1. Introdução
Recentemente foi promulgada a Lei 13.676 de 11 de junho de 2018 que alterou a redação do art. 16 da Lei 12.016/091 para permitir a defesa oral quando de pedido de liminar nas ações constitucionais de mandado de segurança de competência originária dos tribunais. Trata-se de uma inovação legislativa que, muito provavelmente, promoverá mudanças na jurisprudência até então dominante que negava a possibilidade.2
A fim de contribuir com o debate que se inicia diante da novatio legis, eis que propomos uma indagação: seria possível sustentação oral pelos impetrantes em pedido de medida liminar em habeas corpus? Para responde-la, necessário, pois, compreender algumas implicações teóricas e práticas do referido dispositivo no âmbito do procedimento especial do mandado de segurança e habeas corpus.
2. Aplicação prática e necessidade de interpretação sistemática do art. 16,
caput, diante da nova redação.
Do ponto de vista prático, temos que tal dispositivo não pode ser aplicado isoladamente, isto é, através de mera interpretação literal, uma vez que dificilmente há sessão de julgamento para apreciação de pedido de liminar em mandado de segurança. Em verdade, o pedido de liminar em procedimentos que tramitam perante órgãos jurisdicionais colegiados busca, na maioria das vezes, uma decisão monocrática, motivo pelo qual boa parte dos regimentos internos atribuem competência para o relator decidir sobre tais pleitos.
A concessão de medida liminar por meio de decisão monocrática é providência totalmente lógica, pois é da natureza jurídica do instituto a necessidade de um provimento célere, razão pela qual seus pressupostos sãos os das medidas cautelares em geral (fumus boni juris e periculum in mora), cuja urgência impede o aguardo do julgamento do mérito da ação pelo órgão colegiado. Contudo, a característica marcante desta medida, que demonstra sua imbricação com uma situação fática de urgência, é o fato de ser concedida inaudita altera pars.
Ocorre que um apego apressado à interpretação meramente literal do art. 16, caput, da Lei 12.016/2009 poderia levar à inusitada situação na qual o tribunal competente, no afã de garantir o exercício do direito de defesa oral em sede de pedido liminar, apenas viesse a conceder providências liminares quando das sessões de
1 Art. 16, caput: “Nos casos de competência originária dos tribunais, caberá ao relator a instrução do
processo, sendo assegurada a defesa oral na sessão do julgamento do mérito ou do pedido liminar.”
2 Nesse sentido: STF - MS 34.127 MC/DF, 2016.
julgamento dos seus órgãos fracionários, ainda que presentes todos os requisitos e pressupostos da medida, o que tornaria sem efetividade o próprio instituto.
Logo, para que referida disposição não seja vista como uma letra morta, urge a interpretação sistemática, o que nos faz concluir que em apenas 2 (duas) situações haveria a aplicabilidade do art. 16, caput, da Lei 12.016/2009: (a) em julgamento de recurso de agravo interno (regimental) em face de decisão monocrática que nega o pedido de liminar, isto em interpretação sistemática com o art. 1021, caput, do CPC c/c parágrafo único do art. 16 da Lei 12.076/2009; (b) quando o relator resolve submeter a análise do pedido de liminar ao órgão colegiado, não exercendo sua competência para prolação de decisões monocráticas ad referendum do órgão colegiado que integra.
3. Da aplicação analógica do art. 16, caput, ao procedimento especial do Habeas Corpus.
O CPP não prevê a possibilidade de decisão liminar no âmbito do procedimento de habeas corpus. O RISTF não prevê a possibilidade de liminar, senão apenas a possibilidade do ministro relator desde logo conceder ou denegar a ordem diante da jurisprudência consolidada do tribunal (art. 192, caput). O RISTJ em igual sentido, senão o artigo 210 que possibilita o indeferimento da liminar no caso de pedido manifestamente incabível ou manifesta incompetência do Tribunal. No âmbito da Justiça Alagoana, no entanto, o RITJAL prevê expressamente a possibilidade no art. 191, III, de concessão de medida liminar em habeas corpus pelo relator ou Tribunal.
Enfim, a possibilidade de concessão de liminar em sede de ação de habeas corpus não encontra guarida na legislação ordinária3, senão em eventuais regimentos internos, os quais, por óbvio, não são leis em sentido estrito, mas diplomas normativos destinados à definição de competência e funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos dos tribunais, não servindo, destarte, de base normativa para eventual pedido de liminar em habeas corpus no âmbito do sistema processual penal.4
Contudo, a concessão de medida liminar em habeas corpus é uma realidade. A rigor, já é da praxe forense o manejo da ação mandamental cumulada com pedido de liminar, ainda que eventualmente dissociado dos seus pressupostos, bem como a concessão de inúmeras decisões monocráticas concessivas de liminar, mormente urgência da situação e evidência do constrangimento ilegal a qual se sujeita o paciente
