BREVES COMENTÁRIOS AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ACERCA DO DANO EXTRAPATRIMONIAL PELA PRÁTICA DO ABANDONO AFETIVO: POR UMA VISÃO CONSTITUCIONAL DO TEMA

07/10/2021

Crianças, adolescentes e a companhia dos pais: logo no início de nossa caminhada na Terra, nascemos de uma relação entre nossos pais que resolveram gerar uma criança ou então acolher um ser humano, através de um processo de adoção ou, ainda, pelo fato jurídico da paternidade sócio afetiva.

Contudo, há casos em que os pais dão de costas aos seus filhos; os rejeitam, os abandonam, deixando-os à deriva. Tal premissa nos leva para uma série de normas constitucionais e infraconstitucionais que, como veremos, impõem certos deveres aos pais para com seus filhos.

Partindo da premissa acima, o que acontece, então, no plano da responsabilidade civil no direito de família, quando o mencionado abandono ocorre? Há lesão a direitos de personalidade que fundamente uma condenação pela prática do abandono afetivo? E a questão da dignidade da pessoa humana do filho em abandono, como ficaria?

As perguntas acima nos inspiram a escrever estas linhas (como outras vezes o fizemos, mas agora evoluindo a temática)[1] e serão então respondidas conforme veremos a partir das seções que seguem nesta publicação.

 

1. Constituição Federal: família, crianças e adolescentes

Alguns dos deveres impostos pela Constituição à família são justamente os de assegurar o respeito às crianças e adolescentes, à convivência familiar, bem como à sua dignidade.[2]

Entendemos que, analisando a previsão da Carta, quando a família (os pais) propicia um ambiente minimamente sadio, feliz, afetuoso, dotado de respeito por seus filhos, também em sede de convivência, os filhos, enquanto seres existenciais dentro de um núcleo familiar, vindo então a expressão da dignidade da pessoa humana enquanto princípio e fundamento de nosso país em sintonia com o ordenamento jurídico,[3] poderão ver o desenvolvimento de sua personalidade transcorrer de maneira saudável, encontrando em seus pais o alicerce de tal desenvolvimento.

Rodrigo da Cunha Pereira alerta para o princípio da paternidade responsável,[4] no sentido de que: “Se os pais não abandonassem seus filhos, ou, se exercessem uma paternidade responsável, certamente o índice de criminalidade seria menor, não haveria tanta gravidez na adolescência etc”.[5]

Portanto e inspirados agora na doutrina de Rolf Madaleno: “No conteúdo de fundamental está a ideia de situação jurídica essencial à realização da pessoa humana”.[6] Sendo que, por nossa conta e risco, mas com base nas lições da doutrina, e no plano do dano imaterial e sua relação com a dignidade da pessoa, as lições vão no sentido de que existe uma “[...] intersubjetividade da dignidade”,[7] ou seja, de que então “Ao invés de situarmos o ser humano em sua esfera individual, devemos colocá-lo em situação básica de relação com os demais, no âmbito da pluralidade, das relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito”.[8]

Não por menos que Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho aduzem que: “Pais e filhos, por princípio, devem permanecer juntos”[9]. E continuam:

O afastamento dos filhos de sua família natural é medida de exceção, apenas recomendável em situações justificadas por interesse superior, a exemplo da adoção, do reconhecimento da paternidade socioafetiva ou da destituição do poder familiar por descumprimento de dever legal.[10]

 

1.1 Estatuto da Criança e do Adolescente

No plano infraconstitucional o Estatuto da Criança e do Adolescente faz previsão de direitos fundamentais às crianças e adolescentes (arts. 3º,[11] 15,[12] 17[13] e 18[14]) bem como sobre deveres da família para com aqueles (art. 4º, caput). Portanto, a lei exige as condutas lá descritas.Ora, se o ordenamento impõe determinada conduta, mas, por outro lado, ela não é observada, em um primeiro, o ato é, tão somente, antijurídico, o que não importa similitude com o ato ilícito. Contudo, tal raciocínio não se fecha para o que a prática do abandono afetivo, em nossa interpretação, ocasiona: a verdadeira negação da condição de filho, por conduta omissiva que encontra então o suporte fático à reparação por danos imateriais (junto aos pressupostos do nexo de causalidade e dano), nos termos do art. 186,[15] do Código Civil, surgindo, como consequência, a compensação pelo dano extrapatrimonial.[16]Se, como ensina Álvaro Villaça Azevedo, que: “[...] não cabe ao Estado dizer ao povo como deve constituir sua família”,[17] cabe, por outro lado, a cada integrante da família observar, conviver e respeitar seu filho como ser humano que é. Afinal, como pondera Pontes de Miranda: “Quando se fala de ato ilícito, pensa-se no ato humano controlável pela vontade do agente, de jeito que se lhe impute a atividade e, pois, eficacialmente, a responsabilidade”.[18]

 

1.2 O STJ e o abandono afetivo

Duas decisões marcantes do STJ devem ser sempre objeto de estudo quando se analisa o abandono afetivo, a responsabilidade civil e o dano extrapatrimonial. A primeira, nos diz que sim, é plenamente possível a incidência da reparação de danos da natureza a da que estamos pesquisando:

Faz-se salutar, inicialmente, antes de se adentrar no mérito propriamente dito, realizar pequena digressão quanto à possibilidade de ser aplicada às relações intrafamiliares a normatização referente ao dano moral.

Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções – negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores.

Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar⁄compensar, no Direito de Família.

Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5,º V e X da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, de onde é possível se inferir que regulam, inclusive, as relações nascidas dentro de um núcleo familiar, em suas diversas formas.

Assim, a questão – que em nada contribui para uma correta aplicação da disciplina relativa ao dano moral – deve ser superada com uma interpretação técnica e sistemática do Direito aplicado à espécie, que não pode deixar de ocorrer, mesmo ante os intrincados meandros das relações familiares.[19]

O segundo, no entanto, nos diz que:

Ademais, o acórdão recorrido não destoa do entendimento do STJ sobre o tema, no sentido de que "O dever de cuidado compreende o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. Não há dever jurídico de cuidar afetuosamente, de modo que o abandono afetivo, se cumpridos os deveres de sustento, guarda e educação da prole, ou de prover as necessidades de filhos maiores e pais, em situação de vulnerabilidade, não configura dano moral indenizável." (REsp 1579021/RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 19/10/2017, DJe 29/11/2017).[20]

 

2. A interpretação do Estatuto como reflexo da Constituição Federal

Uma ordem constitucional que recepciona leis anteriores, e que vê nascer leis posteriores, deve dar um recado direito ao legislador: suas leis devem estar em sintonia com aquilo que o constituinte originário se propôs!

Ora, se a Carta faz menção à proteção das crianças e dos adolescentes, em sede de respeito a sua dignidade, desenvolvimento e convivência familiar, e o Estatuto da Criança e do Adolescente com ela se afina, pelos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais trazidos, entendemos, como já dissemos antes, caso violados, que:

Há sim pura exclusão de sua condição humana de cônjuge e de filho (a), em flagrante ofensa objetiva à dignidade da pessoa humana enquanto ser integrante da família, haja vista que sua condição e desenvolvimento da personalidade, no que diz respeito à família restam, de forma involuntária (portanto, causada por terceiro), interrompida.[21]

 

3. Conclusão

Da pesquisa e problematização do tema ora proposto, e voltando as perguntas feitas na introdução destas linhas, o que acontece, no plano da responsabilidade civil no direito de família pela prática do abandono é justamente a negação da existencialidade do filho. Tal negação responde a segunda pergunta, exatamente pela lesão a direitos de personalidade, que impede o filho de ver um projeto de vida para dentro de sua família, e se ver como tal perante a sociedade. Tal constatação permite então concluir pela violação à dignidade da pessoa humana do filho, fazendo nascer o dever de reparação pela configuração de danos imateriais.

 

Notas e Referências

ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: a pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/349849/reparacao-de-danos-imateriais-e-familia. Acesso em: 01 set. 2021.

__________ Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de família: curso de direito civil. 1 ed.  São Paulo: Atlas, 2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm.

_______. Terceira Turma. REsp n.º 1159242/SP. Rel. Min: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/04/2012. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1067604&num_registro=200901937019&data=20120510&peticao_numero=-1&formato=PDF>. Acesso em: 01 set. 2021.

 ________. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no AREsp 1286242/MG. Rel. Min: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 08/10/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201801003130&dt_publicacao=15/10/2019. Acesso em: 01 set. 2021. 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. São Paulo: Atlas, 2015.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. v. 06. 4. ed. São Paulo: Saraiva ,2014.

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. Tomo 53. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). 1. ed. Campinas: Bookseller, 2008. 

[1] ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 96-104.

[2] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

[3] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...].

III - a dignidade da pessoa humana;

[...].

[4] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

[...].

[5] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 243.

[6] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 47.

[7] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. São Paulo: Atlas, 2015, p. 266.

[8] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. São Paulo: Atlas, 2015, p. 266.

[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. v. 06. 4. ed. São Paulo: Saraiva ,2014, p. 104.

[10] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. v. 06. 4. ed. São Paulo: Saraiva ,2014, p. 104.

[11] Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

[12] Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

[13] Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

[14] Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

[15] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

[16] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

[17] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de família: curso de direito civil. 1 ed.  São Paulo: Atlas, 2013, p. 3.

[18] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. Tomo 53. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). 1. ed. Campinas: Bookseller, 2008, p. 266.

[19] BRASIL. Terceira Turma. REsp n.º 1159242/SP. Rel. Min: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/04/2012. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1067604&num_registro=200901937019&data=20120510&peticao_numero=-1&formato=PDF>. Acesso em: 01 set. 2021.

[20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no AREsp 1286242/MG. Rel. Min: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 08/10/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201801003130&dt_publicacao=15/10/2019. Acesso em: 01 set. 2021.

[21] ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: a pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/349849/reparacao-de-danos-imateriais-e-familia. Acesso em: 01 set. 2021.

 

Imagem Ilustrativa do Post: toddler holding assorted-color Crayola lot // Foto de: Kristin Brown // Sem alterações

Disponível em: toddler holding assorted-color Crayola lot photo – Free Kid Image on Unsplash

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura