Breves apontamentos sobre a tutela de evidência no NCPC – Por Cristiane Druve Tavares Fagundes

11/07/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

1) Introdução

A tutela de evidência é espécie de tutela provisória[1], cuja concessão gera a antecipação de efeitos que somente seriam obtidos quando do trânsito em julgado da decisão de mérito. Em algumas das hipóteses, inclusive, é deferido ao demandante o próprio bem jurídico que ele almeja obter com o resultado final do processo, satisfazendo-se antecipadamente sua pretensão. No entanto, ao contrário da tutela provisória de urgência, independe da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo para que seja concedida[2].

Trata-se, tal e qual a tutela de urgência, de medida concedida com base em cognição provisória, não definitiva, precária, que pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada (art. 296, do NCPC). É, ainda, sumária, a despeito de as próprias hipóteses legais exigirem um maior grau de probabilidade de existência do direito. Tem, portanto, natureza antecipatória, sem a exigência do requisito da urgência[3]. Como bem conclui ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, está-se diante de “uma técnica de aceleração do resultado do processo, criada para casos em que se afigura evidente (isto é, dotada de probabilidade máxima) a existência do direito material”[4].

Pode-se, portanto, definir a tutela de evidência, com LEONARDO GRECO[5], “como a tutela antecipada que acolhe no todo ou em parte o pedido principal do autor para tutelar provisoriamente, independentemente da urgência, provável direito cuja existência se apresente prima facie indiscutível, nos casos previstos no artigo 311 do Código de 2015”.

2) Taxatividade do rol de hipóteses de cabimento

O artigo 311, do NCPC, prevê o rol de hipóteses concessivas do que se convencionou designar de tutela de evidência. Poderá, portanto, ser tal tutela provisória concedida quando: (i) ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; (ii) as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; (iii) se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; (iv) a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

Uma primeira questão polêmica que se propõe a investigar é se referido rol seria taxativo ou meramente exemplificativo. Em outras palavras, se estaria o juiz adstrito às hipóteses previstas no rol acima declinado ou se poderia ele inovar diante das peculiaridades do caso concreto.

Entendemos que se trata de opção legislativa estabelecer qual direito é tido como evidente – no sentido de existir alta probabilidade de sua existência – para fins de concessão de tutela de evidência. Poderia o legislador ter estabelecido uma cláusula geral apta a transferir ao juiz a análise da viabilidade ou não, caso a caso, de requisitos genericamente previstos a autorizar a concessão da tutela de evidência. No entanto, segundo entendemos, não foi essa a opção legislativa.[6] Atuou o legislador, portanto, no sentido de lançar rol taxativo de hipóteses de concessão de tutela de evidência.

É importante de que esclareça, contudo, que afirmar que a opção legislativa deu-se no sentido da taxatividade não conduz à aceitação da assertiva segundo a qual o rol previsto no artigo 311, do NCPC, conteria todas as hipóteses autorizadoras de tutela de evidência. Afirmar que o rol de hipóteses de tutela de evidência é taxativo não significa limitá-lo ao artigo 311, do NCPC.

Há, no ordenamento jurídico brasileiro, tanto no próprio Código de Processo Civil como em legislações extravagantes, hipóteses que são nitidamente antecipatórias, sem a exigência do requisito do perigo de dano. Assim, por exemplo, a liminar na reintegração de posse dispensa a urgência, desde que presentes os requisitos legalmente previstos. É uma tutela de evidência, prevista em lei, mas não constante do artigo 311, do NCPC.

Certamente o artigo 311, do NCPC, não traduz todas as hipóteses de tutela de evidência. No entanto, entendemos que todas as hipóteses de antecipação sem urgência estão previstas em lei (no artigo 311 do diploma processual e em outras dispersas pelas mais variadas legislações). Não há uma cláusula geral que possibilite ao juiz conceder, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, tutela de evidência.

Mister seja feita justa menção à existência de divergência doutrinária sobre a questão. É assim que EDUARDO JOSÉ DA FONSECA COSTA[7], tecendo críticas à redação do artigo 311, do NCPC, aventa o que ele denomina de “risco” de os tribunais entenderem o rol constante deste dispositivo como se fosse de numerus clausus. Aduz o autor que a tutela de evidência sempre ocorreu na prática forense, independentemente de estar prevista de forma expressa em textos de lei. E sugere o autor – no que concordamos inteiramente – que teria andado melhor o legislador se tivesse estabelecido uma disposição dotada de generalidade, fazendo com que a tutela de evidência não estivesse submetida a designações casuísticas.

