Cândido ou o otimismo sob a luz do Direito – Por Roberto Victor Pereira Ribeiro

20/09/2017

Voltaire, pseudônimo de François Marie Arouet, se destacou no mundo com sua forma profícua de viver e de escrever. Aliás, neste campo redacional foi um escritor polígrafo com cerca de setenta grandes obras, isto sem mencionar as duas mil cartas e os vinte mil panfletos que escreveu.

Apesar de possuir formação literária, em certo momento enveredou pelo campo do Direito, mormente quando efetuou a defesa póstuma de Jean Calas, cidadão francês acusado de assassinar o próprio filho e condenado a morrer na roda da tortura. Neste mister Voltaire foi esplêndido, pois conseguiu demonstrar que o filho de Calas havia se suicidado, e não assassinado por seu pai. A história e a defesa estão na célebre obra de Voltaire, denominada: Tratado sobre a tolerância.

Na obra que ora analisamos pela lente cristalina do Direito, Voltaire se debruça sobre a história de Cândido, personagem que passa por tortuosos momentos em sua vida, mas que nunca deixa de sonhar na possibilidade de retornar aos braços da amada.

Esta obra influenciou a escritura de muitas outras pelo mundo afora, como por exemplo: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e Quincas Borba, de Machado de Assis.

O livro utilizado para esse artigo pertence à coleção “Obra-Prima de cada Autor” do selo Martin Claret, edição de 2011.

Após ser expulso do palácio onde residia, Cândido passa a se aventurar na vida pelo mundo. Quando esteve entre os búlgaros, a personagem-mor foi aprisionada e argüida sobre qual deveria ser a pena que lhe seria imposta.

“Perguntaram-lhe juridicamente o que preferia: ser fustigado 36 vezes por todo o regimento ou receber ao mesmo tempo 12 balas de chumbo na cabeça.”[1]

No Brasil, Cândido jamais enfrentaria este dilema, pois a Constituição Federal de 1988 veda qualquer espécie de pena cruel ou de morte, artigo 5º, XLVII, in verbis:

“XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

e) cruéis;”

Na Bulgária ele deveria responder a pergunta que lhe fizeram e assim: “Decidiu em nome do dom de Deus que se chama liberdade, a passar 36 vezes pelas varas; ainda suportou duras penas. O regimento era composto por dois mil homens, o que equivale a ter recebido 4.000 mil varadas, que lhe tiraram a pele, do pescoço ao traseiro, deixando-lhe os músculos e os nervos à mostra.”[2]

Adiante ocorre um novo procedimento, este, considerado instituto jurídico é adotado pelo Brasil: “Quando se ia proceder à terceira investida, Cândido, que já não podia mais, pediu que lhe concedessem a graça de esmigalharem a cabeça, o que lhe foi concedido. Vendaram-lhe os olhos e mandaram-no ajoelhar. Nesse preciso momento, passa o rei dos búlgaros e informa-se do crime do paciente […] concedeu-lhe a sua graça com uma clemência.”[3]

O rei deu-lhe a graça.

Na visão de Edgar Noronha: “A graça é espécie da indulgência principis de ordem individual, pois só alcança determinada pessoa”[4]

Damásio de Jesus ensina: “a graça e o indulto apenas extingue a punibilidade, podendo ser parciais; a graça e o indulto atinge crimes comuns; a graça e o indulto são de competência exclusiva do Presidente da República”.[5]

Assim como o rei da Bulgária concedeu a graça à Cândido, em solo brasileiro seria de competência do Presidente da República essa concessão;

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

XII - conceder indulto e comutar penas”

Destarte, Cândido escapa da morte e segue o seu rumo de aventuras.

Prosseguindo neste capítulo de penas cruéis, não podemos deixar de citar passagem do livro onde o escritor francês faz uma crítica disfarçada ao “Tribunal da Santa Inquisição”:

“Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um meio infalível de impedir a terra de tremer”.[6]

Infelizmente houve vários casos dessa natureza, onde podemos citar dois famosos: Joana D'arc e Thomas Morus.

Quando chegou a Holanda, Cândido foi logo repreendido por seu modus vivendi:

“Pediu esmola a várias personagens graves, que, sem exceção, lhe responderam que, se continuasse a mendigar, o meteriam numa casa de correção para lhe ensinar um meio de vida”.

Em plagas brasileiras, tal prática também é admoestada, sendo inclusive tipificada na lei de Contravenções Penais:

“Art. 60 – Mendigar, por ociosidade ou cupidez.

