Caminhos inversos: o difícil equilíbrio entre marketing e mercado de trabalho para as mulheres.

30/06/2023

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

“As mulheres são consumistas, nunca tem dinheiro”. Essa frase, ouvida e dita tantas vezes, quer seja por homens, quer seja por mulheres, leva consigo muitas das ideias do sistema de patriarcado, como também embala as práticas de mercado. Sem se discutir sobre a verdade por trás da assertiva, é mais rentável fomentá-la que questioná-la e isso o mercado faz com maestria. Um pensamento crítico, todavia, é capaz de desassossegar aqueles que a ouvem ou dizem.

O lugar da mulher no mercado de trabalho e, por consequência, como público destinatário das estratégias de consumo, é uma conquista alcançada através dos movimentos feministas e da necessidade imposta pela sistemática de produção massiva de bens. O acesso da mulher ao mercado de trabalho contraria a política de patriarcado, que reserva ao feminino apenas o espaço doméstico, de cuidado do lar e criação dos filhos, expressão da submissão da mulher aos homens.

Fatores como a compleição física feminina, que está em desvantagem em relação à força física masculina, apontavam para o ambiente doméstico como destino. Mesmo com a industrialização, e consequente substituição da força bruta humana pela destreza das máquinas, a divisão sexual do trabalho não foi capaz de libertar as mulheres. Neste cenário, os homens, a quem é conferido o livre trânsito no ambiente público, como em um círculo vicioso, fortalecem a estrutura de dominação.

Pensadoras como Kate Millett[1] e Juliet Mitchell[2] questionam essas estruturas, afirmando que o modelo de patriarcado é um sistema político de controle das mulheres. A manutenção do controle é feita através da socialização, reforçando ideologias que diferenciam papeis sociais aceitos para homens e mulheres, atribuindo à mulher uma posição de subordinação.

Embora a presença feminina no mercado de trabalho seja uma realidade, não se pode olvidar que as condições de acesso, permanência e remuneração diferem substancialmente quando é realizado o comparativo entre homens. Conforme dados do IBGE[3], a mulher recebe cerca de 77% da remuneração do homem pelo exercício da mesma função. A pesquisa revela também que o índice de desemprego atinge as mulheres em maior parcela, ou seja, a taxa de desocupação de homens é de 9,6%, enquanto a desocupação das mulheres 14,1%. No que diz respeito à manutenção do vínculo de emprego, o fato de ser mulher e precisar se afastar do trabalho em razão da gestação ou por ser responsável pelo cuidado com os filhos, mostra-se como justificativa, ainda que velada, para o desligamento da empresa que a emprega, ou em algumas situações, serem preteridas quando o concorrente da vaga é um homem.

O campo profissional feminino é caracterizado por aquilo que a doutrina denomina de “glass ceilling” ou “teto de vidro”. Esta expressão é utilizada para significar a barreira invisível que dificulta o acesso das mulheres a níveis hierárquicos mais altos na empresa da qual fazem parte, tornando esse processo muito mais lento quando comparado com o percorrido por um indivíduo do sexo masculino. Outra análise que os estudiosos elaboram é denominada de “piso pegajoso” a qual diz respeito à concentração da força de trabalho feminina em funções menos valorizadas, como serviços gerais e as destinadas ao cuidado, as quais também apresentam remuneração mais baixa.

Do exposto é possível observar que, embora a presença da mulher no mercado de trabalho tenha se consolidado, as condições a que estão submetidas refletem a disparidade de tratamento entre homens e mulheres. O patriarcado continua a impregnar sua força, menor remunerando e dificultando a ascensão na carreira, além de o vínculo de emprego mostrar-se mais precário.

Na contramão das desvantagens que atingem o mercado de trabalho feminino, as estratégias de marketing são fortemente direcionadas às mulheres. Multiplicidade de produtos, de preços e de necessidades caracterizam a abordagem que é realizada, incutindo, em muitos casos, demandas de beleza e comportamento que devem ser atingidas.

