Breves considerações acerca da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin

19/07/2016

Por Letícia Bürgel – 19/07/2016

O conceito de imputação objetiva foi trazido, pela primeira vez, para as ciências jurídicas pelo civilista alemão LARENZ, em 1927, em sua tese de doutoramento intitulada “A teoria da imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva” (Hegels Zurechnungslehre und der Begriff der objektiven Zurechnung).[1] LARENZ baseou sua discussão na teoria da imputação dos estudos do HEGEL, segundo o qual somente seria possível a imputação diante de um evento naturalístico realizado pelo próprio autor do fato.[2]

Para LARENZ, a possibilidade de previsão do resultado deve ser analisada através de um ponto de vista objetivo, levando-se em consideração não apenas o autor em concreto, mas sim a pessoa, o ser racional, que deve estar em condições de prever um determinado acontecimento.[3] Nessa concepção, a imputação nada mais é do que uma tentativa de delimitação entre fatos próprios do agente e acontecimentos puramente acidentais. O resultado não se mostra apenas como uma sucessão de causa e efeitos, mas sim como um todo, cuja configuração (realização) está a cargo do agente, podendo ser a ele imputado.[4]

Contudo, é em 1930 que o conceito de imputação objetiva é trazido para o âmbito do Direito Penal pelo jurista chamado HONIG, em sua obra “Causalidade e imputação objetiva” (Kausalität und objektive Zurechnung). Segundo a concepção de HONIG, o direito não pode considerar suficiente para a imputação do resultado à ação a apuração do nexo causal, é necessário, para além disso, a apuração de um nexo normativo, o qual deve ser construído tendo por base critérios fornecidos pelo ordenamento jurídico. Assim, não se trata apenas de aferir a causalidade, mas sim de valorá-la.[5]

Em 1970, ROXIN elabora uma teoria geral da imputação, tendo como base o princípio do risco. Ele fundamenta a sua teoria em quatro critérios basilares, na diminuição do risco, nos riscos juridicamente irrelevantes, no aumento do risco, e no fim de proteção da norma.[6]

Assim, segundo ROXIN, o resultado somente será imputável ao agente quando “sua conduta tiver criado um perigo para um bem jurídico não coberto pelo risco permitido, e esse perigo se realizar em um resultado concreto que esteja dentro do âmbito da norma”[7] Para que possamos imputar o resultado, deve-se analisar, primeiramente, a existência de causalidade natural; e, em seguida, caso esteja presente o vínculo causal, parte-se para um segundo momento, no qual utilizar-se-á critérios eminentemente normativos.[8][9]

No entanto, antes de verificarmos se o risco é proibido ou permitido, devemos saber se ele realmente existe, e se, de fato, foi criado pelo agente.[10] A doutrina utiliza como critério a prognose póstuma objetiva, um juízo formulado por uma perspectiva ex ante, levando em conta apenas dados conhecidos no momento da prática da ação, por um observador objetivo, um homem prudente – e não um homem médio-, pertencente ao círculo social que se encontra o autor. Essa prognose é póstuma, pois é realizada pelo juiz após a prática do fato.[11]

Constatada, então, a criação, ou aumento, de um risco não permitido, deve-se analisar se este risco se realizou em um resultado concreto. Essa determinação constitui uma tarefa de alta dificuldade e, em certos casos – especialmente nos casos em que há concurso de riscos -, de tratamento que continua a ser tão duvidoso que, quanto a ele, se mantêm sensivelmente divididas a doutrina e jurisprudência.[12] Tomemos como exemplo o “caso do pêlo de cabra”.[13] Neste caso, o perigo criado pelo autor não teve influência na produção do resultado em sua forma concreta, portanto, não deve o agente ser punido, pois o dever por ele violado não tinha utilidade alguma, de modo que se tivesse permanecido dentro do âmbito do risco permitido, o resultado teria ocorrido da mesma forma.[14]

Ocorre que, muitas vezes, apesar de o agente ter criado um risco não permitido, e esse risco ter se verificado em um resultado concreto, o evento lesivo não está coberto pelo fim de proteção da norma de cuidado, ou seja, a norma de cuidado está direcionada a acautelar fato ou objeto diverso do efetivamente lesado, de modo que, nesta hipótese, não haverá imputação.[15] Um caso que comumente se resolve com o critério do fim de proteção da norma é o do sujeito que dirige seu automóvel em excesso de velocidade e depois, quando volta a dirigir na velocidade permitida, vem a atropelar um pedestre que atravessava a rua sem tomar o devido cuidado. Nesse caso, se o motorista não tivesse ultrapassado a velocidade máxima permitida, ele não chegaria ao local do acidente no momento em que o pedestre atravessava a rua e, portanto, não o teria atropelado.[16]

