Por oportunidade do lançamento da obra A Resistência ao Golpe de 2016[1], na Faculdade de Direito da UFMG, em 22 de junho de 2016, foram criticados, por diversos participantes, o envio pelo então governo provisório das Medidas Provisórias (n.º 726 e n.º 727),[2] que subvertem a própria administração pública federal, o encaminhamento para votação de proposta de emenda à Constituição visando à desvinculação de receitas[3] e, por fim, a proposta de suspensão por 20 anos da Constituição em matéria orçamentária, por meio do estabelecimento de um “novo regime fiscal” (PEC n. 241[4]).
Naquela oportunidade, foi dito que o estabelecimento do chamado teto previsto pela PEC n. 241[5] pode inviabilizar a educação e a saúde públicas, a assistência e a seguridade social[6], bem como os serviços públicos em geral. E que medidas como essas podem, na prática, inviabilizar o SUS, subverter as políticas de assistência social até então em curso e comprometer a educação no País, entre outros serviços públicos.
Não deveria ser preciso dizer que a inviabilização do SUS coloca em risco a vida de milhões de pessoas. Cabe lembrar que o Estado brasileiro tem o dever de garantir saúde e educação como direitos fundamentais (arts. 6º, 196 e 205 da Constituição), assim como tem por objetivo fundamental reduzir desigualdades, erradicar a pobreza, visando ao bem estar de todos, sem preconceitos ou qualquer forma de discriminação (art. 3.º, III e IV da Constituição). E que sacrificar gastos públicos para pagar serviços da dívida e compromissos com os bancos, em detrimento ou prejuízo da continuidade dos serviços públicos, comprometerá a própria capacidade do Estado brasileiro de fazer frente às políticas econômicas, sociais e culturais exigidas constitucionalmente para garantia dos direitos fundamentais.
Ora, tudo isso contraria não apenas os chamados “compromissos de campanha da proposta de governo vitoriosa nas urnas em 2014”, mas viola a própria Constituição da República.
A PEC n. 241 é, portanto, um ato desconstituinte. Se for aprovada e não houver o devido controle da inconstitucionalidade dela, a “Emenda constitucional” daí decorrente poderá representar, em verdade, uma nova carta política, ilegítima e contrária aos compromissos sociais, econômicos e culturais do Estado Democrático de Direito. Institucionalmente, ela pode significar não apenas a suspensão, mas sim a revogação do núcleo normativo, administrativo-financeiro e orçamentário do Estado brasileiro tal como configurado pela Constituição de 1988, já que pretende excepcionar as normas constitucionais por 20 anos.
E o que isso, enfim, significa? Coloca-se, pois, atualmente, em risco todas as conquistas sociais que apesar, de tudo, a sociedade brasileira conseguiu alcançar, como é o caso do SUS e da educação pública (sem falar até mesmo nos subsídios estatais à educação prestada pela iniciativa privada). Inviabilizar o SUS é colocar em risco e perigo a vida milhões de pessoas. A PEC n 241 expressa, com isso, uma política governamental que privilegia os supostos compromissos do Estado para com o sistema financeiro, ainda que em detrimento da continuidade dos serviços públicos e em prejuízo da garantia de direitos fundamentais da população brasileira: aquilo que na literatura jurídica e política é denunciado como sendo, de fato, não mais um regime constitucional-democrático, mas sim um “estado de exceção econômico”[7].
Notas e Referências:
[1] Proner, Carol; Cittadino, Gisele; Tenenbaum, Marcio e Ramos Filho, Wilson. A Resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016. Ver http://www.canal6editora.com.br/a-resistencia-ao-golpe-de-2016.html# .
[2] Disponíveis em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Mpv/mpv726.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Mpv/mpv727.htm. Sobre o papel do Vice-Presidente durante o processo de impeachment, ver http://www.conjur.com.br/2016-mai-19/papel-vice-presidente-durante-processo-impeachment.
[3] Ver http://www.revistaforum.com.br/2016/06/02/governo-temer-aprova-desvinculacao-de-receitas-da-uniao-e-gasto-de-58-bilhoes/ .E http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/06/1779571-camara-aprova-prorrogacao-da-dru-em-2-turno-e-projeto-vai-ao-senado.shtml.
[4] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351 .
[5] Sobre as inconstitucionalidades do art. 104 da PEC n 241, ver as reflexões de Scaff, Fernando Facury. O Plano Temer e a ausência de teto para arrecadação. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jul-12/contas-vista-plano-temer-ausencia-detetopara-arrecadacao.
[6] Para uma análise dos impactos extremamente negativos do “novo regime fiscal” para o financiamento do SUS e para a garantia do direito à saúde, bem como para a política de assistência social, ver as notas técnicas publicadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, disponíveis em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf e http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_27_disoc.pdf
[7] Sobre o tema, na literatura jurídica, ver p. ex. Bercovici, Gilberto. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. Disponível em http://ojs.unifor.br/index.php/rpen/article/view/780/1640. Também a entrevista de Bercovici disponível em http://www.sul21.com.br/jornal/se-depender-da-sociedade-todo-mundo-sera-linchado-em-praca-publica-vai-valer-para-juiz-tambem/. E Clark, Giovani; Mattedi, Milton Carlos Rocha. Estado de exceção econômica. Disponível em http://files.fbde.webnode.com.br/200000056-eb3eeec380/A%20Exce%C3%A7%C3%A3o%20Econ%C3%B4mica%20do%20Estado.pdf.
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