A decisão de compra é influenciada por aspectos não identificáveis em uma primeira análise, ou no plano consciente, como a religião e a tradição[4]. O mercado de consumo e o marketing que o estimula se vale desta característica para veicular propagandas que estimulem esses mecanismos e contribuam para a decisão de compra. No que diz respeito à abordagem do público feminino, estereótipos sustentados pela hierarquia de gêneros e pelo sistema de patriarcado encontram-se presentes.

Tal afirmativa pode ser vista na difusão de propagandas de eletrodomésticos e produtos de limpeza, ou seja, daqueles destinados ao cuidado do lar, voltadas para as mulheres. Seja protagonizando a publicidade, seja como destinatário, a mulher é o alvo desses comerciais, os quais reforçam o estereótipo de que a mulher tem a responsabilidade com os trabalhos domésticos, limitando-a aos estreitos limites desses espaços. Em contraponto, o marketing de bebidas alcoólicas, automóveis e jogos de futebol estão, em sua quase integralidade, voltadas para os desejos masculinos, oferecendo, junto destas aquisições, status de líderes.

Além das propagandas que limitam as mulheres aos espaços domésticos, o marketing do mercado da beleza também encontra no público feminino seu principal destinatário. O ideário de manutenção da juventude e aperfeiçoamento da beleza leva o Brasil a estar dentre os países que mais fazem cirurgias plásticas e procedimentos estéticos não cirúrgicos[5], sendo a principal paciente a mulher. Adequar-se ao padrão de beleza faz milhares de mulheres submeterem-se ao risco de um procedimento estético o qual nem sempre as satisfaz, quer seja física ou psicologicamente. A juventude e a beleza também são perseguidas através de uma multiplicidade de produtos, desde chás emagrecedores de procedência duvidosa, cremes corporais, faciais, produtos específicos para cabelos, unhas, para cada tipo de pele, multiplicando uma infinidade de especificações – em quantidade e em valor dispendido. Àquelas que tentam se manter alheias a tais influências são categorizadas como pouco femininas.

Entremeada à abundância de produtos, a diferenciação entre os neutros de gênero e os identificados com o gênero feminino, encontra-se a justificativa para a adição de preço. Os produtos destinados ao público feminino, quando apresentam essa caracterização, ainda que desempenhem a mesma função que outro que não apresenta identidade de gênero ou é destinado ao público masculino, recebe um aporte de valor sob o argumento de maior eficácia e/ou maior adequação à necessidade da mulher, ainda que não apresente nenhuma diferença, que não a cor, como costumeiramente acontece, para com os demais.

As estratégias de marketing para atrair o público feminino, criando cada vez mais necessidades e reforçando estereótipos de gênero, seja porque subalterniza as mulheres atribuindo-lhes papeis secundários e de cuidado com o lar e com os filhos, seja impondo a adequação a ideários de beleza e cuidado está em dissonância com o que o mercado de trabalho oferece essas mesmas mulheres. A atribuição de um consumo desenfreado e a ausência de recursos é maliciosamente unida em uma mesma frase para desqualificar o comportamento e manifestação por melhores condições de trabalho e remuneração.

É necessário, portanto, repensar as políticas que norteiam tanto a esfera de consumo como do mercado de trabalho e insistir em abordagens cada vez mais desconectadas daquelas sustentadas pelo modelo de patriarcado que, infelizmente, é uma realidade presente na nossa sociedade.

 

Notas e referências

[1] MILLETT, Kate. Política sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970.

[2] MITCHELL, Juliet. Mulheres: a revolução mais longa. Revista Gênero, Niterói, v. 6, n. 2, v. 7, n. 1, p. 203-232, 2006.

[3] Dados disponíveis em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html

[4] LINDSTROM, Martin. A Lógica do Consumo: verdades e mentiras sobre por que compramos. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2017.

[5] Dados disponíveis em: https://www.isaps.org/pt/discover/about-isaps/global-statistics/reports-and-press-releases/global-survey-2020-full-report-and-press-releases-english/

 

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