Charlie Gard faleceu na Inglaterra aos 11 meses de vida em razão de uma doença rara (síndrome de depleção – perda – do DNA mitocondrial). Seus pais postularam no Judiciário inglês autorização da submeter a criança a tratamento experimental nos EUA[1]. A Justiça negou o pedido em todas as instâncias. Insistindo, o caso foi levado à Corte Europeia de Direito Humanos – CEDH, que manteve as decisões anteriores[2].
O caso Charlie traz importante reflexão à Judicialização da Saúde, especialmente quanto à percepção da Justiça inglesa (e da Corte Europeia) e da Justiça brasileira no que toca aos seguintes pontos: (a) definição dos limites e do alcance do Direito à Saúde; (b) relação médico e paciente; (c) limites da ciência médica e; (d) validade dos tratamentos experimentais; (e) finitude da vida e; (f) cuidados paliativos.
Na Inglaterra, a opção ao tratamento experimental foi rejeitada. Neste caso, foi clara a postura à adoção de uma leitura racional do caso. Vale dizer, tratando-se de doença rara e diante da ausência de cura, seria inviável o prolongamento da vida artificial mediante uso de experiência sem evidência científica.
Aspecto a destacar é que o tratamento experimental proposto por médico nos EUA não seria custeado pelos cofres públicos (os pais receberam doação de mais de um milhão de libras esterlinas). Isso demonstra que na Inglaterra há forte limitação ao princípio da autonomia da vontade, que confere liberdade às pessoas para definição dos rumos da sua vida e da sua morte[3].
No Brasil, o Judiciário não é tão radical.
Em primeiro lugar, porque não há posição proibitiva clara à obtenção de tratamentos experimentais. Há decisão autorizativa até do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito da saúde suplementar[4].
Em segundo lugar, o Judiciário brasileiro confere muito mais primazia ao princípio da autonomia da vontade. Ou seja, mesmo que o cidadão adote péssimos hábitos na sua vida – fumando vários maços de cigarro por dia, por exemplo – mesmo assim, a pessoa pode postular a proteção do Direito à Saúde (em face do Estado ou da operadora de plano de saúde), tornando praticamente desnecessário o autocuidado[5].
Como se observa, há nítida diferença entre a interpretação do Direito à Saúde no Brasil e na Inglaterra.
Por isso, a despeito da questão cultural (muito diferente nas duas nações), é preciso reconhecer uma proteção equilibrada do Direito à Saúde, sem excessos – com intervenções desnecessárias e às vezes impossíveis – e sem omissões – que acarretem a falta de tutela adequada às pessoas.
Notas e Referências:
[1] Folha de São Paulo. Após batalha judicial, morre o bebê britânico Charlie Gard. 28 jul. 2017. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/07/1905162-apos-batalha-judicial-morre-o-bebe-britanico-charlie-gard.shtml. Acesso em 30 jul. 2017.
[2] O Globo. Corte europeia autoriza desligamento de aparelhos que mantêm bebê vivo. 27 jun. 2017. Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/corte-europeia-autoriza-desligamento-de-aparelhos-que-mantem-bebe-vivo-21527306. Acesso em 30 jul. 2017.
[3] “A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a de autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida.” In: BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução de: Humberto Laport de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 81. Título original: Here, there and anywhere: human dignity in contemporany law and in the transnacional discourse.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 963896/PR. Relator Ministro HERMAN BENJAMIN. Segunda Turma. Julgamento 21/02/2017. DJe 18/04/2017: PROCESSUAL CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PERDAS E DANOS. COAUTOR PORTADOR DE DIPLEGIA EM DECORRÊNCIA DA LEUCOMALÁCIA PERIVENTRICULAR - ESPÉCIE DE PARALISIA CEREBRAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. PLANOS DE SAÚDE. TRATAMENTOS EXPERIMENTAIS. COBERTURA. POSSIBILIDADE. EXCLUSÃO CONTRATUAL. ABUSIVIDADE. INDICAÇÃO DO PROCEDIMENTO MAIS ADEQUADO PARA A DOENÇA QUE CABE AO MÉDICO RESPONSÁVEL PELO TRATAMENTO DO PACIENTE. PRECEDENTES DO STJ. 1. Na hipótese dos autos, não se configura a ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada, manifestando-se de forma clara de que é abusiva a previsão legal ou contratual que exclui a cobertura do tratamento por ser experimental. 2. O entendimento do Tribunal de origem está em consonância com a orientação do STJ de que não é possível a exclusão de tratamento considerado apropriado para resguardar a saúde e a vida do paciente. 3. A restrição contida no art. 10, I, da Lei 9.656/98 somente deve ter aplicação quando houver tratamento convencional eficaz para o segurado. (REsp 1.279.241/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 2/10/2014, DJe 7/11/2014) 4. O acolhimento da pretensão recursal demanda reexame do contexto fático-probatório, mormente para avaliar se o tratamento indicado pelo médico responsável é, ou não, o mais indicado, conquanto experimental. Dessarte, incide o óbice da Súmula 7/STJ. 5. Agravo Interno não provido.
[5] Sobre o tema, vide: SCHULZE, Clenio Jair. Autocuidado na saúde. 17 abr. 2017. In Revista Eletrônica Empório do Direito. Disponível em http://emporiododireito.com.br/autocuidado-na-saude/. Acesso em 30 jul. 2017.
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