Prisão simples, de quinze dias a três meses.[7]

Percebe-se que este comportamento é repudiado em várias partes distintas do globo terrestre.

Em Portugal, Cândido e seu professor Pangloss foram detidos e jogados em um cárcere imundo e desumano:

“Depois do jantar foram também prender o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com um ar de aprovação. Foram ambos levados separadamente para compartimentos de muito frio, onde a luz do sol nunca havia penetrado”.[8]

Dois fatos nos chamam a atenção: o primeiro consiste no ato de prisão e o segundo na cela em que mantiveram os acusados.

Na legislação brasileira é cediço que só poderá levar um cidadão a prisão através de dois meios: Prisão em flagrante delito, isto é, quando a pessoa está cometendo o crime, acaba de cometer ou por meio de mandado judicial.

O Código de Processo Penal leciona desta maneira:

“Art. 282 – À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão em virtude de pronúncia ou nos casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente”

Por meio das leituras efetuadas na obra podemos perceber friamente que Cândido e Pangloss não tiveram seus mandados de prisão expedidos por autoridade competente, nem tampouco estavam a cometer crimes em flagrante delito. Destarte, a prisão dos dois é ilegal.

O segundo ato desrespeitoso perante as leis brasileiras acontece depois da prisão, quando ambos são levados a cárcere sem condições alguma de detenção de seres humanos:

Foram ambos levados separadamente para compartimentos de muito frio, onde a luz do sol nunca havia penetrado”

A Lei de Execução Penal brasileira prevê celas da seguinte maneira:

No art. 45, § 2º, da LEP, encontramos a seguinte disposição: “é vedado o emprego de cela escura”.

Portanto, no Brasil não prosperariam tais prisões.

Podemos nos perguntar às vezes se Voltaire deixa transparecer nas entrelinhas da obra, a existência de justiça ou órgãos judiciais, pois por tamanhas atrocidades jurídicas, chegamos até mesmo a duvidar da presença jurídico-estatal na vida dos cidadãos. Pois bem, Voltaire diz que existe justiça sim, vejamos:

“Que vai ser de nós? Um homem morto em minha casa! Se a justiça o sabe, estamos perdidos.”[9]

Esta passagem acontece quando Cândido assassina um homem na sala de estar da casa de sua grande amante Cunegundes. Mais à frente me debruçarei sobre este homicídio. A priori o que nos interessa é saber da existência de órgãos judicantes e concluímos que estes existiam. Outra passagem demonstra tal assertiva:

“Os pais dela intentaram contra o marido uma queixa-crime. O juiz libertou-me [...]”[10]

Havia institutos jurídicos consolidados e procedimentos processuais cabíveis, além de se notar claramente nesta passagem a existência de uma autoridade investida do papel de juiz.

Como havia mencionado acima, irei explicar paulatinamente o homicídio cometido por Cândido. O texto reza assim: “Era uma hora da manhã, ou seja, já domingo, dia em que pertencia ao senhor inquisidor. Este entra e dá de cara com o espetáculo: Cândido, que fora açoitado há pouco, de espada na mão […] se esse homem grita por socorro, mandar-me-á infalivelmente queimar, podendo fazer o mesmo a Cunegundes; mandou-me já açoitar impiedosamente e é meu rival; estou em ação de matar; não há que hesitar”.[11]

Estamos diante de um imbróglio: homicídio qualificado sem resistência da vítima; homicídio simples; legítima defesa ou homicídio privilegiado?

Mirabete ensina que a surpresa pode qualificar o delito quando, efetivamente, tenha ela dificultado ou impossibilitado o agente de se defender. “Assim, só se caracteriza quando o ato é completamente inesperado para a vítima.”.

E complementa: “Reconhece-se a qualificadora em estudo nos seguintes casos: vítima dormindo ou repousando; gesto repentino que não deu oportunidade à vítima para se defender; quando a vítima não podia prever a inesperada agressão. Por outro lado, não se reconheceu a qualificadora da surpresa na morte quando já haviam ocorrido divergências entre o agente e a vítima ou quando a vítima tinha motivos para desconfiar da agressão.”[12]

Ora, no caso de Cândido, o mesmo a cerca de minutos anteriores havia sido cruelmente castigado pela vítima, portanto, é compreensível esperar que no próximo encontro entre os dois aconteça alguma querela.

Assim, não vislumbro a incidência da qualificadora de surpresa para diminuir a resistência da vítima.

Legítima defesa não pode se considerada porque não houve “agressão atual a direito seu ou de outrem”. A personagem morta apenas adentrou a sala e sequer partiu em direção a alguém.

Pode ser considerado homicídio privilegiado se atentarmos para o fato de que momentos antes o agente ativo do crime havia sido duramente castigado pela vítima restando, assim, a possibilidade do acontecimento: assassinato.

O artigo de nosso diploma legal é claro: “Se o agente comete o crime impelido […]  logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena”.[13]

Sem contar que reside em Cândido também, o sentimento de relevante valor moral e social, uma vez que a vítima constantemente abusava de sua amada e castigava ferozmente seus inimigos.

Cândido em nosso território deveria ser condenado e apenado por homicídio, porém, na nossa opinião, caberia a tese de homicídio privilegiado.

Anteriormente levantamos a dúvida em relação à existência de Poder Judiciário, depois demonstramos cabalmente que havia sim implementado naqueles lugares, um sistema judiciário.

Na Holanda, por exemplo, a justiça era privada. Não a justiça privada de antigamente, onde os familiares, usando do poder de suas mãos, vingavam as suas vítimas. Falo sim, da justiça paga e inacessível aos pobres, tal como a máxima de Ovídio: “cura pauperibus clausa est” (o tribunal está fechado para os pobres )”.

A passagem que retrata isso é esta: “Cândido dirigiu-se, em seguida, à casa do juiz holandês e, como estava um pouco agitado, bateu violentamente à porta. Entrou, expôs o seu caso, gritando um pouco mais alto do que convinha. O juiz começou por lhe fazer pagar dez mil piastras pelo barulho que fizera. Escutou-o depois pacientemente e fez-lhe pagar outras dez mil piastras pelas despesas de audiência”.[14]

Esse juiz talvez fosse uma espécie de árbitro dos dias atuais.

Quanto ao pagamento pela justiça acho uma conduta deplorável e triste, pois assim, o pobre nunca terá concretizado os direitos que possui.

Certa vez, escrevi artigo indignado com este expediente usado por alguns órgãos: Não podemos criar barreiras, obstáculos, aos que verdadeiramente necessitam gritar pelos seus direitos. Não podemos deixar cravar no espírito de cada desamparado financeiro a noção de que a Justiça é uma porta acessada somente por quem tem dinheiro para pagar a entrada. O acesso à Justiça não é cinema, não é teatro, é um DIREITO FUNDAMENTAL DO HOMEM.[15]

Seguindo novamente na análise do livro, deparamo-nos, ai sim, com um caso de homicídio qualificado. Explico.

A passagem diz assim:

“Esse, farto de aturar a mulher, deu-lhe um dia, para curá-la de uma constipação, um remédio tão eficaz que ela morreu em duas horas, em meio a convulsões horríveis”.[16]

Tal assassinato recebe a qualificadora de motivo fútil, uma vez que o marido, médico que era, aproveitou a oportunidade da enfermidade da mulher para matá-la, já que não conseguia mais aturá-la. Ele matou a esposa porque não tinha mais paciência com ela.

Por fim, comento passagem que demonstra a violência desacerbada contra as mulheres:

“Ontem fui(Cunegundes) espancada e roubada por um oficial”[17]

Felizmente em terras brasileiras desde 07 de agosto de 2006, vigora a “Lei Maria da Penha”, promulgada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

O artigo inaugural dessa lei dispõe:

“Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.”

Graças a esse advento, hoje a mulher brasileira tem mais um instrumento a seu favor.

Portanto, Cunegundes cidadã brasileira, sendo agredida, poderá buscar a guarida jurisdicional.

Desta maneira, encerro a análise jurídica da excelente obra “Cândido ou o Otimismo” do grande escritor francês Voltaire.

Recomendo a leitura dessa obra em todas as nuanças e matizes.


Notas e Referências:

[1] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 18

[2] Ibid, 2011, p. 19

[3] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 19

[4] NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal, V. 1 ao 4. São Paulo: Saraiva. p. 401

[5] JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral, vol. 1, 31.ª ed., Saraiva, 2010, p. 605

[6] Ibid, 2011, p. 33

[7] Revogado pela Lei nº 11.983, de 2009

[8] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 33

[9] Ibid, 2011, p. 41

[10] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 105

[11] Ibid, 2011, p. 41

[12] MIRABETE, Júlio Fabrinni. Manual de Direito Penal: Parte Especial. V2. São Paulo: Atlas, 2008. p. 41

[13] §1º do art. 121, Código Penal

[14] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 82

[15] RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. Direito de possuir Direitos. Brasília: Consulex, revista Prática Jurídica, edição de junho de 2009.

[16] Ibid, 2011, p. 105

[17] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 105


 

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