Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 14/01/2017
O aborto consiste em dos temas mais complexos da atualidade, na medida em que aborda questões de índole sociológica, filosófica, religiosa e jurídica. Mostra-se difícil, portanto, tratar da temática pensando que podemos nos despir da nossa condição de ser no mundo, sem que a análise, em algum grau, não reflito nosso paradigma de vida.
De qualquer modo, o presente artigo não tem por finalidade tratar da análise do aborto, mas das hipóteses permissivas que meandram o Código Penal e a jurisprudência pátria, em especial por causa da nova decisão do STF de novembro de 2016 sobre o tema. Inicialmente, faz-se necessário identificar as hipóteses legais de aborto presentes no Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Conforme a legislação brasileira, o aborto não é punido nas duas situações mencionadas: quando não há outro meio de salvar a vida da mãe (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez é resultante de estupro, caso em que se requer o consentimento da gestante, porque a intenção é proteger a saúde psíquica dela.
Pela simples leitura do dispositivo legal, mostra-se como rol taxativo o artigo 128 do Código Penal. Acontece que a jurisprudência do STF ampliou esse rol ao julgar, em 2012, a ADPF 54:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. (ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-00011)
Apesar de entender que a regra do Código Penal é a vedação do aborto, o Supremo Tribunal Federal avaliou que a hipótese específica de aborto de fetos anencéfalos está compreendida entre as excludentes de ilicitude, estabelecidas pelo Código Penal. Sobre o tema, o Ministro Gilmar Mendes pontuou que
Era inimaginável para o legislador de 1940 [ano da edição do Código Penal], em razão das próprias limitações tecnológicas existentes. (...) Com o avanço da tecnologia, tornou-se comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude pode ser considerada uma omissão legislativa, não condizente com o Código Penal e com a própria Constituição.
Ainda de acordo com o Ministro, a inconstitucionalidade da omissão legislativa encontrava-se na ofensa à integridade física e psíquica da mulher, bem como na violação ao seu direito de privacidade e intimidade, aliados à ofensa à autonomia da vontade. Exatamente por isso, o Ministro frisou que “Competirá [como na hipótese do aborto de feto resultante de estupro] a cada gestante, de posse do seu diagnóstico de anencefalia fetal, decidir que caminho seguir”.
Em outras palavras, a interrupção da gravidez do feto anencefálico não constitui conduta punível pelo Código Penal. Trata-se de decisão do controle concentrado de constitucionalidade, tomada em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que possui eficácia vinculante e erga omnes. A decisão, portanto, vincula o Poder Judiciário, o Ministério Público e os Delegados de Polícia.
Pacificada a questão do aborto do modo como apresentado acima, o tema teve, em novembro de 2016, mais um capítulo. A Primeira Turma do STF trouxe mais um caso para as hipóteses em que o aborto poderá constitucionalmente ocorrer:
Aborto consentido e direitos fundamentais da mulher
A Primeira Turma, por maioria, não conheceu de “habeas corpus”, por entendê-lo incabível na espécie. Porém, concedeu a ordem de ofício em favor de pacientes presos cautelarmente em razão do suposto cometimento dos crimes descritos nos arts. 126 e 288 do Código Penal (CP) (aborto consentido e formação de quadrilha), para afastar a custódia preventiva.
Assentou não estarem presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar (Código de Processo Penal, art. 312). Afinal, os pacientes são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.
Reputou ser preciso conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 124 a 126 do CP, que tipificam o crime de aborto, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. Vencido o ministro Marco Aurélio, que concedia a ordem.
HC 124306/RJ, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 29.11.2016. (HC-124306)
Assim, de acordo com a Primeira Turma do STF, não se pode criminalizar o aborto perpetrado até o terceiro mês de gravidez por ser preponderante, dentro do contexto da proporcionalidade, os direitos fundamentais da mulher em face dos direitos fundamentais do feto. Seriam preponderantes, como consequência, o direito à liberdade e autonomia da vontade em detrimento do direito à vida e à dignidade humana do feto.
Observe que a decisão ocorreu em Habeas Corpus, que se trata de uma ação do controle difuso de constitucionalidade, tendo a decisão eficácia inter partes. Para todos os fins, ainda constitui crime de aborto quando ocorrido até o terceiro mês da gestação.
Ora, a teoria de Robert Alexy[1] utilizada no Brasil, longe de se aproximar da construção teórica do autor, fragiliza a atual Jurisdição Constitucional em especial porque, Robert Alexy, ao sistematizar o princípio da proporcionalidade, acreditava na racionalidade de seu método, ou seja, na crença de um método neutro que fosse suficiente para, por si só, assegurar a racionalidade do processo de ponderação.
Tal crença se aproxima do mito formado pelo positivismo jurídico na modernidade. Nenhum método, tal como pretendeu Hans Kelsen, em sua obra intitulada Teoria Pura do Direito, é capaz de eliminar todos os riscos, uma vez que o conhecimento é sempre condicionado às ideias de pré-conceitos e de experiência, além de ser influenciado por questões sociais, por questões econômicas, pela moral, entre outros. Tal problemática é bem analisada por Alexandre Coura [2]:
Logo, a crença de que a prática da ponderação pode ser racionalizada exclusivamente por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade acentua o perigo de que o juiz se exonere da responsabilidade de fundamentar a sério suas decisões, que não podem ser consideradas decorrência silogística da aplicação de um método.
Em outras palavras, o princípio da proporcionalidade não pode ser admitido como único fundamento judicial, ao perigo de se repetirem equívocos inerentes ao positivismo jurídico. A depender dos pré-conceitos e das experiências de vida do julgador, o mesmo caso concreto, se submetido exclusivamente ao princípio da proporcionalidade por magistrados diferentes, pode resultar em decisões diferentes. Esse é o problema de se acreditar na eliminação dos riscos e de se crer que critérios previamente estabelecidos (como os critérios dos subprincípios da proporcionalidade) são suficientes para retirar dos juízes a difícil tarefa de interpretar e analisar os casos concretos. É nesse sentido também o pensamento de Alexandre Coura[3]:
A pretensiosa tentativa de eliminar os riscos, reduzindo a complexidade da interpretação jurídica pelo recurso a critérios previamente estabelecidos, não deve retirar dos ombros dos magistrados a tarefa hercúlea de levar a sério as situações concretas que se apresentem, juntamente com todo o conjunto de normas em princípio aplicáveis, reconstruindo coerentemente à luz do caso, isto é, de forma dinâmica, tendo em vista a unicidade e irrepetibilidade que marcam cada situação de aplicação.
Ao contrário, a decisão judicial, mesmo na hipótese da utilização do método da proporcionalidade, deve sujeitar-se à problematização, ao debate público e a uma fundamentação a partir do caso concreto. O juiz, no paradigma do Estado Democrático de Direito, deve legitimar o exercício de sua função jurisdicional, não se admitindo que a decisão final seja fruto exclusivo da pretensa racionalidade de um método, tal como seu deu no positivismo jurídico, marco importante do Estado Social.
Em razão do exposto, a simples utilização da proporcionalidade não pode ser vista como a ferramenta que naturalmente dará a resposta, em especial no caso de situações complexas como o aborto, sendo que o seu uso pelos Tribunais demostra exatamente o contrário, como se a proporcionalidade, por si só, fosse capaz de milagrosamente obter a decisão final.
Notas e Referências:
[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
[2] COURA, Alexandre de Castro. Hermenêutica e jurisdição (in)constitucional: para uma análise crítica da “jurisprudência de valores” à luz da teoria discursiva de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 150 e 151.
[3] COURA, 2009, p. 152.
Bruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.
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Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.
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