CARLOS CÁRCOVA TINHA...NÃO, CARLOS CÁRCOVA TEM RAZÃO!

05/09/2022

Coluna Por Supuesto

Foi embora fisicamente Carlos María Cárcova, professor argentino que tive a felicidade de conhecer em Coimbra, quando na oportunidade fez uma exposição brilhante sobre aspectos da Teoria Crítica do Direito, em evento organizado pelo meu orientador de estudos e pesquisas de pós-doutorado na Universidade lusitana, o professor Avelãs Nunes.  

Tento recompor a ocasião e lembro que Carlos Cárcova transmitia serenidade e conhecimento, tanto na sua alocução quanto na sua escrita. Podia ir tranquila e sabiamente de Kelsen a Luhmann, passando por Weber e Habermas, distinguindo etapas históricas e motivando com enfoques críticos a análise de um Direito que já não parecia mais conhecido para quem o escutava. Talvez porque disso se tratava, de mostrar o desconhecimento que paira sobre o fenômeno jurídico.

E é precisamente na sua obra, traduzida ao português, a Opacidade do Direito, na qual o Mestre, como toda razão alerta que:

“O Direito, que atua como uma lógica da vida social, como um livreto, como uma partitura, paradoxalmente não é conhecido, ou não é compreendido pelos atores em cena. Estes realizam certos rituais, imitam condutas, reproduzem certos gestos, com pouca ou nenhuma percepção de seus significados e alcances”.

Destarte, muito embora o Direito organize, sistematize e de sentido às relações entre os homens, relações de produção, relações de subordinação, relações de apropriação de bens, a verdade é que, esse Direito que permeia a vida social e define os resquícios da individualidade de cada sujeito, é desconhecido e viaja incógnito, tornando-se variável, de pais a pais, de pessoa a pessoa, segundo o grau de desenvolvimento econômico, social e cultural ou segundo o lugar que a pessoa ocupa na estrutura social.

Nessa proposta, Cárcova deixa ao descoberto as ficções que acompanham ao Direito em seu discurso, apresentando como desde a sua própria lógica interna, desde a legalidade, a legitimidade ou a reflexão científica que por sobre ele se realiza, a experiencia jurídica está cheia de imaginários e idealizações, de modelos e categorias que associadas umas às outras ao final acabam por ser incompreensíveis para a maior parte dos seres humanos.

Com efeito:

“os homens são livres e iguais diante da lei e, por conseguinte, estão igualmente capacitados para a realização de qualquer ato jurídico. Sabemos todos, mesmo os juristas, que estas pressuposições, essenciais á vida do direito, não passam de um conjunto de ficções. Que razão exige a utilização dessas e de outras ficções com relação ao funcionamento da ordem jurídica? Que obstáculos epistemológicos impedem que esses fenômenos tornem-se temáticos na teoria jurídica? Que circunstâncias permitem que os homens possam desempenhar seus papéis sociais sem perceber por completo o sentido dos mesmos?”

Na quadra histórica que atravessamos, na qual tentamos reforçar que o pensamento deve ser “crítico” – baita tautologia dirão alguns com razão, mas acontece que, ao final, nada mais urgente hoje que dizer isso -  e que existe a necessidade de pensar “criticamente” a Teoria do Direito, realizar um convite para se propor descobrir, ou pelo menos buscar, muito além do formalismo lógico e da compreensão positivista de todo um arcabouço normativo, respostas a estas questões, o pensamento de Cárcova não só deixa um legado de compromisso com o Direito como instrumento para transformar realidades, senão para robustecer a democracia.  

Por isso seu pensamento pode e deve – de fato - resultar incómodo a quem pretende o sempre reduziu o direito a meros textos considerados suficientemente válidos porque sim, porque oriundos de autoridade, ou para aqueles que pensam no Direito desprovido de interesses, como um dado da realidade, neutral e sem origens em pressupostos vivos e determinantes para sua tessitura.

Nesse Direito, profundamente “impuro” concebido na América Latina, no qual o que menos podemos aceitar e que os conceitos sejam construções sem história, peço licença para trazer mais uma reflexão de Carlos Cárcova em outra de suas obras, e que transcreva no original castelhano:  

Por lo general las Escuelas de Derecho ofrecen una formación extremadamente deficitaria en el campo de la teoría jurídica y social. Predomina en ellas una perspectiva dogmática, manifiestamente reductiva. Tal circunstancia es de suyo negativa porque escamotea información respecto del entramado de nociones y principios que organizan y estructuran el saber jurídico, pero sus efectos son aún más insidiosos en una época en que la ley positiva cambia vertiginosamente, al ritmo de las radicales transformaciones del mundo de la postmodernidad. Transformaciones tecnocientíficas, pero también políticas, económicas, morales, culturales. Un conocimiento que no dispone con profundidad y soltura del manejo de las categorías teóricas que le dan sustento, se torna rápidamente obsoleto. Es preciso, por consiguiente, rever planes de estudio, pero mucho más importante y estratégico es generar una conciencia distinta acerca del conocimiento en general y del conocimiento jurídico en particular. La "epopeya" de la purificación de la teoría ya cumplió su cometido, ahora hay que emprender otra tarea de signo contrario, esto es, despurificar la teoría para construir, en la intersección con otros saberes, un paradigma cognitivo de nuevo tipo, capaz de dar cuenta del papel del derecho en el marco de la sociedad compleja del siglo XXI”.

Este é o início de um comentário da sua obra “Las teorias Jurídicas Post positivistas”, com o qual não há como discordar. Especialmente quando na Universidade neoliberal proposta, a reflexão e a crítica passam longe. Um paradigma cognitivo de novo tipo é fundamental, e nisso, também, Cárcova não tinha, senão que continua a ter razão. Como também lhe assiste razão quando liga essa opacidade do direito à democracia porque, com efeito, as atuais sociedades, ainda que se denominem democráticas, pouco tem feito para socializar o conhecimento do direito. A desculpa mais frequente, menciona Cárcova, são os altos custos dessa empreitada, questão que não parece ser um problema para ensinar outras disciplinas, cujos gastos são justificados na qualidade de investimentos. Trata-se de uma lógica economicista e pragmática que rege a interação social. O desconhecimento do direito, que afeta á sociedade como um todo, diz Carlos Cárcova, terá efeitos tanto mais deletérios quanto maior seja o grau de vulnerabilidade social, cultural, trabalhista, etc. do grupo que dele padece. E conclui seu raciocínio com uma visão tão atual e ao mesmo tempo tão premonitória que, em nosso juízo, deve ser escutada e reflexionada com rigor, “(...) se a história não acabou – e basta olhar em torno, ler os diários ou acessar a internet, para compreender que continua viva – será necessário lembrar que o que não se semeia em moeda de equidade, social e politicamente falando, semeia-se na moeda da rebelião e violência”.

Quando se estuda direito, assim como quando se estuda qualquer outra disciplina, parece-nos que há um movimento de corsi e ricorsi, no qual o conhecimento se complementa, cada um com a memória da anterioridade. Assimilamos as visões de quem está ao nosso lado e daqueles que nos antecedem na partida. Carlos Cárcova doou com generosidade seu tempo para nos ensinar direito, isso nem para ele nem para nós foi ou é um tempo perdido, senão um valioso tempo recuperado. Há um presente contínuo como marca indelével, no qual ficam os ensinamentos. É o caso de Carlos Cárcova, que tinha e continua a ter muita razão nas suas alertas e, por supuesto, nas suas lições sobre a opacidade do direito. Obrigado Mestre!!!

 

Imagem Ilustrativa do Post:  [sabedoria] // Foto de: Edna Colman  // Sem alterações

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