3 Em sentido semelhante: GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 426.
4 No ponto, é necessário fazer referência ao entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto a natureza jurídica do seu regimento interno. Para a Suprema Corte brasileira, o RISTF possui natureza jurídica equiparável à lei ordinária, considerando que quando editado vigia Constituição que atribuía ao STF competência legislativa sobre matérias processuais atinentes ao processo e julgamentos de processos de sua competência: “(...) O Supremo Tribunal Federal, sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”), dispunha de competência normativa primária para, em sede meramente regimental, formular normas de direito processual concernentes ao processo e ao julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal. Com a superveniência da Constituição de 1988, operou-se a recepção de tais preceitos regimentais, que passaram a ostentar força e eficácia de norma legal (RTJ 147/1010 – RTJ 151/278), revestindo-se, por isso mesmo, de plena legitimidade constitucional a exigência de pertinente confronto analítico entre os acórdãos postos em cotejo (RISTF, art. 331). (...)” (AI 717226 AgR-EDv-AgR, Relator Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/2013, publicado em 12-12-2013).
O primeiro precedente que admitiu a aplicação da medida liminar em habeas corpus deu-se no Superior Tribunal Militar. Trata-se do HC 27.200 da relatoria do Ministro Almirante de Esquadra José Espindola, cujo objeto era o pleito trancamento de um inquérito policial-militar.5 Porém, o leanding case que influenciou a jurisprudência é da lavra do Supremo Tribunal Federal. Trata-se do Habeas Corpus nº
42.296 de 1964, que que tinha como impetrantes os grandes advogados Heráclito Sobral Pinto e José Crispim Borges no famoso caso Mauro Borges.6
Então, se não há previsão em lei ordinária para concessão de liminar em sede de habeas corpus, qual seria o fundamento jurídico para que a jurisprudência pudesse admiti-la?
A rigor, a jurisprudência pátria reconhece a possibilidade de concessão de medida liminar em habeas corpus por analogia ao instituto da medida liminar previsto na lei do mandado de segurança, mormente a similitude teleológica das ações constitucionais. Por todos, veja-se, e.g., GRINOVER et al:
Assim, embora não prevista em lei para o remédio aqui analisado, a concessão de liminar vem sendo admitida pela jurisprudência, em caráter excepcional, sempre que presentes os requisitos das medidas cautelares em geral (fumus boni juris e periculum in mora), por analogia com a previsão existente ao mandado de segurança.7
Nesse diapasão, desde o nascimento da construção jurisprudencial em que se admitiu a concessão de medida liminar em habeas corpus é reconhecido que o regime jurídico aplicável ao remédio heroico é aquele aplicável ao mandado de segurança.
5 RECONDO, 2018, p. 65-66.
6 O pano de fundo do HC nº 42.296, que tinha como signatário os grandes advogados Sobral Pinto e José Crispim Borges, referia-se à ameaça de deposição e prisão que sofria o então governador do Estado de Goiás Mauro Borges. Embora o político tivesse sido defensor do golpe de 1964, anos antes havia, paradoxalmente, defendido a posse do Vice-Presidente João Goulart nos eventos relacionados com a renúncia do presidente Jânio Quadros, razão pela qual não gozava de simpatia com o regime militar recém instaurado. Em determinado momento Mauro Borges passou a ser alvo de inquérito policial- militar e de escancaradas ameaças de constrangimento pela força das armas. Felipe Recondo relata que: “(...) Auxiliares do governo de Goiás foram presos, tiveram direitos políticos cassados. O governador foi submetido a interrogatório no dia 6 de novembro. E o general Kruel falava abertamente na possibilidade de mandar prender Mauro Borges preventivamente. O clima em Goiânia era, portanto, de ‘tensão nervosa e calada’ com a ‘guerra psicológica’ do coronel Danilo da Cunha, como registrado pelo Correio da Manhã de 8 de novembro. A prisão era iminente. Não restou outra opção a Mauro Borges senão buscar refúgio no STF. (...)” (RECONDO, 2018, p. 62-63). Ocorre que o procedimento normal do Habeas Corpus, ainda que vocacionada à celeridade, poderia perder seu objeto considerando que os militares já marchavam em direção à Goiás para depor e prender o Governador. Este até tentou montar uma resistência armada, mas “(...) obviamente Mauro Borges não conseguiria resistir à ação dos militares. Cada soldado militar escalado para a residência dispunha de apenas quinze cartuchos para disparar. Ou todos se renderiam, ou haveriam mortos e feridos. As esperanças eram remotas. O tempo era curto. Sobral Pinto foi ao Supremo no mesmo dia em que o habeas corpus foi protocolado para levar argumentos ao relator do caso. O advogado pedia apenas que o caso fosse levado a julgamento o mais rápido possível, em razão da ameaça iminente a Borges. Como os fatos eram urgentes, o ministro Gonçalves de Oliveira deixou no ar uma pergunta-sugestão: por que o advogado não pedira uma liminar? Afinal de contas, já havia precedente do STM de concessão de liminar em habeas corpus.” (op. cit., p. 65). Em sentido semelhante: GRINOVER; et al; 2009, p. 292-293.
