BREVES INQUIETAÇÕES SOBRE OS PEQUENOS EXPOSTOS ÀS TELAS E À PUBLICIDADE QUE AS ACOMPANHA  

04/09/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A pandemia trouxe inúmeros desafios para a sociedade em geral que se viu enclausurada em suas casas e com suas rotinas viradas de cabeça para baixo. Dentre eles, destaca-se, em especial, os dilemas enfrentados pelos pais que passaram a não ter mais o compartilhamento dos cuidados de seus filhos, antes divido com a escola e mediante o recurso a diversas atividades extracurriculares, ao menos, entre aqueles pais que podiam pagar por elas. Nos dias hodiernos, muitos pais estão passando o dia inteiro com os pequenos, quiçá, muitos nunca tinham tido experiências tão prologadas com sua prole. Para enfrentar esse desafio, em prol de seguir entregando resultados no trabalho e dando conta das atividades domésticas, muitos guardiões têm permitido que as crianças fiquem mais expostas às telas. Esse aumento de exposição preocupa, principalmente, quando se fala de crianças na primeira infância (entre 0 e 6 anos) em razão de ficarem ainda mais vulneráveis frente aos dispositivos, estando também expostas à publicidade veiculadas nas mais diversas mídias.

Antes mesmo da pandemia, as crianças entre 4 e 11 anos ficavam em média 5 horas e 35 minutos em frente à televisão por dia, conforme estudo realizado pelo Ibope[1]. Esse tempo que já se mostrava deveras expressivo, tem indícios de ter aumentado em consequência da nova realidade delineada, como demonstra uma breve pesquisa realizada por Daniela Teixeira com 1.657 pais de crianças de até 12 anos, na qual a maioria dos pais afirmou aumento da exposição dos filhos às telas em razão do isolamento social, por meio do acesso à televisão, seguida pelo celular, tablet e videogame. Ainda, o estudo demostrou que grande parte dos genitores, cerca de 80%, se encontram insatisfeitos com o tempo de tela dos filhos, ao mesmo tempo, a maioria deles afirmam utilizar os dispositivos como forma de conseguirem realizar seus trabalhos e suas tarefas da casa[2].

Essa nova realidade inquieta não apenas aos pais, mas a todos que se preocupam com o futuro das crianças e as consequências da pandemia para o desenvolvimento dos pequenos, eis que ao analisar as recomendações da Organização Mundial da Saúde em prol de diminuir os índices de sedentarismo e obesidade, percebe-se um alerta para que crianças de até dois anos não sejam expostas às telas e as com até os cinco anos sejam expostas no máximo sessenta minutos por dia[3]. Tal indicação, na maioria dos casos, precisou ser relativizada para manter o acompanhamento das aulas, o contato com os familiares e como forma de auxiliar os pais com a manutenção de seus compromissos.

Outro indicativo do aumento da exposição das crianças às telas são os dados da TV e do Youtube. Um estudo realizado pela Ancine demostrou um acréscimo de 22% da audiência da TV paga com o isolamento social, sendo uma expansão de 9% nos canais infantis[4]. Dentre eles, o Cartoon Network foi o mais assistido entre as crianças de 4 a 11 anos no primeiro semestre de 2020[5]. O crescimento da audiência infantil é percebido de forma mais expressiva no Youtube, no caso do canal da Galinha Pintadinha, a audiência cresceu 50% desde o mês de março se comparado ao período anterior; outro canal Maria Clara e JP teve aumento de 70% da audiência na pandemia, esses youtubers mirins possuem atualmente, em média, 17 milhões de visualizações por dia; e o canal da Turma da Mônica teve acréscimo de 75% em suas visualizações[6].

Com efeito, a TV, assim como outras telas, transforma-se em verdadeiras “babás virtuais”, até mesmo para os pequenos, os quais deveriam ser ainda mais protegidos e cuidados[7]. A preocupação aqui posta não reside apenas no tempo de tela, mas também na exposição das crianças à publicidade que acompanha os desenhos infantis, os filmes, os vídeos e demais programas assistidos por elas. Essa comunicação mercadológica se apropria da ingenuidade e da credulidade das crianças[8], estudiosos do tema como Ângela Frota[9] e Bejamin R. Barber[10] apontam que os infantes mais novos não conseguem distinguir publicidade de outros programas a ele dirigidos.

