CARTOGRAFIA DA VIOLÊNCIA: POR QUE CHORAM OS KAINGANGUES, GUARANIS E XOKLENG?

11/01/2018

O aumento da violência e violação de direitos contra as comunidades indígenas tem sido uma recorrência no contexto nacional. Assassinatos, doenças, fome, homicídios, mortalidade na infância,[1] omissão e morosidade na regularização das terras tradicionais,[2] prisões e suicídios são alguns dos fatores que permeiam a realidade das mais de 305 diferentes etnias com uso de aproximadamente 274 matrizes linguísticas indígenas no Brasil.

Nesse contexto de violências estrutural, física e simbólica insta registrar a morte violenta do professor de Educação Indígena da etnia Laklãnõ Xocleng, Marcondes Namblá,[3] como mais uma vítima de violência e assassinato brutal contra indígenas ocorrido no Estado de Santa Catarina no espocar de fogos da virada de ano.

Ativista social, pai de dois filhos, educador, liderança expressiva que também exercia o cargo de juiz na Terra Indígena, foi encontrado desacordado em uma praia do Litoral Norte de Santa Catarina, com marcas de espancamento.  O professor Marcondes[4] estava temporariamente no litoral catarinense - durante o recesso escolar em razão de exercer atividades comerciais temporárias (vendia picolé para aumentar a renda como professor da rede pública estadual). Após ser socorrido foi internado em estado muito grave no Hospital Marieta Konder Bornhausen, no município de Itajaí, porém não sobreviveu às fraturas cranianas dos golpes que sofreu. Quando chegou ao hospital, os médicos já haviam diagnosticado morte cerebral do professor, que teve os ossos do crânio esfacelados. Registrou-se também que havia marcas de pneus de carro no corpo - o que demostra que depois de ter recebido muitos golpes na cabeça e no corpo, pode ainda ter sido propositalmente atropelado.

Ações de crueldade e violências como essas têm sido registradas nas mais diversas terras indígenas. As entidades de apoio aos povos originários possuem uma vasta lista de ações e atividades desenvolvidas junto ao povo Guarani e Xocleng, porém pouco parece sensibilizar os gestores públicos e a sociedade como um todo. A título de exemplo, pode-se citar o crime bárbaro registrado em Imbituba, litoral de Santa Catarina, no dia 30 de dezembro de 2016, quando o menor Vitor, com dois anos de idade, acabou sendo degolado por um desconhecido, enquanto era alimentado pela mãe.

Vitor estava sendo amamentado pela mãe, Sônia da Silva, quando um homem se aproximou, acariciou seu rosto e, com um estilete, o degolou. Enquanto a mãe e o pai – Arcelino Pinto – desesperados tentavam socorrer a criança, o assassino seguiu caminhando pela rodoviária até desaparecer. Vítor faleceu em um local que a família Kaingang imaginava ser seguro. As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos pelos Kaingang para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos. A família de Vítor é originária da Aldeia Kondá, localizada no município de Chapecó, Oeste de Santa Catarina. Vítor estava na rodoviária com os pais e outros dois irmãos, um de seis anos e outro de 12. (CIMI, 2016)

Outro fato ocorreu em novembro de 2017, quando a indígena Ivete Antunes, 59 anos, residente na aldeia Itaty do Morro dos Cavalos, teve a mão decepada em um ataque a facão no Feriado dos Finados. O fato resultou em uma manifestação no centro da capital de Santa Catarina momento a qual se denunciou as condições de vulnerabilidade e subalternização dos nativos Xocleng que ficavam alojados embaixo da Ponte, em Florianópolis. A mobilização resultou na necessidade da cidade possuir uma casa de passagem para os indígenas, projeto já aprovado pela Câmara de Municipal de Vereadores até então descumprido.

Infelizmente existem centenas de registros que relatam ações de violência contra os indígenas, com e sem solução. Em sua maioria as violências contra indígenas também são silenciadas pelos próprios meios de comunicação. Entretanto, urge a necessidade de revisitarmos a trajetória histórica do Brasil e enfrentarmos de frente esse processo que iniciou no século XV com a ‘constituição’ da América e da efetivação do capitalismo colonial atrelado à ideia de poder assentado no paradigma colonialidade-modernidade, procedida do ideário de colonialidade do poder e do saber.

Colonialidade essa que construiu um olhar de que o corpo dos indígenas é violentável, embasado na construção das hierarquias raciais, de gênero e de modos de apropriação dos recursos naturais, marcada por relações assimétricas entre economias cêntricas e periféricas. Ou seja, um modelo de exercício de dominação especificamente moderno que interliga a formação racial, o controle do trabalho, o Estado e a produção de conhecimento.

           

REFERENCIAS 

CIMI. Conselho Indigenista Missionário. Relatório – Violência contra os povos indígenas no Brasil. Dados de 2016. Disponível em: http://www.cimi.org.br/pub/relatorio2015/relatoriodados2016.pdf. Acesso em: 03 de janeiro de 2018.

DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2000.

MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. LANDER, Edgardo (Org). Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales –CLACSO, 2005.

QUIJANO, Anibal. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica  más  allá del capitalismoglobal. Castro Goméz, Santiago; Grosfoguel, Ramón. (orgs) Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios  Sociales  Contemporáneos  y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. Disponível em: http://www.unsa.edu.ar/histocat/hamoderna/grosfoguelcastrogomez.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2017.

 

[1] Registros da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) apontam a ocorrência de 735 casos de óbito de crianças indígenas menores de 5 anos em 2016.

[2]  De um total de 1296, apenas 401 terras, o que representa 30,9% do total, tiveram seus processos administrativos finalizados, ou seja, já foram registradas pela União como terras tradicionais indígenas.

[3] Residente na Terra Indígena Laklãnõ, localizada no município de José Boiteux, no Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina.

[4] Possuía Licenciatura Intercultural Indígena cursado na Universidade Federal de Santa Catarina.  Teve como trabalho de conclusão de curso o estudo intitulado ‘Infância Laklãnõ e a prática dos banhos nos rios, obscurecidos pela construção da Barragem Norte.’

 

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