Coordenador: Gilberto Bruschi
Historicamente, nenhum outro recurso sofreu mais alterações do que o agravo contra decisões de primeiro grau. Uma breve análise das três legislações processuais mais recentes (CPC´s de 1939, de 1973 e o atual) revelará que este recurso já recebeu as mais variadas denominações (agravo de petição, de instrumento, retido etc.) e se sujeitou a incontáveis regimes jurídicos. Não me parece exagero afirmar que o legislador brasileiro não sabe – e quiçá nunca soube – qual destino dar a este recurso, em que pese sua inegável importância na prática do foro.[1]
Concentremo-nos, entretanto, nos nossos problemas atuais. Como fica a questão do cabimento do agravo de instrumento no CPC/2015? A resposta – como pretendo deixar claro nas linhas que seguem – é mais complexa do que se possa imaginar. Já posso antecipar, todavia, que a clássica desorientação legislativa sobre o que fazer com o agravo se repete na nova legislação processual.
Antes de mais nada, um esclarecimento se impõe: no CPC/2015, só existe uma forma de recurso contra interlocutórias de primeiro grau: o agravo de instrumento. Foi abolida a figura do agravo retido (do CPC/73). E o agravo interno, a que alude o art. 1.021 do CPC/2015, fica reservado para insurgir-se contra decisões monocráticas proferidas no âmbito dos tribunais apenas.
Classicamente, o agravo é o recurso adequado para atacar as decisões judiciais proferidas no curso do processo que não implicam no seu encerramento, tampouco finalizam de uma de suas fases (as chamadas decisões interlocutórias). O agravo de instrumento, portanto e via de regra, é o recurso adequado para atacar uma decisão interlocutória, sendo assim considerada aquela definida pelo § 2º do art. 203 do CPC/2015, em conclusão reforçada pelo caput do art. 1.015 do CPC/2015.
Pois bem. Ocorre que, por expressa opção legislativa, não só foram abolidas as múltiplas figuras do recurso de agravo (restando apenas o agravo de instrumento), como também foi previsto um rol pretensamente exaustivo de decisões interlocutórias agraváveis (art. 1.015 do CPC/2015). Ou seja, na concepção do CPC/2015, existem dois tipos de decisão interlocutória, quais sejam:
(i) as agraváveis, dispostas no rol do art. 1.015 do CPC/2015, que precluirão se não forem objeto de recurso de agravo de instrumento[2]; e
(ii) as não agraváveis, que, justamente por não estarem sujeitas ao regime de preclusão imediata, serão apreciadas se e quando houver futuro recurso de apelação, por provocação da parte, na forma do art. 1.009, § 1º, do CPC/2015.
O agravo de instrumento, deste modo, pode ser (re)conceituado como o recurso adequado para atacar uma decisão interlocutória agravável, isto é, que esteja elencada expressamente no art. 1.015 do CPC.
E quais são as decisões interlocutórias agraváveis? A leitura do art. 1.015 do CPC/2015 permite reconhecer a existência de dezesseis tipos de decisões interlocutórias agraváveis, isto é, as que versarem sobre: (i) tutelas provisórias; (ii) mérito do processo; (iii) rejeição da alegação de convenção de arbitragem; (iv) incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (v) rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação; (vi) exibição ou posse de documento ou coisa; (vii) exclusão de litisconsorte; (viii) rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio; (ix) admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; (x) concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução; (xi) redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1o; (xii) outros casos expressamente referidos em lei (a exemplo do que preveem os arts. 354, parágrafo único; e 356, § 5º, do CPC/2015; entre outros casos). Ainda caberá o agravo de instrumento contra decisões interlocutórias de qualquer conteúdo proferidas (xiii) na fase de liquidação de sentença; (xiv) na fase de cumprimento de sentença; (xv) no processo de execução; e (xvi) no processo de inventário.[3]
E as demais decisões interlocutórias (não contempladas expressamente no rol do art. 1.015 do CPC/2015)? Para elas – vale insistir – valerá o regime jurídico a que se refere o § 1º do art. 1.009 do CPC, isto é: “As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões.” (sem grifos no original).
De tudo que se expôs até agora, é inegável que o legislador quis limitar o âmbito do agravo de instrumento, muito possivelmente com o escopo de reduzir a quantidade de recursos nos tribunais.[4]
Mas, diante de tal constatação, surge a indagação: agiu bem o legislador? A mim, particularmente, parece que não. Para solucionar um problema (suposto excesso de recursos), diversos outros foram criados (a relação custo/benefício não está favorável!). Listo alguns (embora, na prática, muitos outros tenham se revelado):
(i) Imagine a discussão sobre a (in)competência do juízo. O réu, em preliminar de contestação, alega a incompetência relativa (art. 337, II; e art. 64, caput; ambos do CPC/2015). O juiz, logo após abrir contraditório (art. 64, § 2º, do CPC/2015), rejeita a preliminar. Embora inconformado, o réu (que arguiu a questão) nada pode fazer imediatamente, já que decisão sobre a competência do juízo não consta do rol do art. 1.015 do CPC/2015, tendo que aguardar o momento do recurso de apelação para reavivar o debate. E assim o faz, conforme o art. 1.009, § 1º, do CPC/2015. Imagine, no entanto, a hipótese do órgão ad quem constatar que realmente existe um vício de competência no processo. Será altamente desgastante para todos, sem exceção, a anulação do processo em grau de apelação, com a repetição de todos os atos, pelo simples fato de que a matéria não foi prevista no rol do art. 1.015 do CPC/2015. Isso criará uma disfarçada (porém nítida) tendência de manutenção das decisões interlocutórias ventiladas em apelação.