7 GRINOVER; et al; 2009, p. 292-293.
Recorrendo-se ao paradigma do HC nº 42.296, observa-se que voto do ministro relator Gonçalves de Oliveira não deixava dúvida no ponto:
(...) O habeas corpus, do ponto de vista da sua eficácia, é irmão gêmeo do mandado de segurança. Quando este último foi instituído na Carta Política de 1934, dispôs o art. 113, § 33, que o seu ‘processo será o mesmo do habeas corpus.’ O processo, como se vê, é o mesmo. A Constituição de 1946 trata do habeas corpus e do mandado de segurança num dispositivo junto ao outro, os parágrafos 23 e 24. Se o processo é o mesmo, e se no mandado de segurança pode o relator conceder a liminar até em casos de interesses patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual ou as liberdades públicas, a liminar, no habeas corpus preventivo, não pudesse ser concedida, principalmente, quando o fato ocorre em dia de sábado, feriado forense, em que o Tribunal, nem no dia seguinte, abre as suas portas. (...)8
De fato, o habeas corpus e o mandado de segurança perseguem um mesmo fim, isto é, o combate ao abuso de poder e à ilegalidade. A diferença reside no objeto: grosso modo, enquanto o mandado de segurança tutela um direito líquido e certo ameaçado ou violado por uma ilegalidade ou abuso de poder de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, o habeas corpus visa tutelar a ameaça ou a violência ou coação à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Voltando ao caso da alteração promovida pela Lei 13.676/2018 no art. 16, caput, da Lei 12.016, com respeito as opiniões em contrário, parece claro que o deve ser aplicado ao procedimento do habeas corpus o direito de defesa oral quando de julgamento de pleito de medida cautelar, já que a norma jurídica aplicável ao caso também é a do mandado de segurança, aplicada por analogia, como de há muito informa a jurisprudência pátria.
No caso é imperioso o recurso à interpretação sistemática, teleológica e histórica para concluir que é possível o uso da analogia, pois a razão que justifica a concessão de medida liminar no mandado de segurança e, agora, o direito de sustentação oral do pedido, é a mesma, seja do ponto de visto histórico, teleológico ou sistemático.
Parafraseando, com o devido respeito, a ratio do voto do eminente ministro Gonçalves de Oliveira, relator do HC nº 42.296, adaptando-a a realidade inaugurada pela novatio legis, ousamos arriscar uma nova assertiva: se até no mandado de segurança pode o impetrante realizar sustentação oral em sessão de julgamento de pedido de liminar, cujos interesses predominantes são patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual, a possibilidade de sustentação oral liminar no procedimento de habeas corpus não venha a ser facultada.
Em arremate, também no caso das sustentações orais em pedido de liminar vale o raciocino ventilado alhures, isto é, o artigo 16, caput, da Lei 12.016/2009 aplica- se apenas: (a) em julgamento de recurso de agravo interno (regimental) em face de decisão monocrática que nega o pedido de liminar; (b) quando o relator resolve submeter a análise do pedido de liminar ao órgão colegiado.
4. Conclusões
8 Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/8/art20160808-16.pdf > Acesso em 05.07.2018.
- O art. 16, caput, da Lei 12.016/2009 foi alterado pelo art. 1º da Lei 13.676/18, passando a contar com nova redação, assegurando expressamente aos impetrantes o direito de sustentação oral em pedido de liminar em mandado de segurança, o que deverá provocar mudança no entendimento jurisprudencial
- Do ponto de vista prático, partindo de uma interpretação sistemática do art. 16, caput, da Lei 12.016/2009 com o art. 1021, caput, do CPC c/c parágrafo único do próprio art. 16 da Lei 12.016/2009 e eventuais normas regimentais, apenas será possível a sustentação oral quando: (a) no julgamento de recurso de agravo interno (regimental) em face de decisão monocrática que nega o pedido de liminar; (b) o relator resolve submeter a análise do pedido de liminar ao órgão
- Diante da interpretação sistemática, teleológica e histórica é possível defender o uso da analogia para permitir a aplicação do artigo 16, caput, da Lei 12.016/09 ao procedimento do habeas corpus, motivo pelo qual, respondendo a indagação que anima este ensaio, é direito do impetrante de habeas corpus realizar defesa oral quando: (a) em julgamento de recurso de agravo interno (regimental) em face de decisão monocrática que nega o pedido de liminar; (b) o relator resolve submeter a análise do pedido de liminar ao órgão
Notas e Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 42.296. Relator Min. Gonçalves de Oliveira. In: Há 52 anos STM concedeu primeira liminar em HC. Acesso: www.migalhas.com.br em 06 de jul. de 2018: Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI243564,61044- Ha+52+anos+STM+concedeu+primeira+liminar+em+HC > e < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/8/art20160808-16.pdf>
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GRINOVER, Ada Pelegrini; GOMES FILHO; Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
RECONDO, Felipe. Tanques e Togas: O STF e a Ditadura Militar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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