Contudo, o resultado se encontra fora do fim de proteção da norma que define a velocidade máxima, pois essa objetiva evitar colisões enquanto se está na velocidade não permitida e não em momento posterior. Assim, não poderíamos proibir a ação de dirigir em excesso de velocidade com o propósito de evitar que uma pessoa que se encontre em um outro local seja atropelada, afinal, sob esse aspecto, a conduta sequer pode ser considerada criadora de um risco, pois tal ação não geraria uma possibilidade real de atropelar alguém em momento posterior.[17]

Dessa forma, se preenchidos todos os requisitos propostos por ROXIN – a criação de um risco não permitido, a verificação do risco em um resultado concreto, abrangido pelo âmbito da norma – poderemos falar em imputação do resultado. No entanto, caso não seja possível verificar a existência de um desses critérios, o resultado, de acordo com a concepção de ROXIN, não deverá ser imputado autor.


Notas e Referências:

[1] MARTINELLI, João Paulo Orsini. A teoria da imputação objetiva e o código penal brasileiro: ainda faz sentido a teoria das concausas. In: Direito Penal: aspectos jurídicos controvertidos. p. 209.

[2] ALMEIDA, Felipe Lima de. Causalidade e imputação no Direito Penal: análise crítica da moderna teoria da imputação objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. 1 ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013. p. 132.

[3] MARTINELLI, João Paulo Orsini. op. cit. p. 209.

[4] PRADO, Luiz Regis. A imputação objetiva no Direito Penal brasileiro. In: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, v. 3, Jul, 2005.

[5] ALMEIDA, Felipe Lima de. op. cit. p. 133s.

[6] Ibid. p. 141.

[7] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria Del delito.Madrid: Civitas, 1997.p.363s.

[8] D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.p.41.

[9] RIGHI afirma que a teoria da imputação objetiva foi explicada, em suas primeiras formulações, como um modelo que ‘antecipa’ juízos de antijuridicidade, ou seja, valorações normativas. O autor argumenta não ser possível resolver de outra forma os problemas que existem no juízo de adequação típica, pois não se encontravam soluções adequadas em uma sistemática tradicional, a qual delimita a subsunção ao sistema da equivalência das condições, utilizando como corretivos o dolo e o domínio do fato. (tradução nossa) (RIGHI, Esteban. Causalidad natual e imputación objetiva. In: Dogmatica y ley penal: libro homenaje a Enrique Bacigalupo. p. 789.)

[10] Para que fique claro ao leitor, faz-se necessário esclarecer que, da mesma forma que faz Roxin, utilizamos risco e perigo como sinônimos. Nesse sentido: GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.31. Sobre isso refere ZAFFARONI: “Cabe observar que não existe uma explicação do conceito de risco dentro dessa teoria, em geral, em todo o desenvolvimento de todas as teorias de imputação objetiva. Tomam como equivalentes risco e perigo e sempre são concebidos ex ante, sempre remitindo ao futuro, com o compromisso que isso importa para o princípio da lesividade, o que em ROXIN é menos evidente do que nos outros autores que desprezam a regra da realização do risco no resultado. Por outro lado, o risco (de risco, barco que encalha) nem sempre é considerado sinônimo de perigo. Na sociologia tem-se distinguido risco como um perigo que é calculado para diminuí-lo, e perigo, o que pode o não ser calculável. Dessa perspectiva, seria uma contradição afirmar que há aumento de risco: somente há aumento do perigo.” (tradução nossa) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Panorama de los Esfuerzos Teóricos para EstablecerCriterios de Imputación Objetiva. In: Estudos em homenagem ao prof. João Marcello de Araujo Junior. Rio de Janeiro :Lumen Juris. p. 202.

[11] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.34s.

[12] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Portugal: Coimbra Editora, 2007. p. 336.

[13] “O gerente de uma fábrica de pincéis entrega a suas trabalhadoras pêlos de cabra chineses, sem tomar as devidas medidas de desinfecção. Quatro trabalhadoras são infectadas pelo bacilo antrácico (Milzbrandbazillen) e falecem. Uma investigação posterior concluiu que os meios de desinfecção prescritos seriam ineficazes em face do bacilo, até então desconhecido na Europa.” (ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.p. 332.)

[14] Ibid. p. 332.

[15] D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.66.

[16] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.102s.

[17] Ibid. p.103.


Letícia Bürgel. Letícia Bürgel é Mestranda em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGCrim) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CAPES. Membro do Corpo Editorial da Revista de Estudos Criminais. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito Penal Contemporâneo e Teoria do Crime, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio Roberto D’Avila. E-mail: leburgel_@hotmail.com


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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