De toda sorte, é possível afirmar que o rol de hipóteses geradoras de concessão de tutela de evidência é taxativo, mas não limitado ao art. 311, do NCPC. Em outras palavras, somente poderá o juiz conceder tutela de evidência estando diante de hipótese prevista no art. 311, do NCPC, ou de outra também prevista expressamente em lei. É, pois, um rol taxativo, mas não limitado ao art. 311, do NCPC.

3) (Im)possibilidade de interpretação extensiva das hipóteses legisladas

Fixada a premissa segundo a qual é taxativo o rol de hipóteses de concessão da tutela provisória de evidência, mas não limitado ao artigo 311, do NCPC, cumpre analisar se é possível se falar em interpretação extensiva do rol expressamente legislado. Em linhas gerais, o questionamento que se passa a enfrentar diz respeito à possibilidade de o juiz, caso a caso, flexibilizar os dispositivos que prevêem a concessão de tutela de evidência, deixando de exigir algum requisito ou mesmo ampliar, a partir do quanto foi legislado, as hipóteses legais de cabimento.

Apenas para facilitar o raciocínio, trabalhemos com a hipótese do art. 311, II, do NCPC, que exige dois requisitos para que a tutela de evidência seja concedida, quais sejam, a comprovação documental das alegações de fato e a existência de tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante. Diante da redação do referido dispositivo, pode-se cogitar da concessão de tutela de evidência, quando se estiver diante de súmula não vinculante (meramente persuasiva) ou mesmo tese fixada no Incidente de Assunção de Competência?

Neste particular, entendemos que apenas os precedentes e enunciados de súmula expressamente previstos no artigo 311, II, do NCPC, podem dar lastro à concessão de tutela de evidência. Assim, está sua aplicabilidade restrita ao cumprimento dos seguintes requisitos cumulativos: (i) as alegações de fato puderem ser comprovadas documentalmente e (ii) houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos (ou seja, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em recursos especial e extraordinário repetitivos) ou em súmula vinculante. Não poderia, portanto, o juiz, diante do caso concreto, ampliar a incidência desta previsão para abarcar também súmulas meramente persuasivas ou teses fixadas em Incidente de Assunção de Competência.

Referido entendimento decorre da premissa já fixada anteriormente: o rol de hipóteses que viabilizam a concessão de tutela de evidência é taxativo, devendo, pois, estar previsto expressamente em lei (ainda que não apenas no artigo 311, do NCPC). Dessa premissa decorre o fato de as hipóteses deverem ser analisadas restritivamente, não cabendo, pois, interpretação ampliativa. Nos termos da pertinente doutrina de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, não se pode ampliar a área de atuação das tutelas de evidência, mediante interpretação extensiva[8].

Um importante apontamento é de ser feito: com o que ora se defende não se pretende afirmar que os demais precedentes e súmulas que integram o denominado Direito Jurisprudencial não devam ser observados pelo juiz. Devem sê-lo, inclusive, de forma vinculante, diante do que expressamente prevê o artigo 927, do NCPC. Todavia, tais precedentes e súmulas apenas não poderão servir de base para a concessão de tutela de evidência, vez que não houve expressa previsão legislativa neste sentido.

Dessa sorte, para os fins a que se destina o art. 311, II, do NCPC, não poderá ser considerada súmula não vinculante. O mesmo se diga quanto à tese fixada no Incidente de Assunção de Competência, que, segundo entendemos, não poderá ser utilizada para fins de concessão de tutela de evidência.

