CABRAL ACORRENTADO: o velado, o desvelado e o revelado na cultura do suplício como pena processual - Por Jader Marques

22/01/2018

Leia o trecho abaixo, procurando imaginar as cenas:

“Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas (...). Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras (...). Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços (...). Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje(...). Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.”[1]

A descrição da tortura e esquartejamento como pena corporal abre a narrativa feita por Michel Foucault na clássica obra “Vigiar e Punir”. Depois de ler e imaginar o que possa ter acontecido naquela execução, responda à pergunta: você iria até a praça da sua cidade para assistir a uma execução como a de Damiens? Certamente sim.

Há vários anos, muitos sequer irão lembrar, a imprensa estampou nas capas de jornais a foto do então Senador Jader Barbalho algemado ao ser conduzido pela polícia para cumprimento de mandado de prisão cautelar. Há alguns meses, os vídeos da prisão do ex-governador Antony Garotinho viralizaram nas redes sociais. Há poucas semanas, a imprensa nacional e as redes sociais transbordaram de fotos do ex-governador e deputado Paulo Maluf, em precário estado de saúde, sendo levado para prisão.

Agora, a última situação a invadir os celulares e tablets dos brasileiros foi a prisão do ex-governador Sérgio Cabral, ostentando algemas nos punhos e correntes nas canelas.

O velado.

A Polícia Federal afirmou, logo após o fato, que o procedimento de algemar os punhos e acorrentar os pés de Sérgio Cabral seguiu rigorosamente todos os parâmetros legais, ou seja, os policiais agiram no estrito cumprimento do dever legal. Repito: conforme a PF, tudo teria sido realizado de acordo com os parâmetros e com o protocolo de segurança. Segundo a assessoria da Diretoria-Geral da Polícia Federal, entretanto, quem define as condições da condução é quem a executa, isto é, os próprios agentes que fizeram a escolta.

Desde os áureos tempos da segunda turma do Mestrado em Ciências Criminais da PUC, no início deste século, quando travava maravilhosos debates com a espetacular Ruth Chittó Gauer e outros grandes professores, venho discutindo a legalidade do uso de algemas no Brasil. Como é sabido, o art. 199 da Lei de Execuções Penais, de 1984, apenas trouxe a previsão de que um decreto viria regulamentar a matéria. Com a edição da Súmula 11 pelo Supremo Tribunal Federal, a questão ficou ainda mais confusa, já que um enunciado da Corte Máxima do País veio disciplinar algo que não constava em nenhum diploma legal.

Recentemente, porém, em 26 de setembro de 2016, o Decreto n° 8.858 disciplinou a questão.

Acontece que os quatro artigos do novo diploma legal, ao contrário do que afirmou a Polícia Federal, mostram a ilegalidade da colocação de algemas nos punhos e de correntes nos tornozelos de Sérgio Cabral, pois não houve resistência, fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia (art. 2°).

Houve, no mínimo, ilegalidade e, no limite, até mesmo abuso de autoridade em tal ato, mas isso ficará velado. Para a massa, extasiada com cena do “corrupto” algemado e acorrentado, qualquer argumento no sentido da preservação da dignidade do preso será tomado como discurso de advogado criminalista, de defensor de direitos humanos: “os mesmos chatos de sempre”.

O desvelado.

Um querido amigo jornalista teria comentado nas redes sociais: “Não fiquei com pena de ver o Sérgio Cabral sair da cadeia para o camburão com os tornozelos acorrentados. Não fiquei mesmo.” A Dona Magaly Cabral, mãe do acusado, por outro lado, teria dito à imprensa: “Meu filho não é um bandido perigoso para sair algemado nos pés e nas mãos. Não estou dizendo que não cometeu erros, mas ontem foi um exagero.”

Ora, não há como negar que a imprensa, ao fazer a cobertura desses fatos, cria uma espécie de rol midiático dos criminosos mais odiados do País. Para tais bandidos, corruptos, facínoras, não há necessidade de obediência à lei, de tal forma que a inobservância ao disposto na legislação, ainda que constitua abuso, violência, arbitrariedade, não espanta a massa daqueles que assistiriam ao esquartejamento de Damiens, comendo pipoca.

