Cem Anos de Solidão

08/12/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 08/12/2015

Cem Anos de Solidão, a obra prima de Gabriel García Márquez, foi publicado em 1967, granjeando ao autor imediata notoriedade, decisiva para sua indicação ao Prêmio Nobel de Literatura em 1982.

Calcada nas memórias de infância do escritor, das quais fazem parte histórias com o sabor de causos que lhe contou sua avó Tranquilina Iguarán, e nas quais se incluem também episódios dramáticos da violenta história colombiana, a obra narra ao longo de cinco gerações a grandeza e o declínio da família Buendía, uma estirpe condenada à solidão.

Macondo, a cidadezinha imaginária onde se desenvolve a ação, tem por inspiração Aracataca, lugarejo onde nasceu o escritor. E os imaginários Buendía representam de forma direta ou metafórica em parte a história da família de García Márquez, o que ele não esconde, pelo contrário desvenda – ao ponto de ter batizado a personagem matriarca da família Buendía, Úrsula Iguarán – com o mesmo sobrenome Iguarán de sua avó Tranquilina, aquela que na infância e por toda a vida lhe contava histórias.

Best seller com vendagem de mais de 30 milhões de exemplares, e traduzido para dezenas de idiomas, Cem Anos de Solidão é o livro fundador do realismo fantástico, gênero literário tipicamente latinoamericano.

A obra em geral é interpretada privilegiando-se o estilo e os detalhes narrativos, ou sua narrativa textual, sendo fácil que nos escape a sua significação mais ampla se estivermos desatentos; o que se compreende, aliás, de um lado pela exuberância do saboroso estilo, de outro porque são muitos os níveis de leitura que a obra proporciona, a cada um deles associando-se diferentes significados. O realismo fantástico de García Márquez incorpora à realidade dimensões mágicas, fantásticas ou maravilhosas, forjando fatos e personagens à primeira vista híbridos, metade reais metade absurdamente impossíveis e tão somente imaginários.

No entanto, tal qual em Kafka, em García Márquez, quando se busca o significado essencial da obra, é o realismo que predomina.

Nessa perspectiva, o fantástico pode ser entendido como um conjunto de adereços de estilo a serviço da arte, conferindo ênfase ou poesia às histórias narradas. Pode-se também pensar nos desvarios surrealistas de García Márquez como contador de histórias qual fossem disfarces de linguagem e dissimulações de narrativa – álibis que lhe permitem dizer o indizível.

As dimensões fantásticas, assim, são também recursos de que se valeu o autor para a camuflagem da crítica social e política embrenhada no romance. Afinal, quase ao final do livro, em discreta passagem, por um dos personagens ele descreve a literatura como se fosse “o melhor brinquedo que se inventara para zombar das pessoas”.

É lícito, assim, pensar na exuberância dos aspectos fantásticos não apenas como adereços estilísticos, porém como uma forma que viabiliza o realismo essencial do escritor, permitindo-lhe retratar criticamente, na década de 1960, época de ditaduras, coisas sobre as quais não se podia falar de outro jeito na América Latina.

O fantástico, o mágico e o maravilhoso se expressam no livro por várias formas. A mais comum talvez seja a hipérbole, configurada em constantes e repetitivos exageros narrativos de que o autor se vale, como, por exemplo, ao descrever o personagem central da história, o coronel Aureliano Buendía, que na vida real teria correspondência com seu avô, o coronel Nicolás Márquez, esposo de Tranquilina:

“O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo.”

... e por aí segue ainda longamente a caracterização desse coronel Aureliano Buendía, para ser revisitada várias vezes durante a narrativa, sem deixar de notar o escritor a poesia que também contamina esse personagem que “dispensou a pensão vitalícia que lhe ofereceram depois da guerra e viveu até a velhice dos peixinhos de ouro que fabricava na sua oficina de Macondo.”

Convivendo sem antagonismo com passagens bizarras e violentas, é comum o autor imprimir, por meio da hipérbole, tonalidades poéticas em meio ao romance; veja-se outro exemplo no episódio da morte do primeiro dos patriarcas Buendía, José Arcádio Buendía, o fundador de Macondo, que no fim da vida enlouqueceu e passou anos amarrado a uma árvore no jardim do casarão da família: na noite em que faleceu, uma tempestade silenciosa de minúsculas flores amarelas caiu do céu sobre o povoado, a ponto de que para o enterro passar foi preciso abrir caminho com pás e ancinhos.

A literalidade é outra figura do maravilhoso em Cem Anos de Solidão, sendo disto o melhor exemplo a passagem em que um jovem apaixonado, por não ser correspondido, morre de amor ao lado da janela do quarto de sua amada.

Na construção da dimensão fantástica, destacam-se ainda grandes metáforas narrativas, cujo significado simbólico não pode ser desconsiderado no plano geral da obra. É o caso, por exemplo, da peste da insônia, uma doença conhecida pelos indígenas, que em certo tempo ataca o povoado de Macondo, e é assim descrita:

“... a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado”.

À medida que o romance se desenvolve e a história dos Buendía e de Macondo evolui, sucessivas dimensões do tempo se sobrepõem, tal qual acontecimentos ocorridos em épocas diferentes fossem aparentemente simultâneos e personagens de diferentes gerações interagissem no imaginário da família como se fossem contemporâneos uns dos outros. Essa circularidade do tempo é acentuada e pontuada pela longevidade da matriarca Úrsula, que zela por filhos, netos, bisnetos e tataranetos, aparentemente vivendo por mais de 125 anos, e pela presença rediviva do cigano Malquíades, amigo do primeiro patriarca, cujos pergaminhos cifrados narram e determinam o destino da família.

García Márquez é um grande contador de histórias e escreve muitíssimo bem, qualidades que hoje, inutilmente, por vezes tenta-se dispensar nos escritores.

Passadas cinco décadas, seu estilo mágico de literatura encontra-se incorporado a nosso repertório de leitura a tal ponto que ao revisitar sua obra prima o que mais chama a atenção de início, para lá dos aspectos fantásticos da narrativa, é a invejável fluência da escrita e a maestria do autor no domínio do enredo.

Para concluir devemos considerar que a história de uma família e de um longínquo lugarejo, embora contada em memorável estilo, não teria sido argumento suficiente para a construção de uma obra icônica como veio a se tornar Cem Anos de Solidão. García Márquez neste livro alegórico e mítico alcançou construir uma epopeia burlesca da Colômbia e da América Latina.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. São Paulo, junho de 2014


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


Imagem Ilustrativa do Post: Gabriel García Márquez, painted portrait _DDC2546 // Foto de: thierry ehrmann // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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