(ii) O que dizer, então, da aplicação de uma multa ao autor que se ausenta da audiência de conciliação (art. 334, § 8º, do CPC/2015)? Sendo ele vitorioso (procedência total dos pedidos), só poderá insurgir-se contra a multa (fixada em decisão interlocutória não prevista no art. 1.015 do CPC/2015) em contrarrazões de apelação (art. 1.009, § 1º, do CPC/2015). Mas, e se não houver apelação por parte do réu? Perde-se, pura e simplesmente, o direito de recorrer? Terá que pagar a multa sem ao menos poder alegar que sua ausência se deu por motivo justo?
(iii) Mas não é só. Em que pese a inegável intenção do legislador, há relatos de órgãos fracionários admitindo o agravo de instrumento para além das hipóteses do art. 1.015 do CPC/2015. Assim, tem-se uma clara agressão à isonomia, pois sujeitos em condições rigorosamente idênticas recebem tratamento diferente (uns têm seus recursos admitidos e outros não). Aliás, como já ponderou André Gustavo Salvador Kauffman em primoroso artigo publicado nesta coluna, “A jurisprudência incoerente corrói a isonomia, propaga a litigiosidade e promove a injustiça.”[5] Nada mais preciso.
Por fim, não há como se esquivar do questionamento que recorrentemente me é dirigido nas aulas que ministro: pode-se impetrar mandado de segurança diante de decisão interlocutória não agravável? Em regra, a resposta será negativa, uma vez que tal decisão poderá ser contrastada no âmbito do recurso de apelação (art. 1.009, § 1º, do CPC/2015), sendo certo que o art. 5º, II, da Lei 12.106/2009 (Lei do Mandado de Segurança)[6] não permite sua utilização nas hipóteses em que exista previsão legal de cabimento de recurso com efeito suspensivo (e este é justamente o caso da apelação).
Acontece que o recurso de apelação só terá cabimento ao final do procedimento em primeiro grau de jurisdição, gerando, não raramente, uma longa espera. Por isso é que, excepcionalmente, entendo que o mandamus haverá de ser admitido e processado para contrastar decisões interlocutórias teratológicas ou diante de situações de urgência.
Trocaremos, então, recursos de agravo de instrumento por mandados de segurança. E os tribunais continuarão entupidos de trabalho.[7]
Por tudo que se expôs, resta a conclusão de que o rol do art. 1.015 do CPC/2015 é taxativo, mas não deveria sê-lo. O procedimento comum do CPC brasileiro não é concentrado e nele se proferem diversas decisões interlocutórias. Não temos escolha, senão assumir que todas, sem exceção, devem ser passíveis de recorribilidade imediata. Esta realidade, com todo respeito aos que pensam de forma diversa, é inafastável.
Notas e Referências:
[1] Tive a oportunidade de me deter longamente sobre as questões históricas e os rumos que deveriam ser tomados pelo recurso de agravo em outro artigo publicado. Fica aqui meu convite de leitura àqueles que desejarem compreender um pouco melhor tais questões. Consultar: DONOSO, Denis. Recorribilidade das decisões interlocutórias de primeiro grau: o agravo em perspectiva. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, v. 127, p. 09-25, 2013.
[2] A única exceção – se é que assim se pode rotular o caso – está no § 3º do art. 1.009 do CPC/2015: “O disposto no caput deste artigo aplica-se mesmo quando as questões mencionadas no art. 1.015 integrarem capítulo da sentença.” Isto é, se uma das questões aludidas no art. 1.015 do CPC/2015 estiver topograficamente dentro da sentença, o caso será de apelação. Isto porque, na verdade, tem-se uma sentença (embora a sentença contenha matérias que deveriam ser veiculadas em decisão interlocutória), e contra sentença cabe apelação (art. 1.009, caput, do CPC/2015).
[3] A análise de cada uma das hipóteses expressamente contempladas no art. 1.015 do CPC/2015, por si só, rende interessantes discussões práticas. Mas, em razão da proposta de brevidade deste escrito, tais considerações serão objeto de debates em outras oportunidades.
[4] É curioso notar, aliás, que a opinião pública em geral “adotou” o “excesso de recursos” como o vilão que atenta contra a celeridade processual. Deixo algumas indagações aos meus leitores: qual recurso está “sobrando” no sistema recursal cível brasileiro? Como se pode apontar os recursos como entraves à Justiça se todos eles (com exceção da apelação) não são dotados de efeito suspensivo, podendo a decisão ser objeto de cumprimento provisório imediatamente? Encarem tais questionamento como uma simples provocação ou um convite à reflexão processual. O senso comum não raramente erra!
[5] KAUFFMAN, André Gustavo Salvador. Honorários sucumbenciais e direito intertemporal, segundo o STJ. Mais coerência, por favor. Disponível em http://emporiododireito.com.br/honorarios-sucumbenciais-e-direito-intertemporal-segundo-o-stj-mais-coerencia-por-favor-por-andre-gustavo-salvador-kauffman/. Acesso em 21 de setembro de 2016.
[6] Art. 5º. Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: (...) II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo.
[7] Não seria mais fácil julgar um agravo de instrumento do que um mandado de segurança?
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