A discussão sobre o que pensa a população a respeito das arbitrariedades praticadas pelos agentes públicos não preocupa até o ponto em que este elemento passe a ter repercussão na atuação dos juízes criminais. Este é o aspecto crucial de toda a celeuma, ou seja, quando o julgador criminal esconde a ilegalidade da sua decisão (arbitrariedade) na conformidade do decidido a uma (suposta) opinião pública(da), como se o (suposto) aplauso do leigo passasse a servir de fundamento para as decisões judiciais.

Como dito, o problema surge quando avançam os discursos de legitimação e confirmação de decisões ilegais/arbitrárias como aquelas que deferiram inúmeras conduções coercitivas, prisões cautelares para obtenção de delações, cerceamentos de defesa, naquilo que Lenio Streck cunhou de “lavajatolatria”.[2]

A defesa de um direito penal racional de índole garantista esbarra na força quase intransponível dos discursos punitivistas, de ódio ou de rancor, que ganham espaço na mídia a partir do sentimento de vingança das pessoas, especialmente diante da enxurrada de notícia de fatos criminosos, de atos de corrupção, que podem ser objeto de comentários e de conversa de bar, mas que não deveriam servir de base para nenhuma decisão.

Juiz garantista é juiz garantidor que respeita que a Constituição e a Lei.[3] Fora daí, desvela-se o arbítrio.

O revelado.

O que fica exposto na fratura é o aberto desrespeito às garantias constitucionais. Alguns dirão: de novo Jader Marques? E eu responderei, agora e sempre. Vi meus pais correrem o País na luta contra o arbítrio de uma ditadura militar antinacionalista que torturava e matava aqueles que ousavam pensar diferente. Cresci no Alegrete, ouvindo Chico Buarque cantar: “afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Não posso envergonhar meus professores de direito constitucional, penal e processo penal, a quem devo tanto.

Sou estudante devoto das obras de Luiz Eduardo Soares e, com ele, não canso de repetir: “Em que tipo de mundo eu gostaria de ainda ter o privilégio de viver? Uma sociedade em que os juízes trocariam a rigidez aristocrática da toga pelas sandálias da humildade de que nos falava Nelson Rodrigues. Reagiriam com sensibilidade aos apelos do espírito cambiante do ser humano e se disporiam a apoiar as construções positivas que cada momento da vida dos indivíduos proporcionasse, com seu toque misterioso de gratuidade. Uma sociedade em que os juízes não estudassem apenas as doutrinas e as leis, mas também as sociedades e a psicologia humana, de tal modo que pudessem compreender e avaliar as consequências de suas decisões em todas as esferas da vida individual e coletiva. A punição perderia prestígio, no mesmo ritmo em que cada um de nós aprendesse a responsabilizar-se e a corresponsabilizar-se, respeitando os outros. E a desigualdade no acesso à Justiça se dissiparia no processo que dissolveria todas as desigualdades, para que aflorassem as diferenças, em sua exorbitante proliferação, no ambiente de plena liberdade e cuidado com o planeta.”[4]

E quando o rapaz da bilheteria perguntasse, surpreso: “Por que o senhor não mentiu a idade do seu filho? O senhor pagaria metade do valor da entrada”. Todos nós responderíamos: “Porque nossos filhos aprendem com o nosso exemplo”.

Mais não digo.

 

[1] Trecho do livro “Vigiar e Punir”, no qual Michel Foucault narra aquela que seria, na França, a última execução utilizando métodos que incluíam tortura e esquartejamento, do camponês Robert- François Damiens que era acusado de atentar contra a vida do rei Luís XV (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 9).

[2] https://www.conjur.com.br/2018-jan-18/senso-incomum-lavajatolatria-carnaval-habeas-corpus-gilmar

[3] Sobre o Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli: na internet: http://emporiododireito.com.br/backup/para-entender-o-garantismo-penal-de-ferrajoli-por-alexandre-morais-da-rosa/; no papel: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[4] SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 180.

 

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