que possa efetivamente anular a liberdade.

Dito de outro modo, a concepção republicana não diz, à maneira moderna e liberal, que embora o direito coaja à gente, reduzindo assim sua liberdade, compensa este dano prevenindo um grau maior de interferência. Uma proposta republicana coerente sustenta que o direito propriamente constituído é constitutivo da liberdade, o que descarta este tipo de retórica sobre compensações, esta retórica de um passo atrás para dar dois adiante. Segundo a mais recente doutrina republicana (da concepção da liberdade como cidadania), as leis de um estado factível, e em particular, as leis de uma república, criam a liberdade de que desfrutam os cidadãos; não mitigam essa liberdade, nem sequer de um modo ulteriormente compensável (P. Pettit).


Notas e Referências:

[1] Nas palavras de A. Domènech (de quem tomo emprestado algunas ideias para este artigo): “Sobre las ruinas de tronos y altares tardomedievales, e inspirado en los ideales políticos del Mediterráneo antiguo - como palingénesis, pues, de la Antigüedad clásica —, el republicanismo ha hecho el mundo moderno; y el liberalismo, que viene rectificándolo desde el segundo tercio del XIX, podría acabar deshaciéndolo.”

[2] Isto não significa, dito seja de passagem, que o ideal de cidadania implique (tanto como às vezes se sugere que quase se converteu em lugar comum -  falso, por certo, como a maioria dos lugares comuns), ante a exigência republicana da virtude cidadã, perfeccionismo moral. Desde logo, há que observar que o muito republicano Kant distinguiu nitidamente entre o bom cidadão e o homem moralmente bom, ou seja, entre a virtude cidadã e a virtude moral. Trata-se de algo sobradamente conhecido, apesar de que não falte quem replique que precisamente esse detalhe faz de Kant um liberal à la moderna, e não um republicano à la antiga.  Para tirar esse alguém do assylum ignorantiae em que evidentemente se acha sua consciência histórica, basta com que se lhe recomende urgentemente a leitura do livro III da Política (1276b-1277b) de Aristóteles, que é a origem da distinção posterior – também kantiana – entre virtude cidadã e virtude moral.

[3] Nota bene: Desde suas primeiras formulações a justiça sempre foi associada com a igualdade (sobre a qual Aristóteles desenvolveu sua doutrina da justiça e que ainda hoje representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre essa questão) e sua caracterização evolucionou ao compasso desse princípio ilustrado. Do mesmo modo, as recentes evidências científicas estão revelando que a igualdade, enquanto intuição, instinto ou emoção moral, tem profundas raízes neurobiológicas e evolutivas, que se acha «gravada» em nosso cérebro, e que, em certo modo, já não pode considerar-se uma capacidade exclusiva do ser humano. Por exemplo, tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o suposto princípio básico do comportamento humano de maximizar o próprio benefício é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade). De fato, alguns estudos indicaram que, ademais de sentirem-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Quer dizer, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, igualitária (S. D. Clayton & M. J. Lerner).

[4] Uma observação paralela acerca da noção de liberdade. Para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível: o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do “indivíduo” para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização total pela via da redução do sujeito a mero instrumentum vocale, segundo a célebre formulação do direito romano (ou  “instrumento animado”, para usar a expressão de Aristóteles). Para existir como indivíduo separado e autônomo é, pois, e ao menos, necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento, senão como um fim em si mesmo. Aliás, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fim em si mesmo, não está dizendo nada radicalmente novo e “moderno”, senão que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos, quer dizer, como instrumentos, “vocais” ou  “animados”.

[5] Precisamente, no direito romano, o consentir em ser vendido a outro, participando do preço, acarretava a perda automática da cidadania (Inst. Just., I, Título 3º., 4). Nas repúblicas antigas, as dívidas não saldadas podiam levar a um indivíduo livre à condição de escravidão (daí a origem do “vender-se para participar do preço”). A maioria das póleis democráticas helênicas – não as oligárquicas – aboliram esse uso, que ameaçava permanentemente e fatalmente aos livres pobres (Ste. Croix).

[6] O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos; assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: In one way or another, we're all anchored to the people // Foto de: Massimiliano Tuveri // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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