Assim, a publicidade “educa” a criança para o consumo[11], dedicando-se os marqueteiros a capacitar os pequenos, eis que o poder de compra não é mais monopólio dos genitores[12]. “Na era da criança hiperconsumidora”, elas têm voz na família, influenciam na compra dos pais e, até mesmo, dispõem de uma parcela de poder econômico[13]. As consequências dessa comunicação mercadológica direcionada às crianças são diversas, dentre elas: tristeza por não possuírem determinado produto ou não usufruírem de determinado serviço; consumismo excessivo; influência na formação dos seus valores[14]; prejuízo ao desenvolvimento sadio e feliz; obesidade infantil[15]; estresse familiar; e diminuição das brincadeiras[16].

Com essas breves inquietações, “[vale] a pena refletir sobre o fato de que viver nas telas exclui as crianças do brincar simples e saudável, que alimenta os relacionamentos e faz crescer. O tal do acesso fecha as crianças dentro de uma visão pasteurizada do mundo, o mundo que passa nas telas”. Essa reflexão é trazida no estudo “O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma” e traduz com clareza o dilema posto em tela, ainda acrescenta que embora as crianças carentes tenham menos acesso, elas podem sair ganhando em decorrência de dominarem outras brincadeiras, como pega-pega, amarelinha, brincadeiras de roda, as quais são mais adequadas para o desenvolvimento infantil[17].

O brincar é essencial para o desenvolvimento das crianças, mostrando-se parte fundamental de suas vidas[18]. Por meio desse ato, os pequenos comunicam-se consigo e com o mundo, sendo a expressão de seus sentimentos e não apenas diversão[19]. O brincar, aliás, é aconselhado como forma de apoio às crianças durante a pandemia, conforme estudo do Centro de Desenvolvimento da Criança de Harvard, mesmo antes da fala, porque essas interações intensas auxiliam na formação do cérebro e na construção da resiliência, o que é fundamental durante o surto da Covid-19[20]. Para o Núcleo de Ciência pela Infância (NCPI), o ato de brincar pode ser feito em qualquer lugar, desde passatempos até jogos de tabuleiro, assim restam fortalecidos os laços da família, auxiliando dessa forma as crianças a lidarem com a situação ocasionada pelo coronavírus[21]

As reflexões e inquietações expostas não buscam fazer um juízo de valor, em razão de haver uma compreensão do desafio e sobrecarga enfrentada pelos pais em conciliar as rotinas de trabalho e as demandas dos filhos na pandemia, mas alertar para o cuidado das crianças quando estão expostas às telas, principalmente na primeira infância, seja por perderem vivências essenciais para seu desenvolvimento, seja pela publicidade de um Mercado onipresente que acompanha os programas a elas direcionadas. Cuidado e alerta que não cabe apenas aos pais, mas a sociedade em geral, eis que é dever de todos o cuidado com esses seres em formação, como assegura o artigo 227, da Constituição Federal. Assim, destaca-se a importância de as crianças brincarem muito para se desenvolverem em plenitude e superarem de forma menos dolorida este momento que todos estamos vivendo.

 

Notas e Referências

[1] TEMPO de crianças e adolescentes assistindo TV aumenta em 10 anos. In: CRIANÇA e Consumo. [S.l.], 2015. Disponível em: https://criancaeconsumo.org.br/noticias/tempo-diario-de-criancas-e-adolescentes-em-frente-a-tv-aumenta-em-10-anos/. Acesso em: 25 ago. 2020.

[2] TEIXEIRA, Daniela. Você no home office e seu filho grudado nas telas, né?. LinkedIn: Daniela Teixeira. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/voc%25C3%25AA-home-office-e-seu-filho-grudado-nas-telas-n%25C3%25A9-teixeira-ma/?trackingId=tSYkjoqTQuOoxD%2FZT61Dmg%3D%3D. Acesso em: 26 ago. 2020.