A jurisprudência pátria apresenta julgados recentes abarcando entendimento mais restritivo ao cabimento de tutela de evidência, no sentido da estrita observância dos requisitos previstos no art. 311, do NCPC. Neste sentido, vislumbre-se a seguinte ementa: “Tutela de evidência. Sucessores do falecido que pretendem compelir a casa bancária agravada a cumprir ordem de pagamento de ações preferenciais do de cujus, exarada em seguidos alvarás judiciais. Ausência de tese firmada em julgamento de caso repetitivo e súmula vinculante. Requisitos do inciso II do art. 311 do Código de Processo Civil que são cumulativos. Decisão mantida. Recurso desprovido”[9]. E, ainda: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. ICMS SOBRE ENERGIA ELÉTRICA. Exclusão da base de cálculo do imposto dos valores referentes às tarifas TUST e TUSD. Decisão denegatória da tutela de urgência. Ausentes os requisitos para a concessão da tutela de evidência e para a concessão da tutela de urgência. Existente controvérsia nos tribunais. Inexistência de tese fixada em recurso repetitivo ou em súmula vinculante. Distinção dos casos julgados pelo STJ nos recursos repetitivos (temas 63 e 537). Inexistência de dano de difícil reparação. Decisão mantida. Recurso não provido”[10].

Novamente mister se faz informar a existência de manifesta divergência na doutrina acerca da questão de que se trata. Em sentido contrário ao ora defendido, JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA entende que a incidência na hipótese de que se trata exigiria a existência de tese pacificada na jurisprudência (seja em virtude de súmulas não vinculantes, seja em tese firmada em assunção de competência) sobre fatos comprovados documentalmente[11]. Apresenta igualmente um posicionamento mais ampliativo do que ora é defendido o doutrinador CASSIO SCARPINELLA BUENO, ao preceituar uma interpretação mais ampla e sistemática com o que o CPC desenha para o seu direito jurisprudencial. Isto porque “a ‘tese jurídica’ aplicável aos fatos comprovados de plano (e não apenas documentalmente) pode derivar não só dos ‘casos repetitivos’ (art. 928) ou de súmula vinculante, mas também de todos os referenciais decisórios dos incisos do art. 927”[12].

Entendemos, todavia, que, pelo fato de se tratar de rol taxativo, as hipóteses que viabilizam a concessão de tutela de evidência não podem ser ampliadas, nem mesmo interpretativamente, devendo haver integral incidência na previsão legal. As hipóteses devem, portanto, ser analisadas restritivamente, não cabendo ao intérprete alterar as previsões expressas constantes do rol taxativo legal.

4) Considerações finais

À guisa de conclusão, podemos afirmar que a tutela de evidência é espécie de tutela provisória que pode será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, desde que presentes os estritos requisitos legais. Outrossim, o rol de hipóteses geradoras da concessão de tutela de evidência é taxativo, mas não limitado ao art. 311, do NCPC. Poderá, pois, o juiz conceder tutela de evidência estando diante de hipótese prevista no art. 311, do NCPC, ou de outra hipótese prevista expressamente em lei. Por fim, justamente por se tratar de rol taxativo, não há possibilidade de ampliação das hipóteses que viabilizam a concessão de tutela de evidência, nem mesmo interpretativamente. As hipóteses devem, pois, ser analisadas de forma restritiva, não cabendo ao intérprete alterar as previsões expressas constantes do rol taxativo legal.


Notas e Referências:

[1] Conforme expressa previsão legal, a tutela provisória pode estar fundada em urgência ou evidência (art. 294, caput, do NCPC).

[2] É neste sentido que o artigo 311, do NCPC, preceitua que “a tutela de evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo”.

[3] Sempre pertinente é a doutrina de ARRUDA ALVIM, para quem a tutela antecipada de evidência “está, tanto quanto a tutela antecipada de urgência, fundada na necessidade de redistribuição justa do ônus do tempo no processo” (Manual de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 17 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 735).

[4] O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 165.

[5] A tutela de urgência e a tutela de evidência no Código de Processo Civil de 2015. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório, Salvador: JusPodivm, 2016, p. 204.

[6] Em sentido similar ao ora defendido, posiciona-se HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: “Em lugar de conceituar genericamente a tutela da evidência, o novo Código preferiu enumerar, de forma taxativa, os casos em que essa modalidade de tutela sumária teria cabimento” (Curso de Direito Processual Civil, vol. I. 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 693).

[7] In STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da (coord..). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 452-453.

[8] Curso de Direito Processual Civil, vol. I. 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 693.

[9] TJSP, Agravo de instrumento nº 2212929-91.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Araldo Telles, j. 30.6.2017.

[10] TJSP, Agravo de instrumento nº 2100115-05.2017.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Paulo Galizia, j. 26.6.2017.

[11] Direito processual civil moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 494.

[12] Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 283.


 

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