Por Clenio Jair Schulze e Ivan Bonifácio - 14/11/2015
A leitura do último “Relatório Justiça em Números” publicado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ permite a seguinte conclusão: o Brasil é campeão mundial de judicialização.
O Relatório aponta que tramitam no Brasil 99,7 milhões de processos judiciais. Em dezembro de 2014 existiam 70,8 milhões de processos judiciais aguardando julgamento. Naquele ano, foram mais de 28,9 milhões de casos novos, tendo sido resolvidos, nesse mesmo período, outros 28,5 milhões.
No Brasil estavam em atividade em 2014 8,35 magistrados para cada 100 mil habitantes. Na primeira instância, que absorve 86% dos casos novos no ano, foram cerca de 11.134 casos recebidos por 100 mil habitantes.
Na Europa, segundo o relatório produzido pela Comissão para Eficiência da Justiça – CEPEJ - "European judicial systems – Edition 2014: efficiency and quality of justice,[1] a média de magistrados por 100 mil habitantes já era mais que dobro do Brasil (21 magistrados/100mil hab.) em 2012 e, por outro lado, a média de casos novos por 100 mil habitantes naquele ano, na primeira instância, foi bem menor, 8.405.
O relatório europeu destaca, ainda, o número de advogados em cada um dos 45 países pesquisados, demonstrando que a média no antigo continente é de 25.805 advogados, sendo que o país com mais advogados era, naquele ano, a Inglaterra, com 174.279 causídicos. No Brasil, são mais de 800 mil devidamente registrados no respectivo órgão de classe – OAB, um verdadeiro exército!
Esses números indicam que o país não passa apenas por uma crise política e econômica. Há, em verdade, uma crise institucional generalizada. Não é admissível que o Estado-Juiz seja responsável por todas as demandas do país e do cidadão.
Os dados também revelam que o Judiciário tem melhorado, ano após ano, seu desempenho, comprovado pelo aumento da produtividade (número de casos solucionados/baixados) em 12% no período de 2009-2014. Entretanto, a demanda pelos serviços judiciais foi ainda maior nesses mesmos seis anos (17,2%), provocando crescimento do congestionamento (acúmulo) de processos em mais 400 mil, só em 2014. Tal situação denota que mesmo com esse brutal esforço para solucionar as demandas judiciais, a gigantesca onda de novos casos coloca o Judiciário cada vez mais longe de um porto seguro.
Os gastos no Judiciário, que foram em 2014 na ordem de R$ 68 bilhões, aumentaram 4,3% em relação a 2013, índice que ficou bem abaixo da inflação no mesmo período (6,41%), configurando encolhimento real das despesas em relação a 2013. Todos esses dados sinalizam que o Poder Judiciário tem praticado o ideal de eficiência, “fazendo cada vez mais com menos”. Evidentemente que essa equação tende a um limite, que se for alcançado, pode fragilizar a ordem e a garantia da mínima e necessária paz social.
O segmento mais demandado em 2014 foi a Justiça dos Estados, que recebeu 70% (20 milhões) dos casos novos de 2014 e mantém 81% (57,2 milhões de processos) de todo o acervo pendente de julgamento. O que mais se discutiu na Justiça Estadual em 2014 foi (1º) discussões contratuais; (2º) dano moral; (3º) dívida com o Estado (dívida ativa); (4º) os direitos do consumidor; (5º) direito de família (pensão alimentícia). Em tais temas foram registrados mais de 7 milhões de vezes em 2014.
Este, portanto, é o real retrato do Brasil.
Vários são os fatores que fomentam a judicialização ilimitada, destacando-se, (1) a ausência de limites ao acesso à Justiça, (2) a deficiência das prestações estatais – especialmente os direitos sociais, como saúde, educação, moradia, entre outros –, (3) as omissões legislativas e (4) a cultura do litígio.
Trata-se da institucionalização do processo judicial como mecanismo de resolução de todos os problemas individuais e sociais.
Quais são as alternativas para minimizar este modelo institucional?
Muitos apontam que a mediação e a conciliação podem alterar o panorama de judicialização ilimitada. É claro que a Lei 13.140/2015 e o Novo Código de Processo Civil fomentam a resolução extrajudicial dos conflitos, contudo, tais atos normativos não serão suficientes.
Com efeito, a principal mudança deve ser a cultural. O Brasil passou a conviver com o incentivo à judicialização. Antigamente, a propositura de uma ação judicial passava por uma profunda análise de custo-benefício. Hoje, ocorre o inverso. Judicializa-se sem qualquer reflexão. E o pior, o demandado – devedor, inadimplente, etc – geralmente fomenta e prefere ser acionado na via judicial. Não há mais temor reverencial a um processo judicial!
Além deste aspecto cultural – que está disseminado no cenário nacional – é preciso destacar que o Brasil possui um exército de atores do sistema de Justiça. Existem no país aproximadamente 17 mil juízes, 12 mil membros dos Ministérios Públicos e quase um milhão de advogados (e um grande número de paralegais, que ainda não obtiveram êxito no exame de ordem). Há ainda milhares de outros profissionais que lucram com o crescimento do volume de processos judiciais. É inegável que este alto número contribui para aumentar as demandas em tramitação no Poder Judiciário.
Mas o principal ponto, infelizmente, é que o Estado passou a utilizar o Judiciário como mecanismo para postergar o cumprimento das suas obrigações. Isto se verifica, especialmente, nas dificuldades de (1) concretização dos direitos sociais, (2) na rolagem da dívida – especialmente de precatórios, (3) na ausência de políticas de governança sustentável.
Assim, somente haverá mudança se o Estado mudar o seu modelo de atuação, passando a contribuir para a construção de um modelo adequado, sem excessos e omissões.
Além disso, o cidadão brasileiro não pode depositar todas as suas expectativas no Poder Judiciário. O excesso de processos judiciais frustra a expectativa de resolução célere e tempestiva dos litígios. A judicialização deve se limitar ao essencial e não ao secundário.
Sem estas mudanças, o Brasil renovará, anualmente, o título de campeão mundial de judicialização, agravando, cada vez mais, as crises política, jurídica, econômica e institucional.
Notas e Referências:
[1] O relatório foi elaborado a partir de dados fornecidos por 45 países membros da The European Commission for the Efficiency of Justice -CEPEJ.
Disponível em: http://www.coe.int/t/dghl/cooperation/cepej/evaluation/2014/Rapport_2014_en.pdf
Clenio Jair Schulze é Juiz Federal. Foi Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2013/2014). É Mestre e Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - Univali. É co-autor do livro "Direito à saúde análise à luz da judicialização".
.
.
Ivan Bonifácio é Secretário de Desenvolvimento Institucional do Conselho da Justiça Federal – CJF.
.
Imagem Ilustrativa do Post: paperwork 2 // Foto de: Isaac Bowen // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/isaacbowen/2752095700
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.