[3] WORLD HEALTH ORGANIZATION. GUIDELINES ON PHYSICAL ACTIVITY, SEDENTARY BEHAVIOUR AND SLEEP: for children under 5 years of age. 2019. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/311664/9789241550536-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 25 ago. 2020.

[4] ESTUDO compilado pela Ancine aponta aumento de audiência na TV Paga durante a pandemia. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/estudo-compilado-pela-ancine-aponta-aumento-de-audi-ncia-na-tv-paga-durante. Acesso em: 26 ago. 2020.

[5] CARTOON Network é líder de audiência entre crianças no primeiro semestre de 2020. Disponível em: https://telaviva.com.br/03/08/2020/cartoon-network-e-lider-de-audiencia-entre-criancas-no-primeiro-semestre-de-2020/. Acesso em: 26 ago. 2020.

[6] PERRIN, Fernanda. Canais infantis têm boom de audiência no YouTube, mas perdem faturamento. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/canais-infantis-tem-boom-de-audiencia-no-youtube-mas-perdem-faturamento.shtml. Acesso em: 26 ago. 2020.

[7] HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curitiba: Juruá, 2012. p. 148.

[8] LA TAILLE, Yves de. A publicidade dirigida ao público infantil: considerações psicológicas. In: Conselho Federal de Psicologia. Contribuição da Psicologia para o fim da publicidade dirigida à criança. Brasília, out. 2008. Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/contribuio-da-psicologia-para-o-fim-da-publicidade-dirigida-criana/. Acesso em: 25 ago. 2020.

[9] Como expôs Ângela, “Em nosso entender a publicidade dirigida a menores deve ser totalmente proibida, em qualquer mídia até os 13 ou 14 anos, isto porque as crianças até 7 anos – alguns pesquisadores entendem que isso se estende até os 10 anos – não distinguem a publicidade de qualquer outro programa que é dirigido a eles”. FROTA, Ângela Maria Marini Simão Portugal. Publicidade infatojuvenil: deve ser proibida? Revista Procon, São Paulo, São Paulo, n. 23, 24 nov. 2012. p.2. Entrevista concedida a Bernadete Aquino. Disponível em: <http://www.procon.sp.gov.br/pdf/revista_procon_23.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2020.

[10] Nas palavras do autor: “[...] crianças mais novas não conseguem distinguir [publicidade] de narrativa de histórias, ou fantasias de fato”. BARBER, Benjamin R. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Tradução de Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 45.

[11] OLMOS, Ana. Publicidade dirigida à criança: violência invisível contra a infância. Revista Construção Psicopedagógica, São Paulo, v. 19, n. 19, 2011

[12] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumismo. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[13] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumismo. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 19 e 20.

[14] HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curitiba: Juruá, 2012.

[15] PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua (in)conformidade com o direito brasileiro. 2017. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Lasalle, Canoas, 2017

[16] HENRIQUES, Isabella. O capitalismo, a sociedade de consumo e a importância da restrição da publicidade e da comunicação mercadológica voltadas ao público infantil. In: PASQUALOTTO, Adalberto; ALVAREZ, Ana Maria Montiel (org.). Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[17] TUBELLI, Paula; FERNANDES, Priscila (coord.). O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma: Participação infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância. São Paulo, 2010. Disponível em: http://agendaprimeirainfancia.org.br/arquivos/Oq_a_cca_nao_pode_ficar_sem.pdf. Acesso em: 25 ago. 2020. p. 45

[18] WINNICOTT, Donald W. A criança e o seu mundo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

[19] HEINKEL, Dagma. O brincar e a aprendizagem na infância. Ijuí: Editora Unijuí, 2003.

[20] CENTER OF THE DEVELOPING CHILD. Como apoiar as crianças (e a si mesmo) durante o surto da COVID-19. 2020. Disponível em: https://ncpi.org.br/wp-content/uploads/2020/05/COVID-19_for_families_PT.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020.

[21] MANITTO, Alicia Matijaevich [et al.]. Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil. São Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidiga, 2020. Tradução de Melissa Harkin. Disponível em: https://ncpi.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Working-Paper-Repercussoes-da-pandemia-no-desenvolvimento-infantil-3.pdf. Acesso em: 24 ago